Crítica a partir da performance A gente combinamos de não morrer, de Cíntia Guedes e Jota Mombaça apresentada na programação do FIT-BH 2018.
– por Victor Guimarães –
Fotos de Guto Muniz/ FIT-BH
Um som que parece badalada de sino anuncia o início e conduz o público pelas escadas de madeira do Centro Cultural da UFMG. Na subida, o ruído que parecia metálico se revela vítreo e chegamos a uma sala ampla, de janela aberta para a rua. Jota Mombaça, vestida de preto, tem diante de si uma mesa, contendo os seguintes materiais: garrafas de vidro transparentes, chumaços de linha vermelha, galhos de árvore cortados. No chão da sala, em frente à mesa, um tecido branco com nomes escritos: Marielle, Gisberta, Theusa, muitas. O barulho agora identificado vem do martelo que quebra a primeira garrafa. Vestindo luvas, a performer parte o vidro e remexe os estilhaços em busca dos mais pontiagudos. Separa-os. Retira as luvas. Escolhe um pedaço de pau e uma ponta de vidro. Ata cuidadosamente a lâmina à haste com a linha vermelha. Ergue a faca recém-fabricada, exibe sua fisionomia descrevendo um arco com a mão que vai de um lado a outro da sala. Num segundo movimento semicircular simétrico, a faca – agora em riste – se dirige a cada espectador. Em seguida ela deixa a mesa, se dirige ao centro da sala e deposita a arma ao lado de um dos nomes. E a rotina recomeça.
A enumeração das ações não é fortuita. Tudo é metódico, eloquente, implacável. A performance consistirá, logo percebemos, numa repetição ininterrupta do mesmo ritual, até que não sobre nenhuma garrafa intacta. Ao lado da mesa, Cíntia Guedes tem diante de si um pedestal, um microfone, livros, vários materiais impressos. À medida que vemos a repetição incessante das ações e dos gestos bem marcados, ela lê fragmentos de ensaios teóricos, ficções, poemas. No horizonte das leituras, o genocídio cotidiano e as táticas de sobrevivência das vidas não normativas, os processos de instauração da violência nos mais diversos espaços – da universidade à rua – e as relações de poder envolvidas em seu enfrentamento. A leitura é monotônica, ainda que vez por outra não seja possível segurar o arroubo emocional. Há, nos gestos e nas palavras das performers, uma secura fundamental. A quase homofonia entre luto e luta, que a ruína do país obriga a conjugar diariamente, é aqui matéria de invenção cênica: o silêncio contundente da visita ao túmulo é também o da véspera da batalha. Em vez de flores, uma coroa-faca para cada uma das que foram assassinadas.
O espaço é crucial: o chão de madeira onde nos sentamos desconfortáveis, a ausência de ar condicionado na noite quente, a permeabilidade inevitável aos ruídos da rua que entram pela janela. O barulho denso vem de uma avenida localizada numa região da cidade onde o país se precipita: a cerveja barata e o sangue, a alegria ébria e o desespero da fome. Não muito longe dali uma travesti foi assassinada ontem e outra será amanhã. Mas também é contundente o abrigo provisório no centro cultural da universidade, essa instituição que aparentemente liberta, mas no fundo produz novas violências, novos aprisionamentos para os corpos e as vozes dissidentes, como nos diz nalgum momento o texto.
Há uma literalidade fundante em A gente combinamos de não morrer: se os textos elaboram arquiteturas simbólicas complexas para o luto e para a luta, a ação consiste direta e literalmente em fabricar facas durante uma hora diante da plateia. De um lado, a ficção performática consiste em partilhar com as companheiras de luta uma ciência prática, como os Black Panthers que iam ver os filmes sobre a guerrilha anticolonial no cinema para aprender a fabricar coquetéis molotov. Mas a branquitude tóxica, a heteronormatividade assassina também habitam a sala, e por isso é crucial que sejam dois os gestos de exibição do artefato bélico, que a faca seja mostrada e em seguida apontada para cada um de nós. “O aliado não é uma categoria estável” – a única frase que é repetida três vezes, a que ressoa fundo nos ouvidos de quem, por mais que deseje se desidentificar dela, faz parte da norma.
Em seu ensaio “Pode um cu mestiço falar?”, Jota Mombaça invertia a resposta negativa de Gayatri Spivak e afirmava uma aposta na subalternidade como produtora de um ruído fundamental na episteme hegemônica: “Quiçá os saberes-ruído, subalternizados por regimes de verdade instaurados pelo cânone acadêmico-científico, não sejam legíveis como saberes, contudo os deslocamentos de que resultam atravessam infecciosamente as tonalidades do conhecimento, perturbando com estridências sem inscrição a escuta canônica”. Se os textos de A gente combinamos de não morrer dialogam com o cânone, falam a língua do poder para corroê-la por dentro, o ritual repetitivo e silencioso produz, no espectador, um ruído indomesticado, um estado dissonante do corpo, uma forma nova de desconforto.
Seria possível produzir sentido a partir de cada elemento metafórico, destacar o vermelho da linha que aos poucos se deposita nas mãos da performer, elaborar a partir de cada pedaço de texto. Mas o efeito duradouro de A gente combinamos de não morrer é essa estridência aguda de um vidro a partir-se, o silêncio ruidoso dessa faca em riste que temos de encarar uma e outra vez, uma e outra vez. Como nos diz Ana Pi em seu filme NoirBlue (2017), “quando o invisível se torna visível, o olho demora a acostumar”. Quando um ruído opaco adentra a cena, o ouvido tem de se haver com uma frequência para a qual a língua colonial ainda não inventou um nome.