Crítica a partir dos trabalhos Criança viada ou de como me disseram que eu era gay de Vinícius Bustani e direção de Paula Lice (BA) e Boca a boca de Kako Arancibia (MG).
– por Clóvis Domingos-
Fotos de: 1- Gabriel Bustani / 2- Andreia Carvalho
Sobreviver às marcas impostas pela virulência da linguagem implica elaborar estratégias de luta e criar processos de cura. A linguagem, como código social em sua força de significação e legitimação, pode se tornar totalitária e ferir corpos menores, considerados dissidentes, numa prática de vulnerabilidade imposta. Através de ações micropolíticas, artistas se colocam na tarefa de desmontagem de alguns discursos enfrentando com corpo e palavra as estruturas consolidadas de normatização e violência.
Assisti, na semana passada, dois trabalhos cênicos que se devotam a denunciar as opressões causadas pela “língua que mata” a partir de performances ancoradas em materiais autobiográficos que colocam o desnudar-se em movimento, as histórias pessoais em exposição, o real e o ficcional em fricção, os depoimentos transitando entre o íntimo e o público, entre o individual e o coletivo, entre dores e alegrias.
Criança viada ou de como me disseram que eu era gay de Vinícius Bustani e direção de Paula Lice (BA), apresentado no Teatro Espanca e Boca a boca de Kako Arancibia, (MG) realizada no La Movida Microteatro, abordam os efeitos devastadores dos preconceitos institucionalizados sobre a homossexualidade e a soropositividade, ao mesmo tempo que se revelam como dispositivos lúdicos, estéticos e insurgentes que buscam uma espécie de reparação simbólica (leia-se discursiva), capazes de inocular novas possibilidades de fabricação de sentidos e de produção de saúde para o corpo social.
Três pontos se entrecruzam nessas duas experiências: o espectador em atividade (seja desenhando, escrevendo ou abraçando) e proximidade física com os artistas, a utilização de elementos de luz a partir de pequenos e delicados suportes em consonância com as propostas que se oferecem e a produção de dramaturgias que, se num primeiro momento partem de relatos pessoais e confessionais, acabam depois se desdobrando em narrativas com forte pulsão de partilha coletiva. Autoescritas e reescritas de si numa poética das fronteiras, num deslizamento e zigue-zague entre autocentramento e linhas de fuga na exterioridade.
Ao se cercarem de suas dores, inquietações e experiências, os artistas ao mesmo tempo se mantêm distantes delas, uma vez que as mesmas já se encontram reconfiguradas a partir de arranjos e molduras que decorrem da criação de um “espaço potencial” (Winnicott), podendo assim entrar e sair dele mais protegidos.
“Isso do Eu” ou “isso doeu”?
Eu estava me aproximando da coisa mais forte que já me aconteceu.
Clarice Lispector.
Foto: Caio Lírio
Vinícius Bustani em Criança viada ou de como me disseram que eu era gay (apresentado dentro da programação do evento Escritas de Si e de Cena –realização do Neepec- Núcleo de Estudos em Estéticas do Performático e Experiência Comunicacional/UFMG) consegue criar um espetáculo que mistura palestra, sessão de terapia, show, teatro infantil e fragmentos de memória aliando humor e crítica. Trata-se de um monólogo (com forte teor didático para todos os públicos) que conta sua trajetória de saída do armário e como a homofobia se mostra presente nas vidas de pessoas LGBTQIA+ desde a infância, uma vez que não seguem a cartilha defendida de gênero e sexualidade. A leitura da carta enviada por e-mail aos seus irmãos contando sobre sua sexualidade é realizada pelos espectadores e como documento real emociona ao revelar os medos da não aceitação e do não enquadramento nos papeis esperados, num sensível apelo ao diálogo e à compreensão da diferença.
No título desse trabalho as questões da linguagem apontam para tensionamentos presentes no campo dos discursos. Seria “criança viada” um termo pejorativo ou afirmativo para se denominar uma expressão de um desejo? Aqui nesse ponto já temos um problema, uma luta com as palavras. O ideal ou politicamente correto seria dizer “homossexual”? O que a palavra “viado” carrega de estereótipos, de carga semântica veiculada à agressão e que reitera o insulto? Ou seria um termo a ser descolonizado, que inclusive já vem sendo revestido por novas figurações de afronta à linguagem heteronormativa estabelecida? Como escutar “e aí viado?”, de forma que não mais se machuque, mas pelo contrário, seja ouvido como enunciação de um jeito específico de amar, sentir e se relacionar?
O espetáculo, no título, também aponta para o fato de que, muitas vezes uma criança nem mesmo teria consciência (num primeiro momento) de suas preferências afetivo-sexuais ou ainda não encontraria meios de fabular mais livremente sobre ela, e que isso quase sempre chega informado e destinado pela linguagem dos outros através de palavras que ferem, inscrevem vergonha e sentimento de inferioridade, profetizam sentenças de morte. A ordem e a vigilância da “polícia de gênero” (Butler) se atualizam pelas bocas infantis e adolescentes, pelas vozes e murmúrios de amigos e professores, pela chacota de vizinhos e pelo olhar silencioso e acusador, quando não constrangedor e constrangido, de familiares. Muitos riem enquanto a criança viada chora. Daí a solidão, a depressão, o suicídio, a ferida cotidiana que muitas vezes acompanhará uma vida inteira. Cabeça e corpo em desajuste, razão e desejo em oposição, e a dignidade ferida, o amor adiado, o coração feito bomba-relógio.
Criança viada ou de como me disseram que eu era gay convida o público a se olhar, a reconhecer e assumir sua homofobia internalizada, a fazer contato com sua criança ferida, isto é, viada aqui é toda condição e diferença que pode ser alvo de intolerância: gordofobia, racismo, misoginia, pobreza, deficiência etc. Seria possível desviadar a viadagem de sua acepção primeira e identitária? Como formar uma comunidade viada que agregue singularidades e diversidades? Viada aqui é toda uma reunião de afetos, de vidas marcadas e rabiscadas por tatuagens cuja memória não se livra facilmente, daí a importância de se pensar numa política pela empatia, na cura mediada pelos encontros. O que pode e precisa ser curados são a ignorância, o trauma revivido, as lágrimas escondidas, enfim, o vírus de uma linguagem que rouba o desejo de estar vivo.
A cenografia minimalista, funcional e adaptável a todo tipo de espaço, permite que o fenômeno cênico possa abranger um número maior de pessoas, alçando o trabalho a níveis significativos e mais inclusivos para toda forma de encontro e interação. Os objetos cênicos remetem ao universo infantil e assumem, guardadas as devidas proporções, as funções de “objetos transicionais”, podendo permitir ao ator e aos espectadores ingressarem em suas infâncias, pela via do jogo poético.
Vinicius ao falar de si, fala de nós, e também fala de muita gente e com muita gente. Falar liberta? E o que você escuta, Vinícius? Quantas dores compartilhadas se somam à tua? Teu corpo dói? Há como apenas afetar e não ser afetado e atravessado pelas histórias de outros e outras? Quantos depoimentos você escuta depois do espetáculo? Quantas sensações são revolvidas? Mais do que um desabafo de uma vida, identifico nesse trabalho uma possibilidade de discussão em campo ampliado sobre temas tão difíceis como machismo e fragilidade, principalmente no que se refere às existências masculinas. Os lutos não vividos se transformando em lutas reanimadas através do gesto cênico.
“Estou brilhando de saúde”
“Nesse corpo foi detectado um vírus. Existem outros também: outros vírus, outras bactérias, das que fazem bem e das que fazem mal…Outros fungos, micróbios mil. Esse corpo aqui tem tempo, tem tanto tempo que eu acho quase impossível permanecer assim, limpinho… Não é assim que a gente diz”?
(Texto da cena)
Foto de Andreia Carvalho
Em Boca a Boca a temática sobre hiv e aids (em letras minúsculas) serve de gatilho para se conversar sobre vida, desejo e preconceito pela subversão da linguagem. Quando um corpo é limpo e quando ele está sujo? O performer Kako Arancibia nos propõe a criação de outros e novos imaginários para se pensar corpo, saúde, doença, “crime e castigo”. O portador do vírus seria um criminoso em meio a uma sociedade do espetáculo e da perpetuação da Saúde Perfeita? Seria seu crime visibilizar a precariedade dos corpos quando visitados por vírus e bactérias? Seria o hiv só mais um inimigo a ser combatido pela medicina (como o da gripe) caso sua contaminação não ocorresse pela relação sexual? O que é então que está por trás desse agente que causa tanto horror e pânico? Por que tanta sorofobia entre nós?
Não seria justamente a sorofobia uma epidemia que assola a troca de afetos e mina as relações de amor e amizade? Com quantas pessoas posithivas eu convivo? Eu namoraria alguém soropositivo mesmo sabendo que hoje o vírus tem tratamento eficiente ou os efeitos colaterais dos discursos e imagens ainda vigentes sobre o hiv me impedem de criar possibilidades de laços amorosos? Quem vai conseguir se preservar do susto do diagnóstico? Quem vai diagnosticar em si o vírus da desinformação?
Nesse trabalho, marcado pela palavra-testemunho do artista, se deflagra uma crise de imagens e sentidos sobre o hiv e a aids numa rasura de suas metáforas higienistas, militaristas e religiosas. O solilóquio, longe da vitimização e dos debates reducionistas, assume que a única condenação a que estamos todos expostos é a da vida que pulsa. Não se busca amenizar ou romantizar o drama que é contrair o vírus, o que parece se perguntar é quais narrativas reforçam a impossibilidade de se continuar vivo e de qual direção partem as armas de destruição que ameaçam nossas vidas. Lembro de Pirandello em seu texto O Homem com a Flor na Boca: “a vida é tão gulosa de si própria que não se deixa saborear”.
“La movida” que Kako provoca nesse debate é da ordem do contágio: precisamos falar, iluminar aquilo que parece turvo, pescar palavras “peixes-vivos” num lago escuro, visibilizar as “entranhas” do discurso. Essa operação se dá de forma poética com a utilização de um fio elétrico repleto de luzinhas vermelhas, como pisca-piscas, nos remetendo a uma infinidade de signos: a corrente sanguínea, os sinais de alerta, um adereço de carnaval, aparelhos hospitalares, um arame farpado, uma pequena fogueira, a urgência da vida, a saúde que brilha. Sua pele iluminada traz o corpo para primeiro plano e tenta desvendar os mistérios daquilo que a gente não pode ver (o vírus no sistema imunológico), mas que inter(fere) na superfície da carne, gera exclusões, produz medos, decide promessas de relações. O que mata mais: o vírus ou o estigma que ronda sobre ele? Ou os dois? As palavras hiv e aids seriam mais mortíferas e perigosas do que a infecção real?
Boca a boca se filia a uma série de trabalhos das denominadas “artes na era pós-coquetel[1]” e que fertilizam o necessário debate não somente sobre direitos de saúde pública e gratuita como também de representatividade de pessoas que vhivem com aids no território estético. Combater a linguagem soronormativa (quase sempre naturalizada e inquestionada) a partir de uma “política da suavidade” (Rolnik) me parece ser uma das premissas militantes desse trabalho. Colocar a palavra em circulação como “força epidêmica” e assim negar o silenciamento e o medo, afetos tristes, na verdade palavras não-ditas ou mortas. Substituir a palavra “falecida” pela “fale Sida[2], fale Vida, estamos aqui para te escutar”. Quem se atreve?
Em outro momento há a manipulação pelo artista de um carimbo com a sigla hiv, que encostado ao nosso corpo sugere não mais uma rotulação, mas talvez um carinho, uma carícia, um con-tato. Não senti ali um gesto de agressividade, mas de sensorialidade, ou a lucidez de que sua pressão sobre nossa pele (assim como acontece na pele do artista) não nos torna reféns de uma identidade, não fixa um nome, não determina um destino. Na atuação de Kako Arancibia não há uma entonação moralista, até porque a concepção dramatúrgica opta pela conversa aberta, mesmo partindo de uma temática dada, e que aos poucos implode sua centralidade, irradiando e jorrando palavras, imagens e sentidos outros que encontram na sinceridade do performer a comunhão necessária e humanizada. Tudo isso é fruto de quem há muito tempo vem dialogando com diferentes pessoas nas ruas da cidade (no caso, me refiro aqui aos trabalhos que o artista já desenvolve, como por exemplo, a performance urbana CONTAGIAR), e talvez aí esteja se aperfeiçoando na difícil arte de escutar, acolher, falar, respeitar, negociar e atritar discursos e vivências.
O que seria a finalização da micropeça, com o artista agradecendo nossa presença, acabou por se expandir quando ele nos entregou um folheto escrito à mão com uma série de questões sobre o hiv e nos convocou a continuar a conversa após a apresentação. É como se a experiência agora pudesse se prolongar por mais um tempo, e, num horizonte ético, de alguma forma nos tornando implicados, co-implicados, também responsáveis com o tema focado.
Essa tática da encenação (contundente com toda a proposta) a mim causou inquietude e vontade de conversar. No bar do La Movida Microteatro ainda permaneci com duas espectadoras que estavam comigo na apresentação e trocávamos impressões sobre o trabalho. Mais tarde, no ônibus de volta para casa, deixei um dos folhetos num banco vazio na expectativa de ser recolhido por algum anônimo, numa ação clandestina de intervenção artística urbana.
De “boca a boca” algo se efetuava para além do espaço protegido do teatro? Não sei.
Esse ensaio crítico não seria uma reverberação e tentativa de continuar essa “conversa infinita” (Blanchot)?
Outras transas
Boca a Boca não é um panfleto de saúde nem uma peça teatral de auto-ajuda. Talvez seja um manifesto vagalume a emitir delicados lampejos para clarear assuntos ainda obscuros. Sugere mais um convite a “transar” novas perspectivas de vida e a imaginar formas outras de se problematizar como as palavras constituem, formam e disciplinam os corpos. Há vírus inoculados diariamente em nós, eficazes e capazes de nos matar em pouco tempo.
Seja em Criança viada ou de como me disseram que eu era gay ou Boca a Boca, aquilo que podemos fazer com o que nos acontece solicita uma desconstrução urgente e uma intervenção poético-crítica que, de alguma forma, provoquem curtos-circuitos e guerras de contra – interpretação nas redes cujas linguagens dominantes tomam de assalto a plenitude da vida. Para isso o exercício constante de escavação das palavras (viada, aids, criança, normal, sujeira, desejo, pecado, entre outras), numa ação de “boca a boca”, “boca a ouvido”, “olho no olho”, entre corpos, numa intensa promiscuidade e pluralidade dos sentidos.
A linguagem é um vírus?
Sim.
Não.
A linguagem pode ser veneno, mas pode também ser remédio.
Ficha técnica dos trabalhos:
Criança viada ou de como me disseram que eu era gay
Texto e atuação: Vinicius Bustani
Direção e dramaturgia: Paula Lice
Direção de arte: Lia Cunha e Thiago Ribeiro
Desenho de Luz: Larissa Lacerda
Trilha sonora: Heitor Dantas
Produção: Tais Bichara
Boca a boca
Atuação e Concepção: Kako Arancibia
Dramaturgia: Daniel Toledo e Kako Arancibia
Direção: Coletiva
Provocação Cênica: Daniela Graciere, Andréia Carvalho e Daniel Toledo
Produção e Fotos: Andréia Carvalho
Edição de som: Chedinho
Edição de vídeo: Maythê Coelho
Apoio: Grupo Trama de Teatro.
[1] Com o surgimento de novos e potentes tratamentos contra a aids, a garantia de uma vida saudável trouxe aos soropositivos a possibilidade e necessidade de poderem contar suas vivências com o vírus e dessa forma o campo artístico também sofreu contaminações criativas e discursivas. No ano passado, o Itaú Cultural apresentou a quinta edição de Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade, que teve como tema a vida soropositiva. Para maiores informações acessar: https://www.itaucultural.org.br/todos-os-generos-quinta-edicao.
[2] A expressão significa Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida.