— por Bremmer Guimarães e Igor Leal —
Crítica a partir de “Partilha de uma Vivência”, da Ong Transvest.
Esta crítica começa com uma autocrítica e uma esperança de renovação. Somos dois artistas e críticos gueis e cisgênero. Em muitos momentos desse processo de criação e costura de olhares, impressões e atravessamentos, conversamos e nos provocamos sobre os desafios de escrever sobre um trabalho artístico que traz atrizes e atores transgênero em cena e na grande maioria da equipe criadora. Um trabalho que já no título se revela como a partilha de uma vivência. Experiência. Vivências que não são as nossas, mas que foram compartilhadas por meio da arte e da política.
Mesmo que toda subjetividade traga uma vivência diferente, algumas vivências ainda são mais visibilizadas do que outras. Dentre muitas reflexões, nos atentamos para o fato de que, se a ocupação de artistas transexuais ainda é rara no palco e em outras funções mais próximas do considerado explicitamente criativo nas artes cênicas, como na direção e na dramaturgia, ela é ainda mais desconhecida na crítica teatral. Um cenário que precisa ser renovado para que a reflexão e a sensibilização sobre o teatro e as artes se potencializem ainda mais em nossa sociedade.
A discussão sobre a representatividade de identidades trans no teatro, no cinema e na televisão vem ganhando cada vez mais destaque na arte, na mídia e na esfera pública. Questiona-se o fato de as subjetividades de travestis e transexuais serem negligenciadas em diversas obras, dando lugar a uma representação estereotipada e preconceituosa, que reforça o gesto de tornar exóticas as pessoas transgênero. Podemos perceber isso nas caricaturas de muitas comédias, estruturadas a partir de um humor transfóbico, ou em dramas moralistas nos quais as figuras trans são sempre subjugadas à prostituição e à marginalidade.
Além disso, mesmo em projetos nos quais parece existir sensibilidade e tentativa de abordagem mais aprofundada das figuras LGBTs, sujeitos trans continuam sendo interpretadas por atrizes e atores cis, geralmente em produções que são compostas apenas por profissionais cisgênero em toda a ficha técnica. A manutenção dessa prática traz à tona a discriminação e restrição de acesso a determinados espaços com as quais artistas transexuais precisam lidar diariamente. Ignoram-se suas vivências e também o fato de que muitos cursos e escolas de atuação no país ainda não foram capazes de romper uma lógica cisnormativa e binária de organização da sociedade, o que reflete diretamente na educação, na formação artística e, consequentemente, no mercado de trabalho das artes cênicas.
Em “Partilha de uma Vivência”, experimento cênico da oficina TransTeatro da ONG TRANSVEST, ministrada por Odilon Esteves (ator na companhia Luna Lunera), apresentado no Museu da Moda de Belo Horizonte, essas discussões sobre representatividade ganham densidade político-poética, evocando reflexões importantes na cena teatral de Belo Horizonte. Se a iniciativa de criar um curso de teatro voltado para pessoas transexuais já é, por si só, uma subversão do pensamento conservador sobre gênero e sexualidade ainda presente nas instituições de arte, evidenciando o caráter político da apresentação, o percurso compartilhado no palco é também uma subversão da linguagem, da forma como fazemos teatro por, com, para e sobre pessoas trans.
O trabalho compartilhado com o público é um breve exercício cênico e uma partilha acerca das vivências transexuais, que perfuram a dívida histórica que temos com a comunidade T. A dívida de Odilon Esteves com Cíntia (personagem que interpretou na minissérie “Queridos Amigos”). A dívida das escolas que rejeitam e expulsam seus alunes. A dívida nossa enquanto críticos e espectadores com o material vivenciado. A dívida da classe artística com tantas pessoas que há anos vêm sendo material criativo de uma arte que as impede de serem donas de si, que ainda se pauta pela representação. Mesmo quando o intuito é conscientizar, não se percebe que essa representação é, muitas vezes, excludente.
Gayatri Spivak, escritora indiana e autora de “Pode o Subalterno Falar?”, obra referência do pós-colonialismo, apresenta questionamentos sobre a possibilidade de sujeitos oprimidos “falarem” ou terem autonomia. A autora chama atenção para a dificuldade das minorias em produzir discursos e tomarem posse de sua própria representação. Isso devido à impossibilidade de se apropriarem efetivamente das condições materiais de existência – a descontinuidade entre a consciência e a transformação. Na análise da escritora, representação aparece como dois sentidos: o “falar por”, como dimensão política, e o “re-presentar”, como questão estética. Para ela, estas duas dimensões estão intrinsecamente ligadas, pois em ambas pressupõe-se um falante e um ouvinte. A transformação está na concretude da possibilidade de falar de si. Possibilidade que em “Partilha de uma Vivência” se efetiva, enquanto ritual teatral, e da qual se espera uma possibilidade de transformação contínua, também nas performances do nosso cotidiano.
A primeira cena do experimento nos convoca para a conscientização sobre a exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho. E é importante percebermos mais uma vez que essa exclusão também abrange os espaços de trabalhadoras e trabalhadores no teatro e diversas artes. Dando corporeidade e voz a personagens no contexto de uma entrevista de emprego, as atuantes desenvolvem um diálogo que detona como o reconhecimento do nome social ainda é ignorado por muitas instituições e empresas.
Com artistas trans interpretando ao mesmo tempo sujeitos cisgênero e transgênero, a cena complexifica o debate sobre a neutralidade de gênero da atriz e do ator — justificativa muitas vezes utilizada por produções cissexistas para críticas recebidas quando atrizes e atores cisgêneros são escalados para interpretar trans, negando a transfobia e a falta de empatia que muitas vezes existe por trás dessas escolhas de elenco. Ao se apropriarem da “paródia cisgênera”, as atuantes desnaturalizam os códigos de gênero (masculino e feminino) de maneira estratégica, gerando uma cena que debocha e ressignifica os dispositivos de representatividade na organização do Estado.
Além disso, é importante também nos atentarmos para a cooptação da “cultura do lacre” pela indústria cultural. Além de representarem uma identificação muito restrita de nossas realidades, a espetacularização de subjetividades LGBTQ têm se tornado cada vez mais um mecanismo de publicidade e incentivo ao consumo, em geral com pouco apoio efetivo à luta contra as desigualdades sociais e econômicas, que atingem fortemente a população transgênero. Como dito pelo diretor Lui Rodrigues, também homem trans, após a apresentação do trabalho, “o dinheiro não chega até aqui!”.
Ainda sobre os códigos de gênero e suas materialidades, vale destacar a apresentação dos corpos. As atrizes quando nuas censuravam os mamilos, já o ator permanecia sem camisa com os seios sem censura, borrando o pensamento biológico cisnormativo. O que poderia ser uma reprodução das lógicas normativas que permitem homens permanecerem sem camisa e censura com tarjas os mamilos das mamas das mulheres, nesse caso é a apropriação transformadora dos códigos de gêneros disponíveis socialmente.
Outra cena do trabalho se destaca ao desenvolver, a partir da performance de três diferentes vozes, a narrativa de uma mesma história de vida, uma autobiografia em comum. A proposta cênica denuncia certo determinismo nas experiências da população trans, dado pelas forças sociais. Mesmo com esse determinismo social que nos impele a um “modelo trans”, vemos uma diversidade de possibilidades de experiências e subjetividades trans. Questões e singularidades de vivências múltiplas, multiplicidade de corpos e afetos. Uma imensidão de possibilidades de trânsito entre as identidades. Vidas-poesias construídas com tão pouco e diante de tanta precariedade e vulnerabilidade.
Após a apresentação no Museu da Moda, as atrizes e a equipe do processo puderam também compartilhar seus depoimentos com o público, potencializando mais ainda a experiência teatral. Performatividade que não se encerra apenas no que já se configura como espetacular. É uma luta que transborda o teatro. Que revela a importância de sua função social. Numa das muitas falas potentes dessa experiência, uma atriz denuncia como o teatro ainda é restringido à população trans. “Como fazer e gostar de algo que você nem conhece?”. Em tempos cada vez mais brutos, de intolerância e violência, o teatro é capaz de transformar.
Partilha de uma Vivência
Direção: Lui Rodrigues e Odilon Esteves.
Atuação: Yasmim Melo, Fabíolla Amanda Martins, Isabella Rayssa, Sthephanny Di Monaco Esteves, Mychelly Andrade, Gui Xavier e Marcel Rms.
Criação coletiva.