– por Luciana Romagnolli –
Crítica a partir de ¿Que Haré Yo con Esta Espada? (Aproximación a la ley y al problema de la belleza), de Angélica Liddell; Birdie, da Agrupación Señor Serrano; Fugit, do Kamchàtka; Please, Continue (Hamlet), de Roger Bernat; O Ano em que Sonhamos Perigosamente, do Magiluth; e Hamlet – Processo de Revelação, do coletivo Irmão Guimarães, vistos no Mirada 2016.
Nos seis dias em que estive no Mirada 2016, não foram poucas as experiências teatrais significativas, das quais se sai com as células da epiderme e os neurônios perturbados, agitados, como quem necessita rearranjar-se em uma nova organização após o abalo do corpo e das ideias. Nem sempre isso é efeito do espetáculo mais coerente entre proposta e efetiva realização, embora esses também não tenham faltado no festival sediado em Santos. Nas próximas linhas, compartilharei algumas questões sobre os brasileiros O Ano em que Sonhamos Perigosamente, do Magiluth; e Hamlet – Processo de Revelação, do coletivo Irmão Guimarães; e dos espanhois Birdie, da Agrupación Señor Serrano; Fugit, do Kamchàtka; Please, Continue (Hamlet), de Roger Bernat; e, para mim, o mais perturbador: ¿Que Haré Yo con Esta Espada? (Aproximación a la ley y al problema de la belleza), de Angélica Liddell.
Problema urgente da política internacional, a crise dos refugiados é objeto de elaboração artística por vias completamente distintas no modo como conduzem o espectador à crítica e à alteridade em Birdie e Fugit. A proposição cênica do Señor Serrano convoca uma apreciação racional do espectador, instado a um olhar analítico-crítico a partir de procedimentos audiovisuais. É o teatro da des-ilusão. De um lado do palco, um ator sentado de costas para a plateia, portando uma mochila, observa, imóvel, o telão ao fundo. Do outro lado, dois atores-mediadores operam um projetor, uma maquete e outros objetos de proporção diminuta com os quais formam as imagens que vemos na tela. A imigração é somente uma camada dessa dramaturgia, que trata sobretudo da condução/construção/manipulação do olhar pela mídia.
Nos procedimentos de manipulação com projetor e no assunto das migrações elevado à superfície, Birdie aproxima-se do espetáculo português O Meu País É o que o Mar não Quer, apresentado em maio no Festival Internacional de Teatro Palco & Rua – FITBH por Ricardo Correia. Contudo, enquanto este se concentrava na experiência lusitana e em relatos pessoais, no trabalho espanhol a tela de projeção torna-se espaço ampliado para múltiplas associações e analogias que extrapolam limites geográficos e temporais para demarcar recorrências na forma de organização do olhar e do deslocamento humano.
A construção de sentidos se dá por acúmulo. Vemos páginas de jornais serem reenquadradas, manchetes alteradas, num processo de montagem e desmontagem da notícia pelo qual se desvela o processo artificial de mediação pelo qual conhecemos realidades distantes, como tais realidades são construídas e a camada ficcional que os olhares de repórteres, editores, fotógrafos, leitores e espectadores sobrepõem à narrativa jornalística, a um texto e a uma imagem. A fotografia de um campo de golfe (na verdade, da maquete, filmada e manipulada ao vivo) onde refugiados são vistos sobre o muro é decupada, abrem-se janelas com o nome científico da grama e a referência de sua cor na escala pantone, expondo a distância entre a natureza e a imagem.
Cenas de Tippi Hedren assustada com a revoada de Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock (1899-1980), costuram a analogia entre a migração e o medo – essa ameaça do desconhecido que faz cidadãos enjaularem-se em condomínios e rechaçarem aqueles que não reconhecem como iguais. Estes mesmos que, no noticiário diário, não têm rosto nem nome nem família, à diferença dos europeus, norte-americanos e demais cidadãos de classe média ou alta dos quais lemos a biografia e vemos fotografias.
Sobre as imagens projetadas pela dupla da Agrupación Señor Serrano, paira a narração envolvente de uma voz feminina que sugere a reflexividade sobre o próprio olhar: “Não se apresse. Leva tempo para se começar a decifrar uma imagem”. Em última instância, essa voz assume a autorreflexividade de seu próprio fazer, em contraste ao ator de mochila, que permanece espectador em cena, com os olhos fixos na imagem, alheio ao seu modo de produção e às camadas de distância que se empilham entre coisa e simulacro, imagem do simulacro e intervenção humana sobre essa imagem.
A pane nas máquinas ocorrida ao fim da apresentação que presenciei é uma ameaça constante à qual o grupo ainda precisa aprender a solucionar, talvez incorporando sua possibilidade na dramaturgia, para que o ruído não disperse os sentidos construídos.
Tantos estímulos em tensão convocam uma reflexividade crítica acentuada do público, chamando a atenção para a composição de corpos, objetos, imagens, voz e sons e para as operações que manipulam o olhar: recorte, disjunção, ampliação, associação, sobreposição, síntese, deslocamento. Com ironia, o trabalho investe nos processos lógicos para desnaturalizar a fabricação do real.
Nesse aspecto, o espetáculo afasta-se de outros que empregam dispositivos semelhantes, como Senhorita Julia, da inglesa Katie Mitchell, visto na MITsp 2015, na medida em que ambos colocam em cena atores-operadores a produzir ao vivo as imagens a que assistimos na tela grande, mas em Birdie essa dimensão da produção da imagem é problematizada como campo onde concorrem relações de poder.
O que vemos quando olhamos? Na tela, grama é cor que é luz, antes era a grama artificial da maquete feita imagem fotográfica e à qual damos estatuto de real. Quais as mediações, narrativas e ficções que constroem nossa visão de mundo e nossa visão sobre o outro? Ao desmontar as edificações da suposta verdade que resistem na produção de subjetividade coletiva do nosso tempo, Birdie convida o espectador a pensar uma ética da imagem e uma práxis do olhar menos ingênua e automatizada.
Sentir no corpo
A essa abordagem racional, contrapõe-se a experiência sensorial intensa proporcionada por Fugit, do catalão Kamchàtka. Em 2010, os mesmos atores estiveram no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto com o espetáculo que batizou o grupo. Em austeros casacos de lã cinza, como estrangeiros desabituados aos costumes do país para onde migram, eles adentravam as ruas da periferia estabelecendo relações com os passantes sem romper o silêncio, apenas com olhares e sorrisos. Como observei àquela época (ler comentário aqui: http://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/comocao-pelas-ruas-26h2yq7xlwlpuzitlrd98khu6), aos poucos, iam “construindo uma rede de confiança e solidariedade”, que fazia “os habitantes se envolverem na encenação”, abrirem suas casas, oferecer um copo de cerveja, parar o automóvel. Aos espectadores, cabia então a função de observadores do modo como aqueles artistas conseguiam estabelecer relações afetivas e um senso de comunidade temporário, transformando a paisagem urbana e humana.
Fugit mostra a continuidade dessa pesquisa, tanto no modo de atuação quanto na exploração geográfica da cidade. Entretanto, aprofunda a proposição em relação ao público, deslocando o espectador da posição de observador para a de coatuante. Reunido em fila à frente de uma estação de trem do século XIX, o público é atraído por figuras muitos semelhantes às de Kamchàtka, homens e mulheres trajados para viagem, portando malas antigas, que se comunicam somente por gestos e expressões faciais e, assim, conduzem aquele grupo de espectadores a entrar em vagões de trem e a segui-los pelas ruas de Santos como se fosse fugitivos – imigrantes refugiados.
No percurso, os espectadores adentram construções antigas, lugares aparentemente abandonados, feitos esconderijo, e são divididos em grupos menores (por vezes, pessoas que vieram juntas “assistir ao espetáculo” se separam) que cumprem trajetos distintos. Aos poucos, a condução dos atores e as situações forjadas convidam a entrar no jogo – e é essencial fazê-lo para que Fugit se realize.
Esse tipo reenactment, reencenação ou simulação, só tem efeito se há disponibilidade dos espectadores, afinal, como diz o pesquisador espanhol Oscar Cornago, trata-se de um tipo de “obra que se está – estamos – fazendo na medida em que se participa dela”. Se houver recusa, ou se as condições do entorno forem desfavoráveis – por exemplo, se outros espectadores sustentarem posturas de escárnio, desprezo, rejeição ou zombaria; ou a luz do dia não propiciar a mesma sensação de perigo que a deriva pela cidade vazia à noite –, qualquer experiência significativa fica impossibilitada.
E é disso que se trata: de um teatro da experiência – de uma experiência que passa pelo corpo e assim constitui um saber –, no qual a racionalidade é apenas uma das vias de afetação e conhecimento. O corpo do espectador é então implicado na “possibilidade de construir um nós tecido de afetos, dúvidas e inclinações (…) como afirmação de uma vontade coletiva”. Ainda emprestando as palavras de Cornago, “a percepção sensorial deixa de ter uma direção única, que vai da cena ao público, da obra ao espectador, ou do objeto ao sujeito, para apresentar-se como resultado de um meio coletivo e em movimento no qual se cruzam interesses, afetos e vontades distintos”[1].
O recolhimento de nossas identidades e aparelhos celulares, a partilha de um pequeno pedaço de pão entre uma dezena de pessoas ou ser levado dentro de um ônibus, debaixo de um lençol branco, para não se sabe onde, como clandestino, são situações concretas propostas pelo grupo e que provocam no público sensações de perda, desorientação e desamparo. Obviamente, nenhuma simulação seria capaz de repetir o que seja a experiência de um refugiado, como a vivenciada pelos sírios e haitianos nesta década e por outras incontáveis etnias em tantos outros tempos. Se alguma experiência de alteridade é possível, certamente é residual, incompleta, insuficiente. Nem por isso dispensável.
No ônibus de destino incerto, no escuro das ruas vazias, no beco onde o pão é dividido, o espectador pode, talvez, se sua disponibilidade e as condições ao redor permitirem, experimentar um átimo de medo, um momento de desamparo, um instante de solidão, um temor da perda – e essas sensações acionam outras semelhantes gravadas na memória corpórea e se colam também aos músculos e nervos como experiência sensível. Sentir na pele talvez seja o que mais nos aproxima do outro, no sentido da alteridade, nem que seja porque traz esse outro para a luz do que reconhecemos – não mais sem corpo, sem nome, sem rosto.
Numa sociedade midiatizada como a nossa, como vimos em Birdie, onde as ondas migratórias recentes estão sujeita às narrativas desumanizadas que delas fazem os meios de comunicação – confirmadas pela exceção sensacionalista de uma imagem de criança sobre a qual se concentra toda empatia faltante aos demais –, o exercício da alteridade não me parece pouco. Tampouco se limita à dimensão físico-sensória. O tempo todo em que se é espectador-atuante, observado pelos demais, é-se também observador da atuação do outro, de modo que o lugar do público não se estabiliza, ao contrário, é movente e induz à autorreflexividade.
Além disso, há duas cenas armadas pelo Kamchàtka que agem como cortes na representação coletiva, desafiando a imersão. Na primeira delas, barcos de papel e palitos de fósforo representam os refugiados em uma composição simbólica que demanda outra espécie de fruição, de um distanciamento crítico; na última, o público vendado é deixado à própria sorte, de modo que a condução até então realizada pelos atores se rompe. Não há mais pessoas ou regras a seguir. Cada um é deixado com seu corpo, sua experiência e sua consciência.
Foto de Magali Girardin.
A teatralidade da justiça
Assim como o Kamchàtka em Barcelona, outros grupos e encenadores europeus têm proposto espetáculos em que o espectador é deslocado de sua posição de observador para assumir outros papéis na dramaturgia. É o caso de Please, Continue (Hamlet), no qual os diretores Roger Bernat e Yan Duyvendak colocam os espectadores em uma sala de tribunal para serem o público do julgamento de um assassinato: o esfaqueamento de Polônio por Hamlet. A escolha da Sala Princesa Isabel, no Palácio José Bonifácio, com seu formato de auditório, arquitetura clássica e vitrais laterais, envolve o público em uma situação, intensificada pelas camadas de história, memória e simbolismo daquela dramaturgia espacial específica. Além disso, desde o início anuncia-se que sete espectadores serão sorteados a compor o júri ao fim e decidir o destino do réu.
Esse tipo de proposição cênica corresponde a uma concepção da arte teatral como acontecimento do qual os espectadores são parte integrante da constituição dos sentidos: um teatro feito com o público, não mais para o público, valorizando aspectos relacionais para além da fruição contemplativa. Condiz com o momento histórico de crise dos sistemas de representação, incluindo a democracia, e de descrença na repercussão social das práticas performativas, o que leva a uma preocupação cada vez maior com o campo expandido do teatro, considerando seu contexto, seu entorno e suas relações dentro da sociedade. Por isso, o foco recai sobre o público.
Como diz o ensaísta espanhol Oscar Cornago, o que se vê nesse teatro é a “transformação da atividade artística em um gesto social”. Isso abre uma nova perspectiva para a questão da autonomia da arte, pela qual o teatro faz-se zona autônoma de experiência poética e estética desobrigada do utilitarismo e da produtividade cotidianos, mas religado à trama social.
Tanto Fugit quanto Please, Continue (Hamlet) usam o espaço como locação, numa lógica semelhante à cinematográfica, que tangencia o hiper-realismo na medida em que ao efeito de real das ruas da cidade e da sala de tribunal sobrepõe-se a inevitável camada de ficcionalização que a situação teatral gera. Em ambos, também, o espectador toma parte de um jogo duplo: atua e observa, observa e é observado. Seu papel não muda completamente, mas se amplia, rompendo a dicotomia em direção a um trânsito entre lugares e funções. Nem por isso deixa de seguir diretrizes estritas, definidas e propostas por outrem.
Please, Continue (Hamlet) acrescenta ainda outro elemento desestabilizador ao jogo cênico. No dispositivo armado por Roger Bernat, quem desempenha as funções de advogado de defesa, promotor, juiz(a), médico legista e psiquiatra (testemunhas) são de fato profissionais dessas áreas, sem formação teatral, a quem são entregues relatórios descritivos do ocorrido (os ardis da peça shakespeariana) que servirão de base para montarem o caso e prepararem os depoimentos.
Estratégia próxima é empregada em muitos espetáculos do grupo suíço-alemão Rimini Protokoll (que apresentou 100% São Paulo na MITsp 2016), trabalhando com o que chamam de “especialistas do cotidiano”. Somente Hamlet (Matheus Macena, de Caranguejo Overdrive), Ofélia (Mariana Nunes) e Gertrudes (Iléa Ferraz) são representados por atores. Tanto estes quanto os profissionais mudam a cada local de apresentação – o que permanece é o dispositivo e as regras do jogo.
Esse convívio inusitado entre profissionais da justiça e do teatro evidencia as contradições da representação nas duas instâncias e, ao mesmo tempo em que faz da experiência teatral um laboratório social de exceção, onde é possível experimentar o julgamento sobre a vida de alguém sem consequências reais, religa essa experiência estética à vida em sociedade e faz-nos indagar quem atua, quem representa, quando representa e quando não.
Na apresentação a que assisti, a atuação dos atores pareceu mais verossímil e real do que a dos “especialistas”, pelo cuidado em adotar uma prosódia próxima do cotidiano e esvaziar as marcas de representação e convenção, enquanto advogado e promotor, principalmente, carregavam a teatralidade e a pompa próprias dos ritos de tribunal. É provável que grande parte dos espectadores tenha saído com a sensação de que eram eles os que representavam, não Hamlet, Ofélia e Gertrudes. “Nós fazemos teatro contra o mau teatro que querem fazer da realidade”, diria o dramaturgo paulista Fernando Bonassi.
Como a estrutura do jogo é aberta à ação dos profissionais e do júri de espectadores, que variam a cada dia, e os atores que se apresentaram em Santos não eram os mesmos que meses antes fizeram o espetáculo em Recife, por exemplo, cada apresentação é distinta. Como obra aberta, o desempenho dos profissionais afeta demasiadamente a dramaturgia, podendo instaurar uma discussão calorosa sobre culpa e inocência – opondo questões de gênero e classe, como ocorreu em um dos dias do Mirada – ou cair no giro em falso da falta de argumentos e da redundância de acusação e defesa, o que esvazia a discussão e despotencializa a experiência.
Enquanto isso, os espectadores logo retomam uma posição de contemplação, e o tempo cênico se aproxima do tempo cotidiano, arrastado e repetitivo. Não há nem a paixão dos julgamentos que definem o destino de um homem nem a estilização que desloca a percepção. É a relação entre o teatral e o social o que sobressai. O mais interessante, então, talvez seja observar como a performance dos advogados pesa sobre os fatos – o carisma, a loquacidade, a perspicácia mostram-se qualidades de convencimento capazes de falar mais alto do que os princípios éticos dentro de um sistema jurídico baseado na persuasão de juiz(a) e júri popular.
Daí que a pergunta final feita aos sete espectadores-júri na apresentação do dia 11 de setembro era se Hamlet tinha a intenção de matar um ser humano ao esfaquear algo que se movia atrás da cortina, enquanto o propósito verdadeiro de matar o tio, confundido com Polônio, pai de Ofélia, nem sequer é cogitado. De todo modo, independentemente da absolvição pelo júri, o dispositivo armado por Bernat proporciona um olhar renovado sobre a tragédia de Hamlet (ou a tragédia de Ofélia?).
Cabe mencionar que outro trabalho presente na programação do Mirada também ofereceu sua releitura para a obra inesgotável de Shakespeare. Em Hamlet – Processo de Revelação, o ator Emanuel Aragão, do coletivo brasiliense Irmãos Guimarães, reconta a trajetória de Hamlet com suas próprias palavras, a partir do trecho mais célebre – o “ser ou não ser, eis a questão” – e da ênfase nos dois pontos que o seguem, ausentes em traduções como as de Millôr Fernandes, de modo que se altera a qual “questão” se refere. Não se trata de “to be or not to be”, mas do que vem a seguir: suportar a aflição ou reagir violentamente? Eis o dilema ético que resiste do século XVI à atualidade.
Esta apropriação de Hamlet pelos brasilienses encontra sua singularidade num exercício analítico sobre o texto, compartilhado com o público com redobrado didatismo. Com as luzes da plateia acesas, o ator propõe uma conversa em que os espectadores se manifestem quando desejarem – algo que pouco se efetivou na apresentação a que assisti.
Ante o deslocamento da função estética em direção à educativa, sem que uma anule a outra, a estratégia cênica demanda uma equação entre os distintos graus de conhecimento prévio dos espectadores sobre Hamlet. Desde aquele que anuncia nunca ter ouvido falar do personagem aos que já viram incontáveis versões da obra. O desafio enfrentado por Aragão é não perder um dos extremos quando tenta alcançar o outro.
Do desejo e da impotência
Oposto à iluminação de um texto teatral e da abertura da relação entre palco e plateia proposta pelo solo brasiliense, o novo trabalho do grupo pernambucano Magiluth, O Ano em que Sonhamos Perigosamente, aposta numa poética da opacidade, do desentendimento e da distância. Seria possível ainda ver o espetáculo como o embate entre ação e inação, aceitando o paradoxo de que toda ação teatral acontece e não acontece, o que espelha especialmente uma sociedade cada vez mais ativa no ambiente virtual e não na concretude da vida pública.
Como disse o encenador argentino Rodrigo García num texto de 2015 chamado “Sois rematadamente tontos”, reduzir a ação política a curtir ou assinar uma petição online que se espalhe pela rede é conformar-se “com uma existência de fantasmas”[2]. É a esse nosso tempo de protesto online inócuos, campanhas conscientizadoras em redes sociais, de protestos em verde e amarelo e panelaços que contribuíram para a derrubada de uma presidente, mas também de ocupações de escolas públicas paulistanas e de espaços como o cais Estelita, em Recife, em resistência aos esmagamentos capitalísticos das paisagens humanas, que reage o Magiluth.
Na base do trabalho está justamente a dificuldade de responder à questão central: o que fazer(mos)? Mais uma vez recorro a Cornago, quem diz ser esta uma pergunta formulada neste início de século por uma “sociedade que, de forma anônima e coletiva, precisa afirmar sua vontade dentro de uma história com a qual não se identifica e com desconfiança nesses atores que em outras épocas lideraram as ações políticas ou artísticas”[3].
A crise da representação é, hoje, também uma crise da ação. Seja em Madrid ou no Brasil, com culminância na posse do atual presidente. Aos que se opõem a esse destino histórico, após sucessivas derrotas nas instituições representativas nacionais e estaduais, resta, outra vez, indagar/responder: e agora, o que fazer? O Magiluth leva esse processo de incerteza para a cena, compondo um espetáculo dividido em três partes: os ensaios, fiapos de representações e a dança.
Na primeira, os corpos suam em ações sem propósito aparente, experimentadas, abandonadas, trechos de textos e punhos lançados ao ar, como numa sala de ensaio ou num ringue, na preparação para uma luta. Vemos a representação do preparo e despreparo, da falha, da incompletude, da desorientação, do início de um processo de criação que ninguém sabe aonde chegará, da tentativa de transformar o desejo em ação que gere efeito. Um jogo condizente com a crise externa – as palavras soltas falam em uma guerra lá fora – e a interna, por ter sido este um processo criativo marcado pela saída do diretor Pedro Vilela. Como sujeitos, como grupo, como sociedade, buscam-se formas de re-agir e transformar.
Após esse tempo dilatado de exercício, a segunda parte retrabalha as mesmas ações, incorporando agora trechos da tríade tchekhoviana. De A Gaivota, vem o discurso sobre a posição do artista diante das mudanças de seu tempo. De O Jardim das Cerejeiras, a afirmação de quais concessões não fazer. De As Três Irmãs, o adiamento da ação e o questionamento sobre o futuro. A apropriação desses textos faz-se dentro da lógica de pós-produção, sobre a qual escreve o francês Nicolas Bourriaud, interessada não no original, mas no reprocessamento de materiais e sentidos já disponíveis no mundo. Assim, responde formalmente não só a Tchékhov, mas também a desconstruções como as já feitas por Enrique Diaz (que dirigiu A Gaivota – Tema para um conto curto), que compuseram o repertório dessa geração de teatro.
Quando, antes, falei em opacidade, é porque O Ano em que Sonhamos Perigosamente empresta o título de um livro de Slavoj Zizek e conceitos de outro filósofo, Gilles Deleuze, como rizoma, palavra projetada sobre a cena. Essa trama teórica subterrânea é de difícil acesso pelo espectador tanto pelas características próprias da escrita e do pensamento deleuziano quanto pelo modo como o Magiluth opta por uma relação de afastamento do público.
O deboche, marcante em trabalhos como Viúva, Porém Honesta, sai de cena, trocado por episódios pontuais de humor ácido e uma postura de quem se leva a sério. O tom afetivo, que criava cumplicidade com o público, é abandonado por um calculado ignorar da presença dos espectadores. É politicamente compreensível esse investimento em uma dramaturgia que desafie o público a construir sentidos e não satisfaça as suas expectativas, transferindo para a plateia o conflito, sem uma solução cênica que apazigúe os ânimos. Não há alívio catártico.
Se, com Deleuze, “já não acreditamos neste mundo”, como reagir é pergunta que redunda sem resposta. Mas o caminho de construção cênica dessa não resposta seguido pelo Magiluth parece seguir também a fala deleuziana em A Imagem-Tempo de que “o certo é que crer já não significa mais crer em outro mundo, nem num mundo transformado. É apenas, simplesmente, crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo e, para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem nomeadas as coisas”[4]. Algo bastante delicado de se concretizar cenicamente como potência e, em especial, como acontecimento compartilhado com o público, que o afete.
É provável que o espetáculo sofra com o deslocamento de sua cidade Natal; no Recife, a ocupação Estelita, contrária à apropriação do cais para exploração imobiliária, é uma realidade imediata, pulsante, faz parte de um imaginário comum. Em outras praças, os gritos por Estela, de Um Bonde Chamado Desejo, estão muito distantes de uma referência àquela luta urbana, assim como a analogia entre o cais e o jardim das cerejeiras facilmente não se estabelece – o material de divulgação do espetáculo é que dá as pistas de contra-o-quê se quer reagir. Sem o cais Estelita como referência, a atribuição de sentidos por parte do espectador fica destituída de ancoragem e a dramaturgia redunda no reagir sem complemento (contra quê?), uma força sem vetor, um dispêndio de energia que não sai de si. Seria essa a crítica sobre o comportamento social contemporâneo à qual o Magiluth pretende?
Oposta a essa diluição da relação entre referente real, signo e significado, há, por exemplo, uma construção por repetição, retomada e acúmulo que renova os sentidos de um movimento coreografado como metáfora do morrer: aí o espectador é incluído na possibilidade de estabelecer algum vínculo e atribuir sentidos ao que vê. O problema é quando permanece à deriva, apartado da motivação que move aqueles corpos, apanhado e sucumbido na impotência do desejo.
O Ano… é, claramente, um trabalho de crise sobre como continuar. A potência de perigo a que o título alude talvez dependesse de uma conexão maior com os próprios desejos, para que os impulsos de movimento não fiquem sem direção. A armadilha não é tanto a falta de sentido semântico quanto a falta de sentido e direção espacial. Por vezes, porém, é preciso mergulhar no corpo e na crise para compreender para onde ir e descobrir como reinventar-se. Como grupo, como sociedade.
Do desejo e da crueldade
Se toda escrita crítica sabe-se exercício de perda e incompletude, maior é essa consciência da defasagem das letras diante de um trabalho como ¿Que Haré Yo con Esta Espada? (Aproximación a la ley y al problema de la belleza). O teatro de Angélica Liddell é de uma força descomunal que vem da experiência de ser mulher, mas a ultrapassa para atingir a carne dos desejos e da crueldade humanos. Para tanto, convoca corpos, imagens, movimentos e discursos em uma cena polifônica, transbordante de energia, simbologias e estímulos sensíveis e cognitivos.
¿Que Haré Yo con Esta Espada? parte da civilização, que nos constitui culturalmente como sujeitos submetidos a papéis de gênero, até o incivilizado, o irracional que resiste em cada um como pulsão. De certo modo, é como o cavalo com quem a artista espanhola dividia o palco no solo Yo No Soy Bonita, apresentado na MITsp 2014 (leia crítica http://mitsp.org/2014/metacritica-eu-nao-sou-bonita/): sabe que embora domesticados, há algo de indomável sob nossas peles.
Em Yo No Soy Bonita, uma experiência pessoal de abuso é ponto de partida para a crítica à domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino, à mercê do desejo de posse e subjugação pelo masculino. Como disse então Suely Rolnik (linkar: http://mitsp.org/2014/suely-rolnik-discute-o-espetaculo-eu-nao-sou-bonita/), “a cena converte-se num campo de batalha de forças díspares que habitam seu corpo e invadem o espaço. Por trás de seu discurso beligerante ou de vítima, provocador do público, a verdadeira luta não se dá entre ela e o público, mas entre ela e ela mesma, uma luta na qual quem é provocado é a própria realidade”.
Outra vez, em ¿Que Haré Yo con Esta Espada?, Liddell coloca o dedo na ferida do mal-estar de uma civilização que reprime suas pulsões sexuais e de morte não sem consequências. É este mal-estar reprimido que ela restitui em cena com ainda mais potência do que no trabalho anterior. Como ambos os títulos revelam, o problema da beleza é reincidente em seu teatro – assim o é na arte, assim o é na experiência social do ser mulher – e completamente vinculado ao da violência. Com Nietzsche, a artista indaga “como transformar a violência real em poética para nos colocar em contato com a verdadeira natureza, mediante atos contra a natureza”.
A criação transforma em problema estético duas tragédias localizadas em Paris: o ato canibal do japonês Issei Sagawa contra uma mulher a quem dizia amar, nos anos 1980, e o recente ataque terrorista na Boate Bataclan, que deixou mais de uma centena de mortos. Ao alinhavar essas duas faces do horror social da contemporaneidade, Liddell dá uma resposta poética à genealogia da moral francesa – ainda que diversa, em muito formadora da nossa.
Sua abordagem não segue os passos pela superfície do que costumamos ver de um teatro feminista, na defesa da mulher contra a opressão. O gesto é mais perturbador, mira a repulsa, a abjeção, o abominável. Assim, logo de início, a mulher em cena declara o desejo de ser bonita o bastante para ser violentada. “Se alguém violasse o meu cadáver, não seria mais uma vida jogada no lixo”. No absurdo dessa fala, condensa-se o paradoxo da beleza feminina: ser uma espécie de dívida da mulher com a sociedade, pois quando não bela é invisível e desprezada, e ao mesmo tempo ser proibição, pois se bela será objetificada e violada. Eis a dupla violência, de difícil escapatória, que faz da mulher um ser sempre inadequado se deseja mais que se deixa desejar.
Assim, Liddell aproxima beleza e horror, uma relação que o cinema de terror desde sempre explora com suas musas ensanguentadas. A artista investe nesses nós paradoxais que não se desarmam, criando lugares de desconforto para o espectador – aquele mesmo mal-estar a que já se está submetido no cotidiano e ao qual o teatro oferece-se como clínica pela via estética. Com as palavras, atravessa a carne da moral que sustenta essa estruturação violenta de sociedade, e com as imagens atinge ainda outro patamar de perturbação. Como ao dispor em cena oito mulheres nuas, magras, loiras, de cabelos longos e olhos azuis, muito novas, como se prefere em uma cultura de traços pedófilos e racistas.
É por esse padrão de beleza comum modelador das nossas subjetividades que somos desafiados para além da racionalidade crítica. Por mais conscientes que nos consideremos, a coreografia dessas mulheres se autoflagelando e se masturbando com tentáculos de polvos (carne crua e morta, como o cadáver violado), é imagem desnorteadora de nossas verdades, certezas e autoenganos. Ao fim do primeiro ato, a reação de parte da plateia foi de afasia. Impossível elaborar pela linguagem o atropelo da experiência e seus efeitos na produção do inconsciente.
Numa cena povoada ainda por figuras da cultura japonesa (matriz de Sagawa) e aparições estranhas, Liddell rasga tabus sexuais e morais. A estetização nas coreografias do assassinato e do abuso disseca o componente emocional, criando estados de deslocamento da percepção em que esses padrões muito cimentados em nosso comportamento parecem se desbloquear, abrindo espaço para outras elaborações. É um teatro de clínica psicanalítica, ou antipsicanalítica, mas sua sintaxe é a da teatralidade, em máxima potência.
Abre-se então o outro problema da beleza, da ordem estética à artística: por um lado, as questões éticas do ato de mostrar a violência como bela; por outro, como o espectador frui esse belo violento. No cinema, por exemplo, a abjeção pode estar na estetização ou sensualização de uma cena de estupro que enquadra um seio nu. Diante desse tipo de produção de imagem guiada pela plasticidade, a percepção da violência, seu incômodo potencial, pode ser obliterada pelo desejo ou a inveja. Diante, então, das ninfas nuas coreografadas, contorcionistas, sincronizadas, com quais sentimentos se defrontará cada espectador?
A operação de perscrutar o imoral no humano avança com o relato do assassino que deseja morrer ao reconhecer em si o pensamento-desejo de matar. “Não se pode julgar vulcões, condenar tormentas”, “como denunciar maremotos?” são indagações que apontam para uma natureza selvagem do humano. Brecht diria que é necessário combater a atribuição das condições sociais à natureza para permitir sua transformação; com Liddell, não resta dialética, os paradoxos resistem às soluções.
Contra o ideal de pureza que é uma prática de repressão, o teatro de Liddell espetaculariza a “impureza”, expõe as dobras da carne, contorce os corpos de prazer e dor, às convulsões. “A bondade nasce da repressão”, ouve-se, e eis a hipocrisia que funda a civilização: os justos, os bons, as vítimas agradecem que os outros atirem porque assim permanecem santificados. “O assassino não é diferente de vocês”, brada em direção ao público, provocando um deslocamento dos ideais e valores morais judaico-cristãos, assemelhado ao proposto por Nietzsche em sua genealogia da moral.
Investida do poder da palavra, da presença e do microfone, Liddell interrompe a produção de imagens para confrontar os espectadores, improvisando, o que amplifica o efeito de real, e implicando o público nas responsabilidades sobre o que se mostra no palco. Mas “é preciso ser mítico”, avisara a artista em algum momento anterior, prenunciando a atmosfera simbólica e fantástica do seu rito profano de mais de três horas. É ao mito, não à lógica racionalista, que ela confia suas forças.
[1] CORNAGO, Oscar. Ensayos de teoria escénica. Sobre teatralidade, público y democracia. Abada Editores: Madrid, 2015. p. 30.
[2] Idem. p. 36.
[3] Idem. p. 38.
[4] DELEUZE, G. A Imagem-Tempo. Brasiliense: São Paulo, 1990. p. 207.