– Por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras-UFMG/CNPq
Fotos de Guto Muniz
O ato de habitar constitui a mais forte ligação humana entre a data e o lugar. Os lugares habitados são, por excelência, memoráveis. Por estar a lembrança tão ligada a ele, a memória declarativa se compraz em evocá-los e descrevê-los. Quanto a nossos deslocamentos, os lugares sucessivamente percorridos servem de reminders aos episódios que aí ocorreram. São eles que, a posteriori, nos parecem hospitaleiros ou não, numa palavra, habitáveis. (Ricœur, 2007, p. 59, grifos do autor)[i]
Dos argumentos de Paul Ricœur, interessa-me a ideia de associação do ato de habitar com a memória e os deslocamentos no tempo e no espaço. Refletir sobre fatos sucedidos e pensar em como os mesmos se tornam habitáveis em nós ou em como voltam a habitar nossos corpos e mentes. Senta Que o Leão é Manso, espetáculo assistido no CCBB, em novembro de 2022, trouxe-me, como espectador e como sujeito, muitas sensações e emoções.
As memórias habitáveis que preenchem as ações dramáticas do espetáculo têm como contexto o ano de 2001, quando Kelly Crifer e Getúlio Ramalho realizavam uma apresentação da montagem homônima, dirigida por Eid Ribeiro, para o programa “Circo de Todo Mundo”. No momento em que executavam um número denominado “Nas Garras da Mulher Aranha”, Kelly sentiu-se mal e desmaiou na cena em que se equilibrava somente com um dos pés apoiados sobre a cabeça de Getúlio, enquanto ele se equilibrava em um rola-rola. Com a queda, a atriz foi hospitalizada com traumatismo craniano, fraturou as clavículas e ficou em coma por três dias.
No mesmo ano, em 2001, fui professor de Kelly numa disciplina do curso de Artes Cênicas e, ao assistir ao espetáculo, eu me vi sendo transportado para o momento em que seus colegas, extremamente consternados, comentaram comigo em sala de aula sobre o ocorrido. Ali, no teatro, espaço muito utilizado para o ócio e o deleite, me vieram à memória os sentimentos vividos naquele momento, a preocupação de todos e a torcida para que Kelly se reestabelecesse prontamente. Sua recuperação foi lenta, mas ela continuou no curso, onde se formou com excelência e seguiu sua carreira como atriz integrando coletivos com os quais realizou espetáculos memoráveis, porém abandonou o circo. Por sua vez, Getúlio seguiu sua trajetória artística dando aulas de dança de salão e se aprimorando nos estudos de dança contemporânea.
Esses sentimentos, encobertos pelo distanciamento do tempo e do espaço, voltaram a habitar-me e isso fez com que eu me envolvesse ainda mais na proposta cênica proposta pelos artistas, que se dispuseram a remexer suas feridas – encobertas e abertas – fazendo delas dispositivos para a criação espetacular. A dramaturgia construída por Kelly Crifer revisita o trauma de forma contundente, mas, principalmente, o transforma em tessituras cênicas, configurando-o em novas imagens, transpondo-o para novas espacialidades. O espetáculo tem como mérito a inserção do espectador no universo autobiográfico proposto, permitindo sua incursão no universo mnemônico pessoal dos atuantes, compartilhamento esse que é ficcionalizado e compactuado por meio de uma memória coletivizada no espaço cênico com a plateia.
A estratégia de partilhamento com o público se concretiza com o uso de gravações em off de vídeo e de áudio e ao vivo (imagens filmadas do público no momento da apresentação do espetáculo), obrigando o espectador a interagir com o presente – performatizado em cena e, indiretamente, pela plateia, que tem sua imagem gravada ao vivo e veiculada em alguns momentos do espetáculo – e com o passado – exposto por meio de cartas (palavras-grafemas-gestus) e imagens gravadas previamente e exibidas durante as cenas, integrando a dramaturgia proposta. A partir do instante em que cada espectador(a) se vê exposto na tela, ele/ela se sente mais comprometido com os vetores de memórias que vão sendo corporificados a partir das cenas.
Senta Que o Leão é Manso é uma dança-corpo-memória mensuradamente coreografada nos – e pelos – corpos de Kelly Crifer e Getúlio Ramálio. Uma dança que vai se constituindo a partir de fragmentos de memórias insurgentes que se desprendem das corporeidades dos performers nas cenas e que são corroboradas por depoimentos de áudio e vídeo de pessoas próximas (amigas, amigos e parentes – avó, filha, irmãos, mãe) que se fizeram presentes quando (e depois) do acidente e dão testemunho ao ato que desembocou na dramaturgia do texto documental. Como espectador ciente dos fatos, identificar algumas vozes que são trazidas para preencher as partituras lacunares dos passos de dança-memória me convida, ainda mais, a experienciar o convite de habitar – com meu corpo – a dinamicidade do tempo-corpo-memória deflagrada pelos atuantes.
Isso tudo não importa Getúlio. A vida é imprevisível. Tudo que é inesperado é desesperador. É espantoso. Você para, acorda, olha para o seu corpo e percebe e cai a ficha de vinte anos engruvinhados em sua forma de andar, da sua coluna curvada, na sua falta de iniciativa e dificuldades de tomar iniciativa e de decolar atitudes no mundo…
É um número de dança-teatro que só se completa de forma lacunar com o espectador. Rememorar as palavras de Kelly Crifer e tentar recuperar, em minha memória fugaz, o ritmo de sua voz em consonância com o corpo-presença de Getúlio e as vozes dissonantes do grupo de pessoas próximas que emitem lampejos sobre o momento da queda, se transforma num exercício de identificação com o trabalho para mim, e ouso afirmar que também para a plateia em geral que assiste à peça. Em muitas cenas, são reatualizados os traumas vividos pelos performers em – e através de – seus corpos. Esse ato de retomar e ressignificar os traumas performaticamente também redimensiona os corpos dos espectadores para sentirem partitura por partitura, corporal, imagética e vocal, da coreografia presentificada.
Os lugares da memória nem sempre são decifráveis e por isso mesmo nos surpreendem intensamente. Dos relatos que se perderam e cruzaram os tempos: o corpo-foto-imagem de Getúlio mesclado ao vídeo da mais velha, griot de seu tempo, que (en)canta suas histórias; a imagem do plantio de mandioca e toda sua representatividade dentro das memórias afetivas de Kelly; a viagem dos atuantes para o Rio para se apresentar na Lapa e o ensinamento do mestre Eid Ribeiro diante da narração de Getúlio sobre a visão que tiveram das janelas do ônibus sobre as corpas de algumas travestis vistas de relance ao trabalho nas ruas, alertando-lhes: “Gente isso é normal, é Rio de Janeiro”; os desenhos-imagens grafados digitalmente e projetados em concomitância com coreografias rítmicas da dança moderna e de salão; o que fica é a construção documental de registros factuais que são fabulados nos corpos em constante estado de movência dos artistas-criadores.
Senta Que o Leão é Manso fica para o espectador como um encontro com a memória. O “circo de todo mundo” que ecoa no imaginário do público é reconfigurado nos corpos por meio de cada partitura coreográfica realizada em consonância com as palavras-testemunho de Getúlio e Kelly: depoimentos em áudio, mensagens trocadas entre os atuantes, palavras não enunciadas, o jogo de uma construção espetacular onde o dito e o não dito assumem um lugar muito importante na construção do espetáculo. São os corpos dos performers que delineiam cada ação dramática dividida com o espectador por meio das imagens configuradas como impulsionadoras que, ao mesmo tempo, roteirizam e evocam o movimento-dança do corpo, da letra e da palavra, o gestus que emana de cada movimento dos atuantes e, por sua vez, do público, que é convidado, de seu assento, a se envolver com os performers. Dentro da proposição de fazer do público membro copartícipe do espetáculo, não posso deixar de mencionar o corpo-presença de um espectador privilegiado que é convidado para adentrar o espaço cênico para dançar e compartilhar as grafias de seus movimentos com as memórias corporificadas nas cenas.
É possível esquecer o passado que insiste em se fazer presente no nosso cotidiano? Como traçar outros desenhos, partituras e movimentos para ressignificar o ato traumático? Como habitar outros corpos a partir de nossos corpos-memória?
A arte teatral tem sido, através dos séculos, um instrumento para discutir questões latentes que vêm movimentando os sujeitos nos campos afetivos, ideológicos, sociais, pessoais e políticos. Senta Que o Leão é Manso é um ato performativo, um rito de cura, é, acima de tudo, uma ação que possibilita que a memória não caia no esquecimento. Neste sentido, o trabalho de Kelly Crifer e Getúlio Ramalho é, sem sombra de dúvidas, um rito de passagem, um ato de reparação da memória afetiva e pessoal mediado pela arte e, por isso não teria outro final mais apropriado e impactante que a execução perfeita do número, no passado não logrado, por Getúlio e Kelly, agora mediado pela interpretação da música “Estrela do Mar” pela doce voz de Zoey Estrela, exibida em vídeo em concomitância com a realização da cena final. Uma reconexão com o circo, pactuada pela Arte, por meio de suas interfaces com as artes gráficas, a música, a dança, o cinema.
Um pequenino grão de areia
Que era um pobre sonhador
Olhando o céu viu uma estrela
E imaginou coisas de amor
Passaram anos, muitos anos
Ela no céu e ele no mar
Dizem que nunca o pobrezinho
Pode com ela encontrar
Se houve ou se não houve
Alguma coisa entre eles dois
Ninguém soube até hoje explicar
O que há de verdade
É que depois, muito depois
Apareceu a estrela do mar
FICHA TÉCNICA
Criação, atuação e direção: Kelly Crifer e Getúlio Ramalho
Orientação de encenação: Eid Ribeiro
Dramaturgia: Kelly Crifer
Textos: Kelly Crifer e Getúlio Ramalho
Direção de movimento: Eliatrice Gischewski
Cenografia e Figurino: Rimenna Procópio
Cenotécnico: Moisés Sena
Costureira: Beatriz de Assis Alves
Trilha sonora, vídeos e projeção mapeada: André Veloso
Fotos: André Veloso
Orientação circense: Antônio Rigoberto Enriquez Esquerra
Orientação vocal: Tatá Santana
Intérprete no poema e música Estrela do Mar: Zoey Estrela
Iluminação: Cristiano Araújo
Designer gráfico: Cata Preta
Assessoria de Comunicação: Bramma Bremmer
Produção: Andréia Quaresma
1 RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.