— por Ana Luisa Santos —
Este texto nasce como uma invenção, como uma tentativa de contribuição para o debate ético-estético que acontece agora em Belo Horizonte e que extrapola os âmbitos tradicionais da produção artística, da ação política e da elaboração crítica. Como ensaio, configura-se como uma iniciativa de percepção dos diálogos que se dão hoje, na cidade, entre as diversas forças políticas em torno do valor da vida, dos direitos humanos e da democracia.
Estou, como tantos outros, buscando entender possibilidades, demandas e direitos do exercício da cidadania e experimentando performar outra relação com o comum/coletivo, com o público, com o outro e consigo mesmx para criar um valor compartilhado de esperança, de justiça e de respeito que possa ser umx guia para garantias legislativas, discursivas, relacionais. A reflexão proposta surge da dimensão desse espaço/site como um lugar da crítica teatral para buscar uma conexão com processos políticos em ativação na cidade. Essa escrita nasce do sentimento do desafio, por vezes, da dúvida. E também da humildade desse relato diante do tamanho da mobilização. É com sinceridade, um manifesto pela curiosidade. E gratidão por poder exercitar a escuta de maneira performática.
A dramaturgia da cidade
Os trabalhos “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, de Jo Clifford e “Kassandra”, de Milena Moraes, da La Vaca Cia de Artes Cênicas, compuseram a programação do 13⁰ Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte, o FIT-BH 2016 e trouxeram, em comum, versões queers para duas figuras míticas da cultura ocidental. Transmutando Jesus em uma mulher queer e Kassandra, princesa de Tróia, em uma performer transgênero de uma casa de shows eróticos, os trabalhos ocuparam espaços alternativos de realização e de leitura.
Antes e durante o festival, a cidade também demonstra seus questionamentos. Manifestos como o do Grupo dos 10, denunciando a ausência de trabalhos de teatro negro no FIT-BH e em suas opções curatoriais já no lançamento da programação oficial, antes do início do festival, já apontam para a transformação da relação da cidade com o evento, inicialmente um projeto do poder executivo municipal, a partir de várias perguntas sobre as funções das políticas públicas de cultura no âmbito da cidade, do estado e do país.
O FIT-BH acontece em meio à intensa agenda política e artivista na cidade com as ocupações da Funarte MG e do Centro de Referência da Juventude, para dizer das ocupações mais recentes. As ocupações, as manifestações, os atos e as marchas estão configurando uma intensa mobilização da classe artística, dos jovens e de todas as pessoas engajadas em movimentos sociais sobre a curadoria da cidade, sobre a curadoria dos espaços públicos e do poder, sobre a curadoria dos corpos e de sua mobilidade na rua, nas instituições, nos lugares de visibilidade.
Diante ou através desse panorama, é interessante perceber que tipo de ocupação o FIT-BH proporciona. Como ele movimenta a cidade ou permite ser atravessado pela dimensão do movimento artivista que acontece atualmente. Vale citar o lançamento, durante o Festival, do livro “A arte e a cidade – lugares e expressões teatrais de Belo Horizonte”, organizado por Jean de Oliveira Souza, Glória Reis e Leônidas José de Oliveira, que ocorreu no Museu da Imagem e do Som – MIS Cine Santa Tereza, para incrementar as reverberações políticas que articulam as produções criativas em diferentes regiões do tecido urbano da capital.
Para além do festival, percebemos, afinal, uma profícua agenda de articulação da atuação artística como debate político e exercício de convivência, justamente no contexto atual em que todos buscam realizar um mapeamento obrigatoriamente dinâmico das instâncias municipais, estaduais e federais do poder executivo, especialmente durante o processo de impeachment da presidente Dilma Roussef.
Pole feminista
Segundo o mito grego, Cassandra é filha de Hécuba e Príamo, reis de Tróia. Ela possui o dom de prever o futuro, porém quando, no passado, se recusou a servir ao deus Apolo, foi amaldiçoada por ele e desde então seus vaticínios são desacreditados por todos, apesar de sempre falar a verdade. Após a queda de Tróia, as mulheres são escravizadas e aguardam o embarque para os novos lares. Cassandra deverá ser a concubina de Agamêmnon, a quem coube como presa de guerra.
A Kassandra da La Vaca, no entanto, é uma performer que se apresenta em uma casa de shows eróticos após ou através essa trajetória de situações colocadas pelo mito, as quais ela conta e dramatiza durante a ação. Em Belo Horizonte, a apresentação aconteceu na boate Sayonara Night Club, e essa relação com o espaço real de acontecimento confere ao público que testemunha a performance um caráter voyeur, experimentando a ação do ponto de vista de quem consome um tipo de show que inclui pole dance, strip tease e máscaras. Esse deslocamento, com graus diferentes de constrangimento para cada pessoa, propicia um jogo político profundo, ao disponibilizar o testemunho do consumo de um corpo com características femininas, mas que Kassandra revela, em seu discurso, como transexual.
Como sua história, a fala de Kassandra é pontuada de atravessamentos. Sua linguagem verbal e corporal é constituída do que ela chama de “broken english”, algo que a situa como uma estranha, não só porque parece estrangeira com seu inglês rudimentar, mas, principalmente, porque essa característica do uso do idioma/corporeidade traz um sentido político: o inglês não é sua língua materna, é somente um código de trânsito, que inibe a precisão de sua origem, gênero ou de uma procedência fixa/linear. Esse outro jogo sem legendas que se dá com a audiência é potencializado quando ela revela as palavras e frases que aprendeu no idioma local, como, por exemplo, “homem” e “cadê minha grana?”. Esse uso funcional da língua e do corpo, essa articulação instrumental entre o fazer e o dizer, entre o ouvir e o entender conferem grande capacidade de tradução/transcriação para a caracterização da performer.
Estamos diante de um corpo transgressor que ritualiza suas contradições ficcionais para a produção de uma experiência real. Como performer de um personagem, Kassandra demonstra um corpo violado em sua origem. Seja sua origem de gênero, seja sua origem geopolítica e até mesmo sua origem literária. Em cena, seu corpo é tragicamente sagrado em sua manifestação compartilhada. Sem tabus, sua presença costura a desesperadora e revoltante continuidade da caracterização histórica – da tragédia grega ao contexto atual – do corpo feminino como mercadoria, como moeda, como algo a ser consumido e negociado. Parece sintomático que na mesma semana o país se veja diante do registro em vídeo de um estupro de uma adolescente por 30 homens no Rio de Janeiro.
Fotos: Alexandre Guzanshe
Decolonial
A Kassandra da companhia de Florianópolis (SC) constitui não só uma atualização do mito, mas uma pergunta sobre o que essas concepções de mundo podem nos revelar. Como um oráculo contemporâneo, Kassandra nos conta sua história trágica, tão trágica como pode ser a história de muitas transexuais que trabalham no mercado do sexo. E, ao mesmo tempo, um história tão real em sua transgressão de padrões de comportamento, padrões de afeto, padrões de corpo, padrões de força. Sua resiliência é inspiradora ao demonstrar como essa voz é capaz de inventar um novo idioma de corpo ou outra corporeidade de linguagem, ambos capazes de transtornar, de transformar, de transmutar os traumas, os estigmas, as catarses, as indiferenças.
A Kassandra na Sayonara é queer como a Jesus que Jo Clifford trouxe para o Museu Mineiro. E a convivência de leitura dos trabalhos durante o festival permite que possamos destacar também o que os diferencia, de modo a complementar as experiências. A performer Kassandra usa de códigos estéticos queers ao demonstrar a capacidade decolonial de invenção de suas origens, de seu corpo e de sua linguagem como travesti que trabalha na noite, que faz pole dance, que usa de gírias de rua e certa atitude stand up comedy para distorcer o clichê do corpo trans ou do corpo feminino como um corpo objeto. É um tipo de atitude abjeta que devolve essa recusa de consumo simples, colonizador, machista.
A princesa queer de Tróia expõe uma possível leitura machista da pornografia tradicional ao questionar que tipo de erotismo é exercido na relação com a alteridade. Sua intenção, ao que parece, é aproximar e seduzir os mais desatentos para depois devorá-los, até que eles possam ter a coragem de decifrar o monstro, a esfinge de máscara. Podemos até rir de algumas de suas piadas ou do jogo que ela propõe na interação direta com alguns membros da plateia. Mas, no decorrer da ação, começamos a entender seu broken english como um manifesto, como um manifesto pós pornográfico capaz de traduzir a precariedade da sexualidade, dos papéis de gênero, da orientação sexual fixa, das leituras simplificadoras diante da diversidade de acontecimentos, experiências e afetos de uma vida.
A estratégia somatopolítica da Rainha Jesus é outra. Ela também entrega seu corpo, consagra sua presença e inicia a fala a partir de um ato de comunhão. Inverte, como Kassandra no pole, a gravidade das concepções arquetípicas no campo psicológico do ser. Evoca aspectos marginais e queers dos mitos sagrados. Assim como Kassandra, faz um uso inteligente de alguns clichês da corporeidade trans, de modo a seduzir um tipo de leitura de reconhecimento para depois torcer o estereótipo e promover uma sensação de deslocamento. Mas uma pergunta permanece: Como fazer teatro travesti sem fazer “carão”?
Diferentemente da princesa oráculo, a rainha Jo aparece como queer no sentido do dharma. Doce bárbara capaz de quebrar barreiras através da luz, elx fala sobre a verdadeira verdade a respeito de um dos maiores mitos da encarnação da bondade. Como se empoderar sem fazer “carão”? Que outro tipo de atitude, além da sedução, podemos perceber no jogo da cena queer? Nesse sentido, a Rainha Jesus de Jo toca nossos corações através de outras emoções. Sem uma atitude defensiva, sem ficar no vitimismo, sem amargura ou rancor, com toda a potência do amor, da compaixão e da lucidez político-poética diante do mundo, Jesus derruba os muros da cidade e da individualidade ao propor uma história ainda mais bonita e generosa do que aquela que várias religiões são capazes de ler na bíblia.
Outrx Jesus
O evangelho de Jo Clifford, da companhia Queen Jesus Plays, da Escócia, é um manifesto: “Eu escrevi e atuo em ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’ porque quero resistir. Resistir à vergonha profunda e devastadora, ao medo e à culpa que têm me acompanhado ao longo de quase toda a minha vida. A vergonha e o medo que assolam quase todas as pessoas trans nascidas neste mundo hostil. (…) Venho trabalhando como atriz há cinco anos e, toda vez que me apresento, me sinto entrando em contradição com esse medo e vergonha profundos.”
“Eu sei que isso não acontece só com minhas irmãs e irmãos trans. Atinge todo mundo: porque somos todos criados para termos medo e vergonha da nossa essência mais profunda. Escrevi como Rainha Jesus porque a igreja Cristã tem sido e, infelizmente, em muitos casos, continua sendo uma fonte feroz de hostilidade e preconceito. Mas tudo que sei sobre Jesus pelos evangelhos contradiz completamente esta ideia.”
Essa fala de Jo Clifford é de julho de 2015 e está no prefácio da publicação com o texto original da peça, acompanhado da tradução em português por Natalia Mallo. Tive oportunidade de conhecer a publicação e conversar rapidamente com Jo Clifford após um ensaio aberto realizado em uma manhã de sábado, no Museu Mineiro, durante o FIT-BH. Neste dia, conheci outrx Jesus e pude testemunhar, ao lado de artistas como Igor Leal, Marta Neves e Marcelo Veronez, a expansão de uma emoção ímpar pela consagração queer de um dos maiores mitos da cultura ocidental.
Fotos: Guto Muniz
Fé que afronta
Segundo Jo Clifford, ao apresentar a peça pela primeira vez como parte do festival Glasgay! em 2009, a porta do Tron Theater ficou lotada de religiosos enfurecidos protestando contra o que o arcebispo de Glasgow chamou de “uma afronta a fé Cristã”. Jo relata que estava aterrorizada pelos protestos e traumatizada pelas manifestações massivas de ódio que sua performance provocou na internet. “Mas isso me ensinou que o que eu estava fazendo era importante.”
A missa ministrada pela Rainha Jesus em Belo Horizonte teve como espaço de ação a sala de arte sacra do Museu Mineiro – segundo informou um membro da equipe do Museu, as igrejas da cidade não aceitaram a proposta do festival para a realização do espetáculo. Neste local, estamos em um templo do tempo, cercados por um imaginário de forte sensação barroca. Estamos acompanhados de uma grande parte da sensação cultural das igrejas de Minas Gerais e da presença cuidadosa da tradutora, sempre delicada, inclusive com o volume dos fones do aparelho que reverbera a sua tentativa de tradução simultânea. Sua tarefa é dificílima e me compadeço de sua entrega. Ela, como eu, também será consagrada.
Na primeira vez que comunguei a missa de Jo, comi do pão e rezei de mãos dadas e olhos fechados com uma fé que nunca havia experimentado. Na segunda vez que fui ao encontro da Rainha Jesus, ela teve uma crise de hipertensão e o espetáculo precisou ser interrompido. A santa viva foi levada por paramédicos vestidos de branco. Fiquei ali orando de novo, pela sua melhora, pela sua luz e sua força de ser humano vulnerável e ao mesmo tempo potente.
Em ambas as oportunidades, transcendida pela presença queer de Jesus, fiquei pensando em como a experiência teatral é um ato de fé, em algum sentido. Um exercício de acreditar no que se vê, no que se pode ler. Acreditar em alguém fazendo uma coisa em que acredita muito. Um exercício de fé no poder do encontro. Fé no invisível da arte, de outros possíveis e impossíveis.
Por que alguns religiosos consideraram a experiência de Jo como uma afronta a sua fé? Em quem eles acreditam? Quem é Jo para ameaçar a fé dos outros? Em quem eles querem acreditar? Quantos tipos de fé existem? O que é uma afronta à fé? Talvez essas sejam boas discussões para esse momento místico/mítico em que nos encontramos, dentro do qual tentamos entender os procedimentos políticos com os quais lidamos em nossa vidas. Um momento em que percebemos a necessidade de mudanças, procuramos caminhos, tentamos enxergar perspectivas em cenários tão instáveis. Nesse momento de dúvida, nesse momento de medo, nesse momento de descrença, nosso maior inimigo é a sensação de impotência. Ou ainda a insegurança inerte diante do caos e da ignorância quase total sobre como contribuir.
A Jesus trans de Jo renova nossa fé na fé porque promove o desapego do peso católico desse personagem cristão. O ritual proposto por essa personagem é a transmutação do fardo histórico da expropriação colonizadora em nome do ouro e da prata no altar para que possamos enxergar, poeticamente, o brilho queer da possibilidade semiótica do barroco. Fé que afronta a impotência. Fé decolonial poderosa de criar amorosamente outros espaços, de reinventar ou revelar outra história, de fazer outrx política.
Em algum lugar da memória encontramos a energia do andrógino. E podemos nos perguntar que força tem esse encontro hoje. Acredito que a potência desse encontro é a proposição de que é no coletivo e é através da política que exercitamos e exercemos de fato nossas crenças mais íntimas e espirituais. E colocamos à prova nossa fé em um caminho político-espiritual de convivência, de diálogo, de co-construção.
Santo travesti
O andrógino, energia psíquica coletiva e inconsciente, faz parte do mundo dos arquétipos. Aparece na forma de imagens, em sonhos, nos trabalhos dos alquimistas, nas visões xamânicas, em concepções religiosas, nas imagens dos anjos e santos e de forma muito clara, nos mitos de criação. O mito, assim como no ritual da Rainha Jesus, é o sonho coletivo inconsciente traduzido pelx poeta, que recebe essas energias arquetípicas e que lhes dá forma, através da palavra/visão compartilhada em cena por Jo Clifford. “Portanto, não imaginem que éramos doze heterossexuais barbabos. Se te disserem isso, estão mentindo. Ou por que dizem que éramos apenas homens. (…) Pois sim, alguns éramos homens. Algumas éramos mulheres. Alguns éramos homens que costumavam ser mulheres. Algumas éramos mulheres que costumavam ser homens. Alguns éramos homens e mulheres ao mesmo tempo.”
Em regiões remotas da Sibéria, Mediterrâneo, Índia e África, homens que adotavam comportamento e vestimentas de mulheres gozavam de status como xamãs, feiticeiros e sacerdotes, como pessoas cujos poderes mágicos podem decorrer da transexualidade. O que está em jogo é a identificação com o criador supremo, que é andrógino.
Nas tribos nativas da América do Norte, pessoas “dois espíritos” eram do sexo masculino, feminino ou intersexo, e suas expressões ou identidades de gênero fluíam como bigêneros, andróginos ou transgêneros que combinaram personalidades e atividades de homens e mulheres com características únicas à sua condição de “dois espíritos”. Essa denominação refere-se à conjunção de “dois espíritos” que, juntos em um corpo expandido de seu gênero, reúnem as várias nuances de energia, os diversos princípios além do masculino e feminino, bem e mal, yin e yang, e são capazes de expressar uma gama de freqüências que podem colaborar na superação de uma concepção binária de mundo.
Pessoas com “dois espíritos” num mesmo corpo existiram em várias partes do planeta, com seus nomes de acordo com a sua língua e cultura. Em várias culturas, elxs foram desclassificadas de suas posições ao longo do tempo, principalmente devido à colonização e a homotransfobia introduzida em seus contextos com esse evento, simultaneamente à aculturação dos nativos desses locais para se encaixarem no novo sistema heteronormativo que chegava com a colonização de suas terras.
No Peru temos os “quartiwarmis”, que eram xamãs poderosos por terem dentro de si as duas energias que equilibram o universo. Infelizmente, a introdução de valores religiosos vindos da Cristandade sobrepujou essa identidade e as escondeu sob o manto do machismo e do racismo. Nas terras polinésias, temos os Mahu. Na Grécia antiga, temos inúmeras lendas de seres transgêneros, e até mesmo em uma primeira versão da criação do ser humano, na bíblia, deus teria sido um ser transgênero e, por isso, criado o homem e a mulher. Como a Rainha Jesus nos conta na missa, os seres queers estiveram e estão em todos os lugares.
“Porque somos a hijra da Índia
e a kathoey da Tailândia
e a waria da Indonésia
e a Bissu do Arquipélago
e a fa’fa’fine do Samoa
e a muxe do México
e a travesti do Brasil
e o povo de dois espíritos da América do Norte
e as shamans da Sibéria
e as yan daudu da Nigéria.”
E estamos também em Belo Horizonte.
Ocupando a cidade
O FIT-BH 2016 teve também, como parte de sua programação paralela, Duelo de Vogue com Duelo de MC’s, Coletivo Montaria, Coletivo Drag Livery, Gaymada do coletivo Toda Deseo e Bloco Corte Devassa, tanto na rua como no quintal do Parque Municipal. Na programação oficial, As Bacurinhas (Coletivo Bacurinhas) e Rosa Choque (Coletivo Conectores) também riscaram tons urgentemente feministas no palco.
Enquanto isso, a trans negra Cristal Lopez é a musa de Belo Horizonte. Ela e Ed Marte estão lançando a campanha política pelas suas candidaturas para a Câmara Municipal da cidade. Outrxs e diversxs iniciativas, coletivos, artistas, espaços, movimentos e produções como
Casa de Referência da Mulher Tina Martins, Coletivo Beijo no Seu Preconceito, programa Mulhere-se da Rede Minas, a Cidade que Queremos, Frente Feminista Elza Soares, festa Todxs, Coletivo Mulheres Míticas, festa Dengue, Roda Transcultural BH, festa Baixo Ventre, Dolly Piercing, NEGRA – Coletivo de Negras Autoras, Bloco Sagrada Profana, Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da Fafich/UFMG, Cine Diverso, as danças Hiena de Tuca Pinheiro e Mula de Guilherme Morais, Nina Caetano, Encontro Afeminado e Machudo, Praia da Estação, Coletivo Brejo, Centro de Referência pelos Direitos Humanos e Cidadania LGBT de Belo Horizonte, festa Absurda, Madame Teatro, Encontro das Afeminadas e Machudos, Trans Residência Experimento Queer, Primeira Campainha, Mostra Nua de Autoras, Banda Viada, Marcha Mundial das Mulheres, Feminismo Ocupa a Cidade, Feminismo na Marcha, Montadxs pela Democracia e Diversidade, “Madame Satã” do Grupo dos 10, Trans ENEM BH, Diversas – Feminismo, Arte e Resistência, Ocupação Mata Machado FDCE-UFMG, Espaço Comum Luiz Estrela, Ninféias – Núcleo de Investigações Feministas, Coletivo Masterplano, Revista Marimbondo, Ácida Queens, Coletivo Obscena, Efêmera Casa de Artes, ASSTRAV – Associação dos Transgêneros de Belo Horizonte, Mostra Mulheres Criando, Festa Absurda, NECA – Núcleo de Experimentação Cinematográfica – Teatro 171, Duelo de Egos – Paola Bracho e Petra Von Kant, O que você queer, Gangue das Bonecas – Coletivo Paisagens Poéticas, Mostra Benjamim de Oliveira, UNA-se contra a LGBTfobia, Caminhada das Lésbicas e Bissexuais da Grande BH, Criativas – feira de mulheres empreendedoras, além de todas as feiras independentes que estão acontecendo na cidade, Manifestação Por todas Elas, Lucas Ávila e a exposição “Ela Madalenas”, Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM, Centro do Interesse Feminista e de Gênero – CIFG, Coletivo Zinas, This is not, Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (CELLOS-MG), Vespa, Diverso UFMG – Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero, Slam Clube da Luta, Amazonas Ativismo Gráfico, Gruta Casa de Passagem, Gudds! – Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual, Coletivo Lipstick,
assim como muitxs outrxs, estão articulando resistência na transformação da política corporal de Belo Horizonte. Questionando seus espaços, seus usos. Demonstrando a resiliência de uma corporeidade viva e transgressora. Dessacralizando os mitos dos preconceitos.
Se há um motivo para a celebração no momento é pela possibilidade de articulação. Pela disposição para o diálogo. Pela expressão política dessa visibilidade da presença do outro. Na sequência do livro “A Arte e a cidade – lugares e expressões teatrais de Belo Horizonte” observamos o ritmo da cidade que atravessa o tempo do registro histórico. A pergunta que os autores apresentam já na introdução do livro questiona em que medida a arte, com suas experiências sensoriais, estabelece um diálogo constante com os espaços urbanos a ponto de tornar-se um fator importante na relação do cidadão com a sua cidade, com seus territórios de identidade e com as inúmeras outras questões que permeiam sua existência em um dado lugar.
As reflexões propostas pela publicação situam algumas origens teatrais para a intensa mobilização corporal da cidade que observamos hoje, com tantas manifestações, atos públicos, ocupações, intervenções, manifestos, programações livres e toda uma gama de iniciativas que expandem a compreensão da relação entre a arte e a cidade. Essas indagações são apresentadas pelo livro através de relatos, entrevistas, ensaios e outros vetores que remetem, historicamente, às referências da Grécia antiga, berço da filosofia e do teatro ocidental. Segundo os autores, tal como a filosofia, a tragédia grega é também filha da cidade, fruto direto da constituição do espaço urbano.
“O desenvolvimento da polis grega como o espaço político por excelência foi fundamental para o aparecimento e desenvolvimento do teatro. Isto porque a política grega se fazia em praça pública, por meio do discurso, do embate, da persuasão, permitindo o confronto entre os interesses individuais e os coletivos. A necessidade do diálogo surge com a cidadania, e, junto com a cidadania, surge a noção de espaço urbano como lugar público, pertencente a todos e onde a cidadania pode, por excelência, ser exercida.”
Podemos dizer que o livro “A arte e a cidade – lugares e expressões teatrais de Belo Horizonte” nasce, felizmente, com uma demanda de atualização. A arte e a cidade é uma coleção dinâmica, que pulsa e deve incluir a expressão performática de Belo Horizonte, articulando suas invenções de outras narrativas decoloniais perante sua história oficial de primeira cidade planejada do Brasil. Estamos em plena transformação social, assim como no tempo da Rainha Jesus, de Kassandra ou da Grécia de Eurípedes, autor do mito da princesa de Tróia. Naquele tempo, os gregos começam a assumir novas responsabilidades, já que não podiam mais recorrer aos deuses para justificarem suas ações.
Hoje, estamos todos saindo do armário, assim como as panelas. Saindo do armário com nossas causas políticas, afetivas, relacionais. Saindo do armário também com nossas dificuldades, com nossas desconfianças, com nossos privilégios e nossa disponibilidade – ou não – de abrir mão deles. Estamos todos diante da possibilidade de se assumir e de assumir a responsabilidade por aquilo que queremos, por aquilo que podemos e devemos conquistar. Hoje podemos reivindicar outros mitos, outras origens, assumindo a oportunidade e o desafio de construir a história que bem entendermos para a nossa vida, para a vida comum. A invenção é nossa ferramenta, assim como a educação compartilhada no coletivo, a fé e a presença.
* Este texto é um processo colaborativo e foi inspirado por um comentário da artista Fernanda Branco Polse sobre a apropriação queer de personagens históricos desenvolvida pelos espetáculos Kassandra e The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven, apresentados no FIT/BH 2016. Agradeço a Fernanda pela inspiração, pela leitura generosa deste texto e pela parceria “O que você queer” (www.oquevocequeer.com). Agradeço também a Igor Leal, pela conversa durante a sua elaboração, e a Daniel Toledo, pelo convite para o Horizonte da Cena e a sensibilidade da edição.
** Queer é um termo em inglês que quer dizer “estranho” e foi utilizado pejorativamente como sinônimo de bicha, sapatão, e outras denominações de pessoas trans-bi-homossexuais que o sistema heteronormativo insistiu historicamente em desqualificar. O termo foi reapropriado pelos movimentos LGBTIQ+, em seus diversos formatos políticos, acadêmicos e artísticos e passou a ser utilizado pela força estético-ética de seu avesso, consagrando o estranhamento de gênero, sexualidade, corpo e pensamento como proposição criativa e transformadora do mundo.