— por Francisco Mallmann —
Crítica a partir do espetáculo Levante!, de Fernando Proença e Renata Roel.
Nós estávamos nos buscando, estávamos dedicados a encontrar quem dissesse e pensasse e fizesse e criasse coisas que nos indicassem caminhos possíveis. Estávamos um tanto desesperados, é verdade. Talvez ainda estejamos. Acho que ainda estamos. Nós estávamos a procura de vozes lúcidas e posicionamentos críticos, sem saber o que era isso, exatamente. Nós estávamos percebendo algumas coisas. Estávamos reconsiderando as formas de fazer, dizer e saber. Estávamos querendo ter interlocutores sinceros, sensíveis e honestos. Alguns de nós estavam se calando, para ouvir. Outros de nós estavam finalmente tomando a palavra. Estávamos empenhados em descobrir a verdade, entendendo-a complexa e polifônica. Estávamos compreendendo a transitoriedade e a ética disso tudo. Estávamos negando e nos desfazendo de coisas que perderam o sentido, para nós. Estávamos dando as mãos, desconfiados, mas dando as mãos. Estávamos nos deparando com outros corpos, outras materialidades e discursos no interior das palavras luta, resistência, ocupação, manifestação e militância. Nós estávamos indo às ruas. Talvez ainda estejamos. Acho que ainda estamos. Estávamos mudando ou verticalizando as nossas pesquisas, os nossos projetos, os processos. Nós estávamos preocupados, mas também estávamos fortalecendo redes, criando novas, usando as redes sociais. Nós estávamos envergonhados, assustados, correndo riscos. Nós estávamos promovendo encontros, precisando deles. Nós estávamos atentos. Talvez ainda estejamos. Eu acho que ainda estamos. Nós estávamos tentando nos levantar. Nós conseguimos, aqui.
É porque Levante! (1) , de Fernando de Proença e Renata Roel, mobiliza várias camadas do que chamamos política que eu me disponho a refletir sobre esse trabalho, um dos últimos que vi em Curitiba em 2016. Esse texto é uma proposta de articular uma visão de arte que resiste “à inércia romântica” e evita “mitifica-la enquanto esfera outra, anhistórica, da ação humana”. Entendendo que “a arte não está incólume, a arte não está inocente”, já que considerá-la inocente é uma “ideia retro-utópica perigosa” – porque, dessa forma, ela seria um “horizonte salutar extramundano” e, pelo contrário, a arte “está sempre no mundo (…) exposta às forças do mundo, transformando-se também numa delas” (2) .
É Silvina Rodrigues Lopes quem afirma que “tanto a arte como a política fazem parte dos processos de individuação pelos quais devimos aquilo que somos” e que “arte e política são ambas em parte invenções, partilham como tal a capacidade de sentir e pensar; o que faz corte entre elas, que as separa e impede que as consideremos em termos de subsunção, analogia ou simetria é a instauração de tipos de relação diferentes entre invenção e finalidade”. A arte seria “um dos nomes do humano enquanto abertura, enquanto possibilidade de o subsistir se exceder no existir” (3).
Promovendo uma associação direta com o “levantar-se”, os literais e os metafóricos, que, inicialmente, os artistas de Levante! passam a produzir camadas de significado para o que pode ser lido como uma experiência artístico-política, mobilizando imaginários destas e de outras terras, se afastando, no entanto, de uma política hipotética e verticalizando uma noção de afetividade sensorial, física, presencial. Políticas, no lugar de política. Levantar, afinal, também “caracteriza-se pela capacidade das pessoas se organizarem para levantar outro sistema econômico, social e político” (4).
Na bilheteria do Teatro Cleon Jacques, “Fica de pé” e “Fora Temer” são as duas frases carimbadas no corpo dos espectadores. Poderia ser faixa, cartaz, pichação, mas não. É uma espécie de ingresso, um passe, um convite. Palavra de ordem, como chamam. Fica de pé, público. Fora temer, que já não é (sobre)nome, se tornou a síntese de um chamamento de resistência, que faz lembrar o absurdo que é sentir medo por esses dias – os medos de mulheres, de lgbts, de negros, de dissidentes, dos marginalizados, dos periféricos, dos alheios.
Então, teatro: espaço vazio, totalmente vazio, não fossem os corpos, que adentram. Um susto, teatro sem poltrona, sem palco, sem blackout, sem distinção. Ficam de pé, artista e público. A obra se “afirmando uma igualdade fora do poder” (5), um exercício efetivo de convívio, “estar junto é a grande transgressão” (6). Foi quando empilharam a primeira cadeira que pensei sobre a sincera atualidade que o trabalho tinha. A mesma imagem em escolas e universidades, na época ocupadas. Cadeiras empilhadas, hora fazendo barreiras, impedindo passagens, hora como prática estética de um protesto do qual a cadeira escolar é símbolo. A mesma imagem, muito diferente. Arte.
Foi quando empilharam a primeira cadeira que lembrei do texto de Peter Pál Pelbart, “Carta aberta aos secundaristas” em que diz: “vocês introduziram em paralelo ao teatro esgotado e degradado da representação institucional uma nova coreografia política, carreando uma atmosfera de grande frescor, um afeto coletivo inusitado, uma dinâmica de proliferação e contágio” (7). Foi quando empilharam a primeira cadeira que pensei sobre como esse trabalho não pode acontecer sem uma participação concreta, factual de quem escolhe estar. É um trabalho contra a imunidade. É um trabalho para pegar com as mãos, mover o corpo todo. Um jogo, um ofício colaborativo, uma coreografia que se faz processo lúcido sobre as reivindicações de quem acredita-se parte de um corpo-maior, cujos contornos se moldam em trânsito, em risco. Não há canto, esconderijo ou certeza. Está ativada a visualidade das relações tridimensionais, para “que em todo o percurso se reconheça movimentos” (8). Como em uma manifestação, em que as palmas, os gritos, os passos vão sendo feitos coletivamente, de maneira que, muito rapidamente, todos entendem o que é para se fazer. E fazem, desenvolvendo consciência em circulação. É para se empilhar cadeiras, aqui. Para se construir escultura, cenário, cena. É para descobrir-fazendo o que fazer – os melhores modos para não “destruir” nada do que se está “construindo”.
O lugar de onde se fala e se produz parece fluir entre a identificação rápida de elementos tais como o megafone – que inteligentemente é dissolvido em outros usos, em novas maneiras de manusear – e imagens sofisticadas, distantes da permuta fácil que exerce o clichê, como o cenário-figurino, a performance de um corpo-escultura-instalação de Renata Roel, que dança um carnaval minimalista, paradoxalmente excessivo e pesado. Esse é também um modo de se reconhecer o país, o nosso. Híbrido, interseccional, complexo, experimental, feito um trabalho “na fricção entre dança e teatro”. Estão ali os confetes do carnaval, festa em que o corpo dança na rua, despido, inebriado – uma festa que nas grandes cidades exige policiamento e vigilância, o que permite a criação de um terreno efêmero em que samba livre um corpo protegido por arsenal bélico. As cores do papel picado só são festa para quem assim a pode experenciar. O movimento, aqui, não lembra a continuidade de uma festa-exportação, ele aponta para ele mesmo, para a sua própria dinâmica, que parece invocar as outras possibilidades, talvez esquecidas, talvez silenciadas. Um movimento de desejo coletivo que cruza a diversidade de “corpos, sexos e tipos” e rememora que o ‘comum’ “tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a conexão produtiva entre os circuitos vários, com a inteligência coletiva, com uma sensorialidade ampliada” (9).
Volto ao texto de Pelbart para destacar uma questão que não me parece coincidência ao ser colocada ao lado desse trabalho: “Como traduzir em propostas novas maneiras de exercer a potência, de fazer valer o desejo, de expressar a libido coletiva, de driblar as hierarquias, de fazer circular o discurso sem ficar à mercê da lógica da representação, de redesenhar a escola [o teatro, a dança?], de fazer ruptura, dissenso?” (10)
Manter-se de pé é uma alternativa, inicial ou não, a essa pergunta. Talvez, de pé, esses corpos estejam mais aptos a ver/perceber de outro jeito, já que é sobre mudança, autocrítica e novos rumos que estamos falando, incessantemente. “Por que há tanto empenho em colocar todo mundo sentado?”, os artistas se perguntam, falando sobre os nossos modos: comer, escrever, ler, pensar, ouvir, ver, viver: sentados. Por que tanto empenho para estar sempre sentado? É uma questão que atravessa, inclusive, a raiz etimológica entre sentar e sedar, eles nos avisam. “O processo civilizatório da humanidade é um processo de sentação” (11). Precisamos de vocês para fazer cena, cenário, movimento, arte, trabalho, política eles manifestam, sem vaidade e didatismo. Isso porque, parecem ter a consciência de que “o que faz falta à situação não é a ‘cólera das pessoas’ ou a penúria, não é a boa vontade dos militantes nem a difusão da consciência crítica, nem mesmo a multiplicação do gesto anarquista”. Levante! entende que “nos falta uma percepção partilhada da situação”, seja para empilhar cadeiras ou para intenções mais vastas, macroscópicas, porque “sem essa ligatura, os gestos se apagam no nada e sem deixar vestígios, as vidas têm a textura dos sonhos, e os levantes terminam nos livros escolares”.
É demandando a ação efetiva que Levante! nos insere em uma esfera de convivência que não nega as diferenças, o dissenso, mas que faz deles fundamento, e que pede, antes mesmo de se atentar às conexões complementares, uma atitude, uma posição, um posicionamento. Nós estávamos tentando nos levantar. Nós conseguimos, aqui. E agora?
(1) Concepção e Performance: Renata Roel e Fernando de Proença | Colaboração e Acompanhamento Artístico: Cinthia Kunifas e Sofia Neuparth | Dramaturgia: Candida Monte | Texto em off: Para o Pior Avante de Samuel Beckett/ Tradução e adaptação de Roberto Alvim | Edição Sonora: Vadeco Schettini | Iluminação: Wagner Corrêa | Consultoria de Figurino: Amabilis de Jesus | Registro Fotográfico: Lídia Ueta | Designer gráfico, Teaser e Registro de Vídeo: Ulisses Sato | Assessoria de Imprensa: Fernando de Proença | Produção Executiva: Expressão Criação e Produção Cultural.
(2) MANCHEV, Boyan. A persistência das formas. Para uma nova política aistética. In: Persistência da Obra – Arte e Política. Lisboa: Assírio e Alvim, 2011, p.31.
(3) LOPES, Silvina Rodrigues. Precedências desajustadas. In: Persistência da Obra – Arte e Política. Lisboa: Assírio e Alvim, 2011, p. 46-47.
(4) Do material textual de LEVANTE!, concedido por Fernando de Proença.
(5) LOPES, Silvina Rodrigues. Precedências desajustadas. In: Persistência da Obra – Arte e Política. Lisboa: Assírio e Alvim, 2011, p. 52.
(6) Do material textual de LEVANTE!, concedido por Fernando de Proença.
(7) PELBART, Peter Pál. Carta aberta aos secundaristas. São Paulo: n-1, 2016. p. 6-7.
(8) Do material textual de LEVANTE!, concedido por Fernando de Proença.
(9) PELBART, Peter Pál. Carta aberta aos secundaristas. São Paulo: n-1, 2016. p.19.
(10) Ibidem, p. 17.
(11) Material textual LEVANTE!, concedido por Fernando de Proença.
(12) Comitê Invisível. Aos nossos amigos – Crise e insurreição. São Paulo: n-1, 2016. p. 18-19.