Por Maria Eugênia de Menezes – Teatrojornal (*)
Dramas e tragédias contemporâneos têm atravessado a programação da MITsp. As problemáticas de nosso tempo contaminam as obras. A tal ponto que, mesmo ao lidar com textos que acreditávamos suspensos na história – atemporais -, os criadores são capazes de reposicioná-los, contaminando-os de presente e abrindo a possibilidade de insuspeitas leituras. Nas mãos do lituano Oskaras Koršunovas, Hamlet permanece a repercutir a angústia do príncipe da Dinamarca, dividido entre os deveres de herdeiro real e as vontades do indivíduo. Mas adquire também os contornos de uma crise que ainda não soubemos nomear, um mal-estar difuso que vemos tomar as ruas e acorrer aos consultórios médicos em busca de alívio.
Fotos de Dmitrijus Matvejevas |
A recusa em lidar com o imponderável embasa o comportamento do homem que se sabe só no mundo. Apartado dos deuses, ele tem apenas a si mesmo como alicerce. A lógica da mercadoria, que incita a ‘minimizar’ riscos e buscar ‘investimentos’ seguros, espraiou-se para a prática do sujeito. Mecanismos da publicidade e da propaganda guiam condutas: precisamos nos diferenciar dos ‘concorrentes’, estar constantemente expostos nas vitrines.
Na montagem da OKT – Oskaras Koršunovas Theater – a ficção de Shakespeare torna-se também o relato da quebra da passividade. Hamlet é aquele que ousa contradizer. Em seu infortúnio, não renega o medo. Abraça-o. Veste-se dos próprios terrores e parte para o enfrentamento. O que aparta o personagem-título daqueles que o cercam é sua desconfiança. Ofélia quer crer no amor que ele diz devotar-lhe. Gertrudes prefere a ignorância a ter o coração partido em dois. Laertes precisa seguir convicto de que sua família foi aniquilada por um sanguinário e cruel Hamlet e não pela própria imprudência. Nenhum deles levanta suspeitas. Todos permanecem imobilizados em sua fé cega.
O encenador revela essas contradições sem recorrer a transposições temporais ou preocupar-se com efeitos de realismo. Na sua montagem, tudo soa artificial. O teatro não é um retrato da vida. Será antes sua imagem invertida, deformada, aumentada. Na cenografia proposta, o espectador é remetido imediatamente ao ambiente das coxias. Como se observasse atores na intimidade de seus camarins.
Belas soluções cênicas resultam dessa opção. Em sua predileção pela artesania (e a consequente recusa aos recursos tecnológicos), a peça nos faz compactuar com verdades que não existem fora de seus limites: só ali, um ator vestido de rato é capaz de evocar o ambiente pútrido da política, uma caveira pode ser tanto o cadáver de Yorick, o bobo da corte, quanto a taça de onde a rainha sorverá o veneno mortal.
Antes de o conhecido enredo começar, os intérpretes miram-se detidamente no espelho e questionam em voz cada vez mais alta: ‘quem é você?’. Nos últimos cem anos, as teorias de Sigmund Freud iluminaram a hesitação de Hamlet. Talvez, porém, as teorias de Lacan nos tragam ferramentas mais consistentes para mirar Shakespeare a partir da perspectiva do século 21. A descrição lacaniana da fase do espelho – que ocorre entre os seis e os 18 meses de vida do bebê – pode soar oportuna.
Quando assume uma imagem, o sujeito se transforma. É nesse reflexo que aprenderá a distinguir-se como indivíduo. Mas não só. A miragem de si próprio é ainda a chave para enxergar o outro. Entendê-lo como diferente. Reconhecê-lo como semelhante. Em seu jogo de espelhamentos, Koršunovas dá um mesmo rosto ao rei e a seu algoz. Banha no mesmo sangue, Hamlet e Claudio.
(*) Este texto é parte das ações do Coletivo de Críticos na MITsp 2014.