Por Julia Guimarães :::
A ideia de intercalar cultura popular e tradição religiosa é cara à dramaturgia brasileira. O principal exemplar desta combinação talvez seja a emblemática peça “Auto da Compadecida”, do recém-falecido escritor paraibano Ariano Suassuna. É também essa combinação que estrutura “Sacra Folia”, texto de Luís Alberto de Abreu encenado pela gaúcha Cia. Stravaganza di Teatro na IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.
Na proposta de Abreu, o foco recai sobre a história de perseguição da sagrada família, que, ao fugir de Herodes, erra o caminho e vem parar no Brasil. Esse será apenas o primeiro de uma série de quiproquós que dão graça à trama, situada em diversos pontos do país, numa espécie de ‘road-movie’ teatral. A presença do malandro atrapalhado João Teité, cuja função na peça é conduzir a sagrada família até Belém, remete a toda uma linhagem de protagonistas da dramaturgia brasileira que driblam a fome com a esperteza, e mantêm sempre um pé na amoralidade.
A montagem da Cia. Stravaganza, que já acumula 12 anos de estrada, se vale também da tradição popular da rua para construir sua teatralidade. A aposta na simplicidade e eficácia dos elementos cênicos comuns a essa linguagem aparece, por exemplo, no uso da trilha sonora ao vivo, na disposição em formato de arena, no distanciamento ator-personagem. É visível também na maquiagem e figurinos próprios a uma estética mambembe, que abusa da estilização e de diversos adereços para caracterizar seus personagens.
A transposição da narrativa de fuga da sagrada família para o Brasil dialoga com aspectos do nosso contexto. Logo no prólogo, o episódio de infanticídio conhecido como “O Massacre dos Inocentes”, protagonizado por Herodes, é situado no Rio de Janeiro, em relato que faz lembrar a Chacina da Candelária. No ambiente brasileiro, como o próprio nome do espetáculo alude, o que é sacro se torna profano: Maria chama o marido de Zé enquanto troca as fraldas do menino Jesus, a Belém da Judeia é confundida por João Teité com Belém do Pará e o Egito é um lugar ‘pra lá de Goiás’.
Por vezes, a proposta de dessacralizar se confunde com a piada fácil e a encenação deixa que o riso apareça em primeiro plano, quando a dinâmica do texto já extrairia graça por si só. Além disso, talvez pela extensa trajetória, o espetáculo carece de apuro técnico, por exemplo, no jogo entre ação e trilha sonora. A própria estética de rua do espetáculo também ousa pouco em sua capacidade de reinventar uma forma já bastante explorada e nem sempre faz jus ao pedido, feito logo no prólogo, de que o público usasse ao máximo sua imaginação.
Já os atores, especialmente o intérprete de João Teité, demonstram familiaridade com seus personagens e cumplicidade entre si, o que, por consequência, os aproxima do público. Na apresentação do dia 8 de agosto, contudo, tal aproximação foi dificultada pela chuva. Por conta dela, o espaço da encenação foi transferido da rampa do CCSP para a Sala Adoniran Barbosa. Assim, a troca com os espectadores sentados nas cadeiras e na arquibancada superior teve como entrave a distância física.
Realidade cada vez mais rara no Brasil, a permanência de um espetáculo por tanto tempo no repertório de um grupo parece ter relação direta com a universalidade estética e temática presentes em cena, emolduradas pela dramaturgia criativa de Luís Alberto de Abreu. No entanto, por sua própria condição de arte viva, necessita de uma intensa e constante reinvenção para preservar sua potência de presença.
.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Maria Eugênia de Menezes, do Teatrojornal, aqui.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.