— por Bremmer Guimarães — Crítica do espetáculo “Risco”, de Luísa Bahia (MG)
Um traço. Um esboço. Um rabisco. Este texto é um risco? Um perigo. Uma ameaça. Um desafio. Eu me arrisco? Ao assistir “Risco”, solo teatral da atriz e dramaturga Luísa Bahia com codireção de Ricardo Alves Jr e direção artística de Luiz Dias, é inevitável não pensar nas possibilidades de significados que a palavra que dá nome à peça tem. Não apenas pela multiplicidade de sentidos que o verbete do dicionário nos apresenta, mas porque o próprio texto do espetáculo nos leva por uma viagem em que as palavras e suas texturas são fundamentais para a fruição do espectador que assiste à montagem.
Como diz a sinopse, “Risco” é a odisseia de Dora, uma mulher errante, que delira em ondas marítimas, imagens fantásticas e alucinações sonoras numa espécie de peça-show. A montagem propõe ao público uma narrativa múltipla, uma experiência sensorial e imagética. E, dessa experiência proposta, uma pergunta me vem à cabeça: há riscos em “Risco”? Certamente sim. Se nos atentarmos à dramaturgia do espetáculo, perceberemos nela um dos desafios da encenação: é um texto predominantemente narrativo. Mais do que isso: é um fluxo de pensamento. Um suceder de palavras, imagens, poesias, que, numa primeira leitura, talvez se aproxime mais do literário do que do texto efetivamente teatral.
Como transformar essa narrativa em ação? Como contar essa história ao meu interlocutor? Como materializar os espaços que narro em cena? O trabalho de encenação de Luísa e Ricardo aposta num potente jogo de iluminação para requalificar lugares e construir essa territorialização do espaço cênico. Pode parecer uma referência distante, mas me faz lembrar de “Dogville” de Lars Von Trier. Teatro e cinema em trânsito. “Risco” apostando ainda mais no minimalismo da cena e com os olhos do público como câmera. Nós criamos nossos cortes e enquadramentos, ainda que a iluminação tenda a nos dirigir. Os cenários não são representados. Há um corpo, um palco, há luzes e há um olhar atento do espectador. Há imaginação sobretudo. Instaura-se um simulacro.
Todo simulacro, porém, corre o risco de ser desarticulado. O jogo em “Risco” tem regras bem enunciadas. É bem executado. Mas as rodadas parecem se suceder sem que a tensão da partida se desenvolva cenicamente. Sem que o jogo se permita perder o controle. Sem que haja lacunas para a crise, para a desordem, para o caos. Por exemplo: a narrativa que nos é contada no espetáculo é entrecortada por performances musicais da atriz Luísa Bahia. O arriscar do título cria em nós a expectativa de que essa performance sonora se desenfreie ao longo da montagem. Que os registros vocais possam se alterar. Que a atuante se permita errar, desafinar, afinal, no simulacro, a “falta de técnica” pode ser validada como mais crível do que a própria técnica. Como mais verdadeira e vigorosa do que a própria virtude e a virtuose. E, embora pareça haver essa tentativa por parte da atriz, ela ainda é tímida.
Certa vez, ouvi uma expressão que acredito dialogar com essa busca do risco no ofício e também de uma maior performatividade das atuantes que compõem, neste caso específico, o fazer teatral: “O bom cavaleiro não domina o cavalo. Ele e o cavalo se fazem um só”. Sendo um só, ator e experiência teatral se permitem errar juntos. Não conseguem ter domínio um sobre o outro. Permitem-se a afecção. Afinal, todo corpo pulsa. Seja esse corpo iluminação, figurino, espectador, texto, direção ou a própria atuação. Seja esse corpo a própria crítica, que também não tem domínio sobre a arte. São criações em conjunto. São pulsações. E, a partir dessas pulsações, surgem estímulos, surgem provocações, que nos permitem estarmos presentes e disponíveis nessa relação de se fazer um só.
No texto, essa provocação parece mais evidente, quando a autora parece fugir de uma linha dramática tradicional, com introdução, conflito, clímax e desfecho. Se a resolução dramática tende a nos levar para o caminho da representação, em “Risco” a impressão é justamente a contrária: há na narrativa que nos é apresentada uma espécie de eterno retorno, de não conflito, de não resolução. Se essa estrutura cíclica já é evidente no texto, por que a encenação também opta por este caminho? Pode ser potente criar lacunas, rupturas, fricções, entre texto e cena. Mais descontroles e menos controles do nosso olhar e da própria atuante. Justamente para potencializar uma espécie de “absurdo”, de “implosão do drama”, presente na dramaturgia. Dora não precisa sair da beira da praia. Mas Luísa pode mergulhar sem medo.
E Luísa mergulha muitas vezes, sem dúvidas. Um dos momentos mais bonitos do texto e da encenação é quando a atriz pergunta ao público: “Vocês estão se divertindo?”. E, logo depois, responde: “Eu espero que sim, porque eu estou”. É uma das cenas em que percebo, justamente, esse arriscar da atuante. Percebo uma espécie de fragilidade e também de ironia. Uma provocação ao público e também uma autoprovocação. Afinal, pode ser que as pessoas na plateia estejam completamente entediadas com esse círculo contínuo. Mas ela não tem receio disso. Ela performa. Ela persiste. Ela se permite ir até o final. E essa performatividade também ganha força em outros momentos de interação direta com a plateia.
A brincadeira da dramaturgia com uma espécie de epopeia cíclica da protagonista em sua missão é evidente também nos fluxos de pensamento de Dora, que por vezes se confunde com a figura mítica de Penélope. No mito grego, Penélope foi aquela que todas as noites desfazia a costura de um tecido para voltar a costurá-lo no dia seguinte, enquanto promessa de espera por seu amado Ulisses, desaparecido na guerra. Assim que terminasse a costura, Penélope deveria se casar novamente com outro homem, já que Ulisses fora dado como morto, mas ela criou seu próprio simulacro para que isso não acontecesse.
Essa atitude de Penélope, que é recuperada pelo texto de “Risco”, cria também possibilidades de leituras sobre a emancipação das mulheres na atualidade. A força da figura feminina é também presente na montagem. No próprio empoderamento da atuante e dramaturga, que tem seu corpo livre e forte em cena, e que reforça a importância da representatividade de uma mulher enquanto autora de teatro. Também da personagem Dora, que mesmo em meio às figuras e histórias que a rodeiam, se consolida como uma mulher independente, consciente de sua individualidade. Mulheres que se encorajam e lutam diariamente, na esperança de também mergulharem sem medo no mar.
Um traço. Um esboço. Um rabisco. Este texto é um risco? Um perigo. Uma ameaça. Um desafio. Eu me arrisco? Como estar em risco nos afeta? “Risco” nos permite uma travessia para refletirmos sobre o nosso fazer artístico, sobre a nossa condição enquanto espectadores e ainda sobre o nosso próprio estar no mundo. Uma abertura para o sensível. Uma poesia em tempos de riscos e privações constantes.