— por Igor Leal —
Breves considerações sobre a peça Gisberta, de Luis Lobianco (RJ).
“Nesta nova economia da mirada, onde a representação da identidade aparece como uma forma de violência, parece que não tem sentido exigir a qualquer preço a visibilidade das minorias como condição de emancipação”.
Sedgwick
Os debates sobre as representações de corpos travestis e transexuais no teatro brasileiro – sua ausência e presença – aparecem definitivamente nos fins dos anos 1960. Desde então, se estabelece uma negociação estético-política constante sobre as representações das sexualidades e das identidades de gênero na cena artística e na mídia. Ao lançar olhar para esta produção, é evidente as diversas e múltiplas representações de personagens LGBTs que apontam diferentes significados diante de distintos contextos históricos e também dos diversos olhares de diferentes públicos. Atento às armadilhas de uma suposta representação estética ideal das identidades sexuais e de gênero, este texto lança breves olhares para a peça Gisberta à luz dos debates que a sucederam no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte (CCBB-BH), no dia 26 de janeiro de 2018.
Idealizado pelo ator Luis Lobianco, Gisberta é um monólogo inspirado na biografia de Gisberta Salce, transexual ícone na luta pelos direitos de transexuais e homossexuais. Em cena, o ator aparece como um artista contador – um narrador que toma as narrativas, depoimentos e documentos de sujeitos próximos a Gisberta. Assim, o artista se lança a um desafio de narrar uma história que não pertence só ao passado, mas que continua ocorrendo no mesmo instante em que se conta. Isso porque, segundo a ONG Transgender Europe, o Brasil lidera mundialmente a violência contra a população Travesti e Transexual. Para trazer visibilidade a essa realidade, a peça apresenta uma dramaturgia de ausências e perdas como denúncia à violência sofrida pelos corpos que rompem uma suposta “natureza”. Gisberta apresenta uma biografia ainda invisibilizada no Brasil e motiva debates cruciais acerca da visibilidade como estratégia política na cena contemporânea.
A dramaturgia assinada por Luis Lobianco,Renato Carrea e Rafael Souza-Ribeiro é resultado de uma pesquisa documental a partir de notícias jornalísticas, documentos jurídicos e depoimentos de familiares de Gisberta. Para apresentar o material dramatúrgico em ação narrativa, o artista cria diversos personagens que narram pontos de vista sobre ela. Gis não fala, falam por ela. Está aí a primeira metáfora da invisibilidade de sujeitos Travestis e Transexuais.
Para a composição das falas e narrativas que vão desenhando Gisberta Salce, o ator joga com a teatralidade existente nos códigos performativos de gênero, imitando a gestualidade, voz e timbre, vocabulário, e estados emocionais disponíveis socialmente para identificar os gêneros. O artista revela, assim, o caráter imitativo de todas as identidades, e as normas evocadas para a performance de cada gênero. Tais normas são explicitadas já no início do espetáculo, quando o ator em conversa com o público expõe sua criança viada e os desafios sociais enfrentados pelas crianças afeminadas.
Durante toda a narrativa de Gisberta, percebemos que as performances se constroem a partir de estados emocionais que se configuram em geografias, espaços físicos e paisagens que colaboram para fornecer a dimensão tipificada da identidade. As emoções, que aparecem sempre em discursos sexuados, ora parecem contribuir para reforçar os discursos e os estereótipos de gênero, ora trazem a dimensão interna das personagens.
A pesquisadora feminista Romano (2009) nos lembra que uma das convenções de representação no teatro, que coopera na formulação das diferenças e nas hierarquizações relativas ao gênero, é o tratamento dispensado às emoções. Apesar de emoções comumente terem o status de “universais”, “neutras” e “naturais”, elas servem para tipificar as sensibilidades humanas. Porém, são experiências sociais, incorporadas através de um processo no qual não se pode separá-las da razão nem separar natureza de cultura. Ao mesmo tempo, o significado social das emoções é determinante para a reprodução dos papéis de gênero e sempre carrega concepções ideológicas (ROMANO, 2009).
As paródias de gênero realizadas com qualidade técnica pelo ator não buscam extrapolar as relações já fixadas pelo sistema de códigos performativos. A virtuosidade da atuação dá ênfase aos códigos já normatizados e assimilados socialmente e, assim, gera rapidamente uma empatia com o público majoritariamente cisgênero, o que facilita o entendimento da estrutura e a identificação das personagens.
Ao utilizar de signos já estabelecidos socialmente, a peça não permite espaço para leituras subversivas desses códigos. Mesmo que em alguns momentos o ator utilize do humor como denúncia e crítica às normatividades, esta é suave e branda. Não atinge seu potencial crítico, apenas o risível: rimos de Lobianco e de suas paródias porque o “ riso é sempre o riso de um grupo” (BÉRGSON, 2001) e, por certo, elas evocam uma significação social – a sociedade na qual vivemos, o país que mais mata travesti e transexuais.
O caráter alegórico das paródias em Gisberta e a suposta crítica realizada pelo humor nos submete a uma leitura trágica: a travesti é percebida como engraçada. A peça prefere a empatia ao viés crítico, e nos inocenta, ausentando tanto o público quanto a própria instituição da arte de uma reflexão mais profunda sobre como os corpos são vistos e como estão distribuídos socialmente. Nada de novo sob o sol, nada de novo em Belo Horizonte.
Sobre as dinâmicas da visibilidade, um jogo cênico intriga bastante. Durante a narrativa, de vez em quando, a plateia é convidada a ver as fotos de Gisberta no álbum da família. Um recurso de aproximação e intimidade. Nós, o público, somos incitados a visualizar a “verdadeira imagem” de Gisberta, mas não a vemos. É uma brincadeira. Somente o ator pode vê-la. Somente o ator tem acesso às imagens de Gisberta, que em nenhum momento da encenação são compartilhada com o público. A plateia fica apenas com uma ideia de Gisberta dada por Luis Lobianco. O jogo, que promove risadas e atiça a curiosidade, confirma a posição privilegiada do ator, a posição de ser aquele que mostra e domina a narrativa verdadeira. Aqui, a realidade parece inacessível, a não ser via narrativa.
Entretanto, esse jogo atinge outras camadas poéticas quando, na saída do teatro, ao fim da peça, o público recebe o programa do espetáculo. Ali, vemos o belo rosto de Gis. O rosto rompe nosso imaginário. Um documento. Um alívio, um acalento. Uma potência. Ali no programa impresso como memória, Gis se eleva, invade nossos olhares. Contradiz a peça e o rosto de Lobianco.
Entre músicas, paródias e piadas eis que atingimos o clímax do drama anunciado de antemão: o assassinato de Gis. Reproduzindo o Ato Contínuo do julgamento de Gisberta, o ator narra a violência de 14 meninos ligados a uma instituição católica em Portugal, que resulta o assassinato de Gis. Com ruídos sonoros, sombras sobre o espaço cênico e uma partitura que se repete – “PORRADA PORRADA” –, a cena busca reproduzir a perversidade e a crueldade da violência contra Travestis e Transexuais. A plateia atônita, levada pelo caráter dramático, embarca na virtuose cênica apresentada, que sobressai, assim como a espetacularidade. Gis perde notoriedade em prol da encenação e dos artifícios cênicos que nos inundam. Nossa indignação é atravessada pela virtuose do sucesso artístico de Lobianco. O encontro se distancia, agora é o espetáculo. A violência é o espetáculo. O importante é o espetáculo. O que romperia a violência sistêmica à população T? Narrar a violência é insuficiente.
Luis Lobianco compõe uma cena que pouco interroga o real, que pouco interroga sua postura mimética. Assim, a peça “perde sua textura e sua autonomia em proveito de saberes e discursos já prontos: ideologia, explicação de mundo, referência concreta às práticas sociais”(PAVIS, 2008). Parodiando Judith Butler, a Gisberta de Luis Lobianco se configura como um “entretenimento cisgênero de luxo”. Além de não efetivar uma reflexão crítica sobre a transfobia existente em todos nós, a visibilidade alcançada pela narrativa da história é realizada apenas por uma equipe cisgênero, que, em última instância, define os espaço e tempos para determinadas representações e narrativas em oposição a outras. Portanto, é uma visibilidade que dá destaque à exclusão da população T e reafirma o lugar de marginalidade desses corpos, perpetuando uma relação de exclusão na cena artística.
Diante da massificação da mídia, o pesquisador queer Paul Preciado (2010) enfatiza o fato de que hoje estamos em um regime de visibilidade diferente daquele descrito por Michel Foucault em seu diagnóstico sobre as sociedades disciplinares. Podemos perceber que, nos últimos anos, os meios de comunicação levaram ao limite a lógica da produção performativa da identidade sexual e de gênero, ao gerarem uma produção do visível distinta da posição disciplinante outorgada por Foucault ao século XIX. Segundo Preciado, estamos perante uma operação de produção de subjetividades por meio da inflação da representação, um novo regime de visibilidade, já apontado pela feminista Sedgwick:
um ethos no qual formas de violência que são hipervisíveis são oferecidas como espetáculo exemplar ao invés de serem reservadas ao domínio do velado ou do escandalosamente secreto. […] Nesta nova economia da mirada, onde a representação da identidade aparece como uma forma de violência, parece que não tem sentido exigir a qualquer preço a visibilidade das minorias como condição de emancipação. Não se trata mais de desvelar um conjunto de práticas que têm estado escondidas ou naturalizadas, nem de participar das cotas de representação; nos encontramos em uma situação mais complexa nas quais a política toma a forma, diz Sedgwick, de uma “batalha entre diferentes âmbitos de visibilidade”. (PRECIADO, 2010).
Dessa forma, fica evidente que a visibilidade alcançada com a peça aponta a necessidade urgente de repensarmos as formas de atuação política no que tange à elaboração de novas estratégias de transformação social e de representação artística. Não basta ao artista e aos Centros Culturais a ‘politização da arte’, mas a invenção de outras formas de emancipação do sujeito e a articulação entre posicionamentos éticos e estéticos aliados a movimentos contestatórios contemporâneos (MESQUITA, 2011).
Contraditoriamente, é necessário refletir também acerca dos limites da ideia de “lugar de fala”. Isso porque o conceito de “lugar de fala” aponta a ideia de que o conhecimento verdadeiro sobre algo emergiria da vivência. Isto é, a vivência como critério de conhecimento do real. Entretanto, a vivência não é critério absoluto ou único critério de conhecimento e construção da realidade ou da representação. Nesse sentido, é fundamental dialogar com todos os mecanismos e sujeitos implicados na produção de conhecimento sobre a realidade e que atravessam os signos da representação.
Em outras palavras, as críticas contemporâneas à representação-visibilidade a partir dos “lugares de fala” podem cair no risco de transformar certas lutas democráticas e suas representações em propriedade exclusivas de certos sujeitos e comunidades, esquecendo que os atos emancipatórios são sempre construídos coletivamente.
Diante do cenário atual brasileiro, onde os discursos fascistas mobilizam cada vez mais pessoas, parece insuficiente negar que sujeitos que não sofram das mesmas dores possam promover ações de empatia, alianças e lutas coletivas, respeitando evidentemente os protagonismos e processos de significação histórica. Entretanto, e ao mesmo tempo, vale destacar que as críticas mobilizadas pela população T, antes de mais nada, apontam a dificuldade dessa população em produzir discursos e tomarem posse de sua própria representação, devido à impossibilidade de se apropriarem efetivamente das condições materiais da existência e dos modos da produção artísticos e midiáticos (SPIVAK, 1942).
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Para finalizar, cito o trecho do Manifesto Representatividade Trans, apresentado pelo Movimento Nacional de Artistas Trans – o Monart, que dispara debates caros para a arte contemporânea.
Nós nos perguntamos: Por que temos que aceitar que atores e atrizes cisgêneros interpretem personagens Trans? Por que não chamam artistas Trans para interpretar um personagem Trans? Por que não convidam artistas Trans também para escrever/produzir/trabalhar/ colaborar/participar dessa história/estória, produção, grupos e coletivos artísticos/ Sets/camarins/estúdios? Primeiro, porque o corpo trans é sistematicamente estigmatizado, hiper-sexualizado, caricaturado, fetichizado, zootificado, desumanizado e risível. Precisamos conversar como somos retratades pela grande mídia, pelos coletivos e pelos grupos artísticos; no cinema, nos canais do Youtube, que, na sua grande maioria, nos trata de forma preconceituosa/transfóbica/errônea/caricatural/sexualizada/fetichizada, que muitas vezes só reforça mais estereótipos contribuindo ainda mais para a exclusão dos nossos corpos Trans.
O Manifesto completo está disponível aqui.
Referências
BUTLER, Judith. Sujeitos do sexo/gênero/desejo in Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2003.
BÉRGSON, Henry, 1859-1941. O riso: Tradução Ivone Castilho Benedetti – são Paulo: Martins Fontes, 2001.
CARRILLO, Jesús. PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado. Revista Poiésis, n. 15, p 47-71. Julho de 2010.
MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: arte ativista e ação coletiva. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2011.
PAVIS, Patrice, (1947) A Análise dos espetáculos: Teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. Tradução Sergio Sálvia Coelho – 2a edição. São Paulo. Perspectiva 2008.
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? 1942. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos pereira Feitosa,André Pereira Feitosa. Belo Horizonte. Editora UFMG 2010.
ROMANO, Lúcia Regina Vieira. De quem é esse corpo? – A Performatividade do Feminino no Teatro Contemporâneo. São Paulo: L.R.V Romano, 2009
Ficha técnica
Patrocínio: Banco do Brasil
Atuação: Luis Lobianco
Texto: Rafael Souza-Ribeiro
Direção: Renato Carrera
Direção de Produção: Claudia Marques
Músicos em Cena: Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Sousa (flauta e voz), Rafael Bezerra (clarineta e voz)
Pesquisa Dramatúrgica: Luis Lobianco, Renato Carrera e Rafael Souza-Ribeiro
Investigação: Luis Lobianco e Rafael Souza-Ribeiro
Trilha Sonora e músicas compostas: Lúcio Zandonati
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Mina Quental
Figurino: Gilda Midani
Preparação Vocal: Simone Mazzer
Direção de Movimento: Marcia Rubin
Programação Visual: Daniel de Jesus
Produção Executiva: Renato Mascarenhas
Fotos de divulgação: Elisa Mendes e Aline Macedo
Produção: Fabrica de Eventos
Idealização: Luis Lobianco
Produção Local: Rubim Produções