— por Daniel Toledo —
Fotos: Cildo Meirelles
Muito se fala, hoje em dia, sobre os cada vez mais visíveis transbordamentos e aproximações entre arte e política. Foi sobretudo durante os movimentados anos 1960, no entanto, mas claramente também antes disso, que a ideia de “arte política” passou a ganhar força em diferentes campos artísticos, tais quais o teatro, as artes visuais e o emergente campo da performance. Pois, cinco décadas depois, os movimentados anos 2010 que ainda vivemos parecem constituir um novo momento de visibilidade para a ampla produção artística que por vezes se mistura à vida como ação política, a partir de algo que se poderia chamar de imaginação radical da arte”. Mas do que se fala quando se fala em arte e política?
“Acontece que o século XX cria uma linha de divisão entre um uso da arte a partir de e para uma governança pelo alto, ou de cima, (…) e a projeção de uma arte pensada para alimentar a criatividade e a diferenciação individual. Muitos movimentos da arte do século XX orientam a relação entre arte e política na direção da ideia de criar condições de possibilidade para uma governança de si por si próprio.”(HUCHET, 2012)
Bastante frequentes, comentados e também questionados em nossos dias, os deslizamentos entre arte e política podem se verificar, por exemplo, em criações que buscam desestabilizar discursos e perspectivas hegemônicas sobre diferentes aspectos da nossa realidade ou da nossa experiência social. Podem encontrar-se em trabalhos que visam estimular a consciência do espectador sobre os lugares políticos e sociais que ocupamos, assim como as ideologias e as lógicas que estão por trás de nossas ações cotidianas, revelando situações de opressão que frequentemente construímos juntos, ora como oprimidos, ora como opressores. Podem, por fim, verificar-se em criações que convidam o espectador a colocar-se no lugar do outro – um outro social – e, quem sabe, experimentar o mundo sob sua perspectiva.
“O homem ‘humanizado’ pode agir em sociedade instruído por uma sensibilidade e uma racionalidade melhoradas quando estende à vida a experiência que viveu na arte. Espera-se dele, em suas relações cotidianas, ao se colocar no lugar do outro, ao sentir com o outro, que possa reformular as instituições sociais que o conformam a partir do compromentimento ético que assume.”(VINHOSA, 2012)
Para tanto, artistas e criadores podem se apoiar em campos e linguagens artísticas tradicionais, mas não raro propõem certas expansões em relação aos próprios campos de atuação. Borram, então, fronteiras entre diferentes linguagens artísticas, assim como entre arte, vida e política. Tais expansões, a propósito, muitas vezes se devem à apropriação de ações, situações e ambientes cotidianos, característicos do mundo da vida e não propriamente da tradição artística. Em alguns casos, os trabalhos podem ainda chamar atenção pelo estabelecimento de alianças entre seus criadores e variadas causas políticas, grupos e movimentos sociais ou ainda populações oprimidas, podendo incluir ou não integrantes destes grupos nos processos criativos.
Ao aproximar arte e vida, aliás, tais criadores não raro convertem espectadores em colaboradores ou ainda ativadores de seus trabalhos, seja a partir do desenvolvimento de éticas e estéticas que permanentemente renovam as vinculações entre arte, espectador e vida social, ou ainda do enfrentamento e da atualização de temas historicamente associados à luta pela redistribuição do poder.
Opavivará, Pawel Althamer e Khaled Jarrar: a arte das alianças políticas
Mas do que se fala, afinal, quando se fala em arte e política? Inicio aqui, então, uma seção para exemplificar essas ideias a partir de três ações realizadas nos últimos anos por artistas brasileiros e estrangeiros. A primeira delas, intitulada “Eu Amo Camelô” e levada a cabo pelo coletivo carioca Opavivará no final de 2009, foi criada como resposta à proibição de vendedores ambulantes nas praias do Rio de Janeiro, naquele mesmo ano.
Fotos: Opavivará
“No verão de 2009/2010, a Prefeitura do Rio impôs um “choque de ordem” que proibia os camelôs nas areias, enquanto dava força para que grandes conglomerados invadissem a praia. Lançamos, então, cartões-postais que substituíam as clássicas paisagens cariocas por camelôs”, descrevem os próprios integrantes do coletivo. “Essa é uma ação que surgiu da vivência da praia, da vitalidade e criatividade do camelô, esse exército de um homem só, vendedor de ‘inutensílios’, agente polinizador da cidade”, completam.
Ironicamente, o trabalho foi concebido para ser apresentado na Galeria Toulouse (ou Galeria TAC), situada dentro de um shopping da capital carioca, mas também alcançou instâncias extra-institucionais, por meio de ações de distribuição dos cartões postais em diversos espaços da cidade do Rio de Janeiro, incluindo, claro, as próprias praias onde trabalhavam os camelôs.
Nessas situações urbanas, ao contrário do que acontecia na galeria, claramente borravam-se as fronteiras entre arte e vida, deixando em aberto a origem e os objetivos daqueles postais. “A arte é um espaço não só de revisão do mundo, como também de objeção e proposição de táticas para criar novos mundos”, sintetizam os integrantes do coletivo.
A segunda ação que brevemente apresento aconteceu em 11 de novembro de 2010, quando dois artistas poloneses, Pawel Althamer e Rafal Zurek, realizaram, em Varsóvia, uma ação performática concebida especialmente para o dia em que se celebra a recente independência da Polônia. Comemorada com uma marcha popular que reúne milhares de pessoas, a marcha inclui grupos neonazistas, muitas vezes ligados a entidades religiosas e conservadoras, e também grupos anti-fascistas. E não é raro que, durante a celebração, haja confrontos entre integrantes dos dois grupos.
Fotos: Pawel Althamer
Foi a partir desse contexto que os artistas criaram a ação “The Ghost March”, tratando-a como uma resposta direta à passeata neo-nazista. “A idéia de Pawel era muito simples: convocar os fantasmas do passado e enfrentá-los. O uniforme listrado dos prisioneiros de Auschwitz é um traje tabu, uma peça sagrada de vestuário. (…) De qualquer modo, no dia da marcha, quase quarenta pessoas se disponibilizaram a vesti-lo. Quando saímos às ruas, todos vestidos com uniformes dos campos de concentração, chovia e ventava, de modo que alguns participantes usavam cobertores cinzas sobre seus ombros. (…) Alguns turistas tiravam fotos, sem saber qual era o motivo da concentração de pessoas. Os habitantes locais também não se exaltavam tanto, imaginando que se tratava de algum tipo de apresentação teatral”, relata Rafal Zurek.
Alguns metros adiante, contudo, se deu o encontro entre a marcha fantasma e a passeata neonazista. “Armados com apitos, cornetas e tambores, uma multidão se unia para bloquear a passeata nazista. Enquanto isso a marcha fantasma seguia em silêncio, apenas segurando mãos e cobertores. (…) Em dado momento os apitos silenciaram, os protestantes abriram espaço e nos vimos no centro da multidão. O primeiro cordão policial simplesmente nos deixou passar. (…) Outros policiais bloquearam nosso caminho. (…) Atrás deles, nos já conseguíamos ver as bandeiras erguidas pelos nacionalistas. Com nossos uniformes, formamos uma longa linha que atravessava a praça. Nada acontecia; o tempo parecia passar muito lentamente”, continua.
Também situada na fronteira entre arte, vida e política está a ação “State of Palestine”, realizada pelo artista palestino Khaled Jarrar. Em linhas gerais, a ação consiste na criação de um selo do Estado palestino e na aplicação desse selo, por meio de um carimbo, nos passaportes daqueles que se interessem pela proposta. Antes de circular por diferentes cidades do mundo, o trabalho foi realizado pelo artista entre turistas que visitavam a Palestina, contexto social que deu origem a ação e que, não por acaso, lhe oferece mais tensão e complexidade.
Fotos: Khaled Jarrar
“O objetivo do projeto é chamar atenção para o direito do povo palestino de viver em liberdade, afirmar a própria existência e desafiar a ocupação e repressão israelense. No geral, os passaportes são estampados com o selo depois de uma conversa com os estrangeiros que passam pela Palestina sobre os riscos que eles podem enfrentar por conta da adesão ao projeto. Enquanto várias pessoas foram interrogadas no aeroporto de Tel Aviv, uma mulher norte-americana chegou a ter seu passaporte cancelado devido ao selo palestino”, conta o próprio artista.
Assim como na conhecida série “Inserções em Circuitos Ideológicos”, criada por Cildo Meireles em 1970, o que se vê no trabalho de Khaled Jarrar é o acréscimo de um elemento ficcional, dotado de clara carga ideológica, sobre um suporte real que não o previa – um diálogo entre arte e vida. É, afinal, na circulação dos passaportes – tal qual as garrafas e cédulas de Cildo – que a obra acontece, que ela ganha sentido e alcance social. É a partir dessa circulação que a obra tensiona a realidade, provoca incertezas e serve como ponte – ou porta – capaz de sensibilizar o público, colocá-lo no lugar do outro e, quem sabe, levar a um estado ainda inalcançado de coisas.
“Eu me lembro que entre 1968 e 1970 já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado, o tipo de trabalho que se estava fazendo, tendia a se volatilizar e esta já era outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam provocar no corpo social”, disse Cildo Meireles, em 1981.
Artur Zmijewski e as artes sociais aplicadas
Convidado, por sua vez, a assumir a curadoria da 7ª Bienal de Berlim, realizada em 2012, o artista polonês Artur Zmijewski adotou como conceito central de sua seleção a ideia de “artes sociais aplicadas”. A curadoria, naquele caso, foi realizada a partir de uma chamada de trabalhos (“open call”) aberta a artistas de todo o mundo. Além do portfólio e de uma proposta de trabalho, cada candidato deveria entregar à organização do evento informações sobre suas convicções políticas. Foram recebidas 6.000 inscrições, posteriormente organizadas em um diagrama também exposto ao público na ocasião da exposição.
Fotos: Berlin Bienalle
No texto que abre a publicação oficial do evento, Zmijewski, expõe da seguinte maneira as bases de sua curadoria: “O que nos interessava eram atividades concretas conduzindo a efeitos visíveis. (…) Não nos interessava preservar nossa imunidade artística nem nos distanciarmos da sociedade. Nós entendemos a política como uma das mais complexas e difíceis atividades humanas. Chegamos, então, a artistas, ativistas e agentes políticos envolvidos, por meio da arte, em ações políticas concretas”.
“Quando a arte é despolitizada”, completa, “ela não representa os interesses do público, mas serve somente às carreiras individuais dos artistas”. De igual modo, em sua visão, o que estaria em jogo para grande parte dos curadores seria somente a garantia dos seus próximos projetos, e não algum objetivo social ou político.
Ainda a respeito dessa imbricação entre arte e política, vale ressaltar que a curadoria abriu espaço, inclusive, a práticas e ações não-artísticas, completamente diluídas no tecido e na dinâmica social. Entre os textos incluídos na publicação do evento, figura, por exemplo, uma entrevista com o filósofo e ex-prefeito de Bogotá Antanas Mockus. Em conversa com a curadora assistente da Bienal de Berlim, Joana Warsza, o colombiano fala sobre algumas de suas medidas durante os períodos em que esteve à frente da cidade, nas décadas de 1990 e 2000. Em contraste com medidas educativas comuns, o ex-prefeito costumava enfrentar questões urbanas por meio de ações um tanto heterodoxas – e passíveis de aproximações com a ideia de “artes sociais aplicadas”, sugerida pela curadoria do evento.
Como estratégia para reduzir atropelamentos em determinadas regiões da cidade, por exemplo, Mockus contratou performers que atravessavam as ruas de modo irresponsável, chamando atenção dos pedestres para seus próprios hábitos e para a importância de se respeitar a sinalização. Também como resposta ao excesso de atropelamentos, o colombiano recomendou que cada morte fosse sinalizada com uma estrela pintada no asfalto, exatamente no local do acidente. Se, num primeiro momento, grandes constelações se formaram em alguns pontos de Bogotá, em pouco tempo o número de atropelamentos acabou, de fato, se reduzindo.
Durante a concepção do evento, como se vê, Zmiewski e sua equipe estabeleceram contato com pessoas relacionadas a diferentes papeis dentro do que se pode entender como o sistema político das artes: além de artistas e outros curadores, procuraram educadores e prefeitos que conjugassem, em suas atividades, arte e política. “Tentamos chegar diretamente à prática, encontrar um modo de colocar as mãos na massa, influenciar a realidade, escapar da armadilha de simplesmente exercitar a liberdade artística”, completa, sugerindo um contraponto à autonomia inaugurada pela arte moderna e aos seus múltiplos reflexos sobre a produção contemporânea.
O resultado deste trabalho foi uma mostra que incluiu um grande número de ações efêmeras distribuídas ao longo do seu período de realização. Além disso, o evento disponibilizou ao público um arquivo com todas as propostas enviadas à convocatória e abriu espaço para que artistas, ativistas e representantes de movimentos sociais realizassem uma espécie de residência artística informal dentro do prédio que servia como principal sede da bienal.
“Estávamos procurando ações artísticas que agissem e funcionassem, com procedimentos eficientes de transformação e influência sobre a realidade. É essa, no fim das contas, a essência da política – (…) a tentativa de manter ou transformar a ordem dominante. A aversão à política transformou a arte em uma espécie de ‘sala de pânico’, de refúgio para políticas e idéias. Aqui os artistas podem se sentir seguros, uma vez que nenhuma verdade da vida, nenhuma atividade que tenha reais conseqüências, vai se misturar”, sintetiza.
Fotos: Berlin Bienalle
Referências bibliográficas
BRITO, Ronaldo. Cildo Meireles. . Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
HUCHET, Stephane. A elasticidade da arte para com a política: breves bases críticas in GERALDO, Sheila Cabo. Trânsito entre Arte e Política. Rio de Janeiro: Quartet Editora, 2012.
VINHOSA, Luciano. Autonomia e Política in GERALDO, Sheila Cabo. Trânsito entre Arte e Política. Rio de Janeiro: Quartet Editora, 2012.
ZMIJEWSKI, Artur; WARSZA, Joanna (org). Forget Fear. Berlim: Berlin Bienalle, 2012.