– por Marcos Antônio Alexandre –
Faculdade de Letras-UFMG/CNPq
15 de agosto de 2023.
15 de agosto de 2023. Belo Horizonte.
15 de agosto de 2023. Feriado em BH, dia de Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira da cidade…
Dia de feriado e, como de costume, durmo mais que eu devia. Ao acordar e acessar as redes sociais, tomo conhecimento da triste notícia do falecimento de Léa Garcia. Fico por alguns instantes perplexo tentando assimilar a informação, que me deixou muito triste. Como fã incondicional do trabalho da artista, lembrei-me imediatamente do momento em que Léa Garcia esteve entre nós, em abril de 2014, no 4° Colóquio do NEIA – Centenário Abdias Nascimento, evento realizado na Faculdade de Letras e que tive o privilégio de ter sido um dos organizadores. Dona Léa Garcia foi uma das pessoas mais amáveis que tive o prazer de conhecer. Um doçura de pessoa, com um olhar carinhoso, um afago na voz e, sem dúvida, foi uma explosão de emoção ao receber o seu abraço fraterno e escutar suas palavras ternas e de incentivo destinadas a mim e a cada pessoa ali presente que a buscou para tirar uma foto para guardar como registro daquele momento inesquecível. Eu pude fazer vários cliques que hoje, emocionado, revisei antes de começar a escrever esse texto.
Foto: acervo pessoal do autor
Léa Garcia, nascida em 11 de março de 1933, no Rio de Janeiro, nos deixa, hoje, aos 90 anos, no Rio Grande do Sul, no dia em que seria receberia o Prêmio Oscarito, a honraria mais importante e tradicional do Festival de Gramado como umas das grandes artistas do cinema nacional; arte que ela foi pioneira com participações memoráveis, sendo ganhadora de quatro Kikitos pelo Festival de Gramado. Uma artista completa que, em sua trajetória irreparável, atuou em mais de cem trabalhos no cinema, no teatro e na televisão. Foi uma das integrantes do Teatro Experimental do Negro, grupo que integrou em 1951 e com o qual participou de várias montagens, com destaque para O Imperador Jones (1953) e para a sua atuação em Sortilégio: Mistério Negro (1957), dando protagonismo para a personagem Ifigênia, dividindo a cena com Abdias Nascimento, grande incentivador de sua carreira como atriz e com que foi casada. Ainda no teatro, participou da primeira montagem de Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes, em 1956, atuando também no filme Orfeu Negro, cuja participação lhe rendeu a indicação à Palma de Ouro de Cannes. Na televisão, participou de trabalhos memoráveis e inesquecíveis como Rosa, em Escrava Isaura (1976); Dalva, em Assim no céu como na terra (1970); Elza, em Selva de Pedra (1972); Leila, em Marina, (1980); Flaviana, em Dona Beija (1986); Natália, em A viagem (1994); Sebastiana, em Xica da Silva (1996); Cida, em Anjo Mau (1997); participando ainda de novelas como Suave Veneno (1999), O Clone (2000), Êta Mundo Bom (2016), Sol Nascente (2016), Mister Brau (2017) e minisséries e séries como Abolição (1988), Sob Pressão (2018), Carcereiros (2019), Anjo Renegado (2020) e Independências (2022). No cinema, além de Orfeu Negro (1956), entre outros trabalhos, destaque para seus papéis em produções como Ganga Zumba (1963), Compasso de Espera (1975), As filhas do vento (2005), Boca de Ouro (2020).
Se existe no mundo o cinema indiano, o cinema japonês, italiano, francês, inglês, americano, por que que não pode existir, no Brasil, também um cinema negro se nós somos sempre colocados à margem dentro do audiovisual ou de qualquer outra expressão artística? Então, ninguém melhor do que nós, do que o povo, pode falar bem de si mesmo. E, com relação a nós, essa é a verdade! (Léa Garcia)[1]
O legado que Léa Garcia deixa é imensurável. Como artista e uma das grandes intelectuais negras de nosso tempo, ela, assim como a também a inesquecível Dona Ruth de Souza, abriu os caminhos para uma imensidão de artistas negros e negras no cinema, no teatro e na televisão e é com essa percepção que, hoje, vi dezenas de pessoas conhecidas – artistas de vários seguimentos, pesquisadores e intelectuais negros e não negros –, mineiros e de várias regiões brasileiras, rendendo homenagens e dirigindo palavras de afeto e agradecimento por tudo que Dona Léa Garcia nos proporcionou com sua arte e suas ações realizadas em prol do fortalecimento da carreira de novos artistas pretos e pretas. A partir desta perspectiva, a artista foi a homenageada da 11ª temporada da segundaPRETA,[2] realizada online no período de 7 de março a 18 de abril de 2022, dia que contamos com a participação especial de Dona Lea, de forma online;[3] um momento inesquecível para todos e todas que seguem as atividades da segundaPRETA e que tiveram a possibilidade e o privilégio de testemunharem o encontro.
15 de agosto de 2023.
15 de agosto de 2023. Feriado em BH, dia de Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira da cidade…
Hoje, 15 de agosto de 2023, dia em que me organizei para escrever esse texto para o Horizonte da Cena e minha manhã foi atravessada pela notícia da passagem-encantamento de Léa Garcia. Cheguei a hesitar se, de fato, conseguiria escrever sobre o que havia programado: minhas impressões sobre a peça Matias e a Estrada Infinita do Tempo, da Cia Bando, coletivo composto por quatro artistas incríveis e que tanto admiro: Anderson, Andréa, Fabiana e Rainy: todos também contadores de histórias, que investigam o universo dos contos e dos mitos para transformá-los em espetáculos. Vi a montagem no Parque Municipal de Belo Horizonte, no dia 05 de agosto.
Foto de Pablo Bernardo
“Vai ver a eternidade seja a lembrança que deixamos nas pessoas…”
“Criar um tempo dentro do tempo…”
“Memória tem cor, memória tem peso? Quanto de memória cabe dentro de mim?”
Essas falas integram a bela dramaturgia assinada por Luciana Campos e foram anotadas no momento em que assisti ao espetáculo da Cia Bando. Aqui, são textos “soltos” pronunciados pela personagem Matias em seu percurso na busca das memórias afetivas vivenciadas com o irmão Bento. Não obstante, hoje, essas palavras ainda dizem muito em mim…
A Cia Bando é uma companhia de jovens artistas negros, que surge em 2017 a partir da estreia do espetáculo Abena, um espetáculo voltado para púbico infantojuvenil. Matias e a Estrada Infinita do Tempo é a mais nova incursão do grupo no universo infantil e, nesse trabalho, os intérpretes inovam ao trazer a temática da morte como uma proposta espetacular criada especialmente para as infâncias. No Instagram do grupo, é disponibilizada a sinopse da montagem:
Matias sempre acompanhou admirado as invenções do seu irmã Matias sempre acompanhou admirado as invenções de seu irmão mais velho, o Bento, que era curioso e atento a tudo que acontecia à sua volta. De repente, Bento fica doente e morre. Matias, então, parte em uma longa jornada para tentar trazer de volta o tempo alegre que viveu com seu irmão. O que ele vai encontrar nessa viagem?[4]
Assistindo à montagem, com Matias, somos convidados a entrarmos em um universo onírico cheio de histórias, encantamentos e fabulações. É interessante observar como o grupo aborda o tema sensível da morte, colocando a criança como sujeito atuante dentro do percurso de desenvolvimento do espetáculo. De alguma maneira, por meio de uma encenação lúdica, os integrantes da Bando interagem com seu público, fazendo com que as crianças e os adultos presentes possam se sentir encantados e tocados pela jornada empreendida pela personagem Matias na busca de suas memórias perdidas. Esses momentos o levarão ao encontro, onírico, com o irmão Bento, ou melhor ao encontro com o imaginário vivo que ele guarda do irmão por meio de suas lembranças. O sentimento de ausência sentido pela personagem e a ressignificação de seu luto se dão a partir do uso de jogos que, dramaturgicamente, justificam a inventividade do menino Matias, mas, sobretudo, cenicamente, permitem que os artistas demonstrem suas habilidades como intérpretes, o canto, o uso dos instrumentos de corda, sopro e percussão, o caminhar sobre as pernas de pau e com os pés de lata, o uso do catavento, que, simbolicamente, gira[5] e faz o mundo – a roda da vida – de Matias girar em torno de suas memórias.
Outros destaques da montagem são o figurino, o cenário e os adereços idealizados e confeccionados por Anderson Ferreira. Uma casa que se abre para o mundo e nela o público depara com dezenas de utensílios domésticos que representam muito mais do que são: rolos de papel higiênico, que são binóculos; panela que é volante de carro; caixa de papelão, que é cama, casa; bule, cabides, guarda-chuvas e inúmeros outros objetos para serem ressignificados pelas crianças e todo o público.
Foto de Pablo Bernardo
Em relação à atuação, as atrizes, Andréa, Fabiana, Rainy, e o ator, Anderson, se complementam. Cada uma/um, a sua maneira, empresta o melhor de si para vivenciar o Matias. Há uma sintonia muito preciosa no jogo que elas e ele estabelecem em cena, uma cumplicidade que se dá a partir de detalhes mínimos, que podem ser captados por meio dos olhares trocados, das músicas tocadas e cantadas, das histórias empreendidas pela personagem em sua viagem em busca da elaboração de seu luto e do melhor entendimento da perda do irmão. O público viaja com a personagem – e com o elenco – pelas diferentes cidades que ele chega: a Cidade Opaca, a Cidade das Lembranças e o Bosque Dentro de Mim; nomes muito simbólicos e que garantem o caráter de ludicidade proposto pela dramaturgia, mas que também presentificam a relação com a perda de um ente querido. Aqui, no espetáculo, tudo é explorado a partir do olhar do menino Matias; sem dúvida, um grande achado…
Como espectador e crítico, considero que a Cia Bando, com Matias e a Estrada Infinita do Tempo, cumpre com sua proposta e é bem sucedida no tratamento dado ao tema da morte para as infâncias. O tempo, a memória e a morte assumem funções importantes na trajetória da personagem Matias. Acredito que, aqui, a Cia Bando consegue falar da Morte, mas repercutindo uma celebração da vida e à vida, por meio da irmandade entre Bento e Matias.
Hoje, 15 de agosto de 2023, como um aliado da Cia Bando, a partir de seu espetáculo Matias e a Estrada Infinita do Tempo e de suas pesquisas negrorreferenciadas, eu busco repercutir a vida, e, como Matias busca o Bento dentro de si, eu continuarei buscando, dentro de mim (e dos meus), toda a força que Dona Léa Garcia vai continuar reverberando entre mim e em nós…
Retomo as palavras/reflexões de Matias: “Memória tem cor, memória tem peso? Quanto de memória cabe dentro de mim?” e acrescento: Quanto de memória cabe dentro de nós?…
Ficha Técnica:
Direção e direção musical: Tatá Santana
Preparação corporal para mascaramento: Diego Poça
Dramaturgia: Luciana Campos
Trilha sonora: Tata Santana
Atrizes e ator: Andréa Rodrigues, Rainy Campos, Fabiana Brasil, Anderson Ferreira
Figurino e cenário: Anderson Ferreira
Cenotécnica: Ana Elisa, Anderson Ferreira e Nilson Santos
Costureira: Célia Maria
Produção: Fabiana Brasil
Assistência de Produção: Suellen Sampaio
Assessoria de Imprensa: Fortalecência Assessoria – Mariana Cordeiro
[1] Transcrição a partir do depoimento para o documentário Memória Globo.
[2] A programação dessa temporada pode ser consultada em http://segundapreta.com/11a-temporada-online/.
[3] A participação pode ser conferida em https://www.youtube.com/watch?v=B2E_pXJAExw.
[4] Disponível em https://www.instagram.com/p/CvUjk92u9zA/?img_index=1.
[5] Há que se destacar que o dia em que tive a oportunidade de assistir ao espetáculo não houve vento suficiente para fazer o catavento girar.