— por Clóvis Domingos —
Crítica escrita a partir do espetáculo “Salomé”, realização da MADAME TEATRO.
Sabe, eu não faço fé nessa minha loucura/ E digo eu não gosto de quem me arruína em pedaços/ E Deus é quem sabe de ti e eu não mereço um beijo partido! (…) Hoje não passo de um vaso quebrado no peito e grito olha o beijo partido/ Onde estará a rainha que a lucidez escondeu, escondeu…
Beijo Partido. Toninho Horta.
Salomé, personagem bíblica vilanizada por ter pedido a cabeça do profeta João Batista numa bandeja de prata ao Rei Herodes, é o arquétipo escolhido pelo performer Diego Bagagal para falar de sexualidade, misoginia, política, desejo e terrorismo. Ainda que se constitua como um espetáculo solo, são muitas as presenças nessa peça-manifesto: das Sagradas Escrituras à literatura de Oscar Wilde, da ópera de Richard Strauss ao teatro laboratório de Jerzy Grotowski, além das memórias autobiográficas do próprio performer.
Durante nove anos, com residências artísticas na Inglaterra, Polônia e Portugal, esse trabalho foi se construindo e apresentando seus recortes, linhas, formas, cores, tessituras, até chegar no ponto atual. O percurso desse longo processo de criação resulta na apresentação de onze cenas, cuja poética costura os enigmas e transgressões dessa mulher que assombrou e ganhou espaço na obra de diferentes homens artistas ao longo dos séculos. E mais: se reatualiza no feminino ainda marginalizado em nosso tempo, para mim o ponto essencial dessa montagem.
Diego Bagagal não representa Salomé, mas nos apresenta sua co-habitação com ela, dando-lhe voz e gesto, a presentificando através de seu corpo de artista, numa soma e mistura de vida e criação. A dança dos sete véus da personagem é intercalada ora por histórias de vida pessoal, ora por narrativas de experimentações cênicas realizadas em países de forte tradição cristã, e dessa forma se tensionam o íntimo e o público, passado e presente, força poética e vulnerabilidade artística, encontros e fracassos, alma e corpo, arte e religião, dor e ironia.
O pesquisador Óscar Cornago (2009) denomina de “teatros confessionais” determinados trabalhos que privilegiam a comunicação em primeira pessoa, a proximidade espacial com o espectador, a dimensão física do ato de enunciação e a referência ao passado que é recuperado em forma de experiência no presente. Tais elementos se encontram em Salomé, que instaura, a meu ver, uma verdade de atuação, a partir de:
práticas enunciativas como suporte de uma dramaturgia que parte do corpo e se dirige de maneira direta ao espectador, simulando a máxima proximidade. Entre a construção desse eu e o espectador, ficam, no entanto, os meios, os meios da imagem, da palavra, e sobre tudo, o meio físico que articula essa palavra. A palavra dita se faz visível como uma ação a mais, uma ação com a qual se trata de criar um tipo de continuidade entre o corpo que está presente ali, testemunha da história, memória física do passado, e o relato construído a partir dessa palavra (p.102).
Interessante nesse ponto também se problematizar o conceito de confissão. Como processo enunciativo, tal prática foi inventada pelos antigos cristãos pela necessidade de se partilhar e colocar uma experiência no campo do julgamento. Primeiramente como confissão pública, tal ato se destinava à necessidade de se pertencer à uma comunidade, nesse caso, cristã. Ao longo do tempo, perde a esfera pública e comunitária e ganha o estatuto privado, sendo reservada e autorizada aos sacerdotes. Ainda que se trate de uma “fala de si”, ao ser endereçada ao outro já prenuncia um desejo de penitência e reparação.
Tal aproximação do campo religioso com o campo social e artístico faz-se necessária, uma vez que a religião sempre foi uma arma poderosa de opressão aos desejos humanos, e ainda hoje, principalmente no Brasil, atua de forma decisiva ao desrespeitar e deslegitimar os Direitos Cidadãos. Mas voltando ao espetáculo Salomé, o performer não confessa alguns pontos de sua vida amorosa como ato religioso, mas pelo contrário, como abertura discursiva (logo política) que busca justamente denunciar a ideologia judaico-cristã que há séculos quer silenciar corpos e práticas afetivo-sexuais diversos.
Um segundo ponto seria o fato de que no espetáculo os espectadores também podem “contar” sua experiência. Pergunto: seriam então atos confessionais ou práticas confidenciais pelo exercício cênico? Na perspectiva de Souza:
Antes de mais nada, não pode haver confidência da parte de um só dos interlocutores. Na enunciação confidencial, os interlocutores encontram-se num mesmo nível de reciprocidade; ao contrário da confissão, cuja estrutura enunciativa impõe uma posição estatutária que separa aquele que escuta daquele que confessa (1997, p. 44).
Dessa forma penso que a abertura ao público, para que também confidencie e atue, amplia a capacidade de envolvimento com o espetáculo. E mais: uma dimensão ética se efetiva. As experiências e questionamentos trazidos pelo performer ganham corpo coletivo e podem conversar com aquilo que nos incomoda. O dialogismo e a polifonia acabam por carregar politicamente a peça de Bagagal. Todos estamos expostos!
Essa “ode ao amor” conta com importantes colaborações artísticas: Mickael de Oliveira se junta ao performer na dramaturgia e direção; as paisagens sonoras de Chico Neves reforçam uma atmosfera altamente simbolista; a cenografia de Martim Dinis funciona como uma plataforma central na qual Salomé tem sua história recontada e ali parece estar em confinamento (como Oscar Wilde ou também um animal na jaula) e a luz de Allan Calisto brinca com a escuridão dos monastérios (a fumaça sugerindo um habitat sobrenatural) e ao mesmo tempo a ambientação colorida das boates gays. Todos os elementos cênicos estão conjugados e subordinados à forte presença de Bagagal nesse ritual performático.
O beijo que salva. O que pode um beijo? O que pode um beijo negado? Qual a simbologia de se sentir beijado? Como símbolo da paixão e do encontro amoroso, a força desse contato íntimo, pode desencadear diferentes formas de afeto. Da plenitude de se sentir amado à magoa e revolta de se perceber rejeitado. Nos escritos bíblicos, João Batista nega um beijo a Salomé, que por vingança pede sua cabeça, e pela morte pode roçar os lábios de seu amado. Como tratado arqueológico, a Bíblia sempre relegou a mulher à submissão e ao escuro. A mulher na sua dimensão vaginal sempre foi considerada a face terrível do Diabo. Na tradição cristã, a mulher só se glorifica quando se insere no papel de Santa/Mártir ou a Grande Mãe. O feminino sempre presente e ameaçador desde as bruxas e feiticeiras continua a ameaçar o mundo. O que explicaria o impeachment da presidenta Dilma Rousseff senão mais uma vitória do machismo?
Num ato de restauração simbólica e política, Diego Bagagal permite com esse espetáculo, que “um raio de luz” ilumine Salomé e talvez todos aqueles condenados a não poderem mais amar e serem amados. Beijamos os jovens mortos da boate Kiss (Brasil), Pulse (EUA) e Bataclan (França). Beijamos aqueles que perdemos pelo preconceito,pelo medo de amar e se entregar. Do umbral instituído à força contra o feminino que é o amor, pelo ato cênico, beijamos o performer e a personagem que se entrelaçam e podem instituir, pela luz que a arte ainda emana, a resistência necessária para se retirar o corpo, o desejo, a intuição e a diversidade do canonizado e empobrecido lugar de crime, pecado e castigo.
Referências:
CORNAGO, Óscar. Atuar de verdade: a confissão como estratégia cênica. Acessado em: 28/03/17.
SOUZA, Pedro de. Confidências da carne: o público e o privado na enunciação da sexualidade. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.