Ensaio crítico-poético a partir do experimento virtual Telekinesis (Co-Inspirantes – Chile) apresentado na programação do JUNTA- Festival Internacional de Dança de Teresina –Edição 2020.
– Por Samuel Leandro e Clóvis Domingos-
Imagem: Clóvis Domingos
Telekinesis é uma ação de dança online no espaço doméstico onde o público é o protagonista da experiência. O coletivo Co-Inspirantes (Chile) acompanhou os participantes por 45 minutos, via whatsapp, através de um passeio pela própria casa, onde pelo corpo em deslocamento e movimento, fomos convidados e instigados a transformar ações domésticas (como fazer café, varrer e interagir com o espaço da cozinha), em microdanças revolucionárias e alegres. Questões como jogo, espaço doméstico e corpo performativo permeiam essa experiência individual e ao mesmo tempo coletiva. Uma mistura de arte relacional, site specific e dança. Pode o gesto cotidiano ser revolucionário? Como transformar o espaço íntimo em espaço cênico? O que podem pequenos desvios?
As ações eram acompanhadas virtualmente pelo grupo Co-Inspirantes, formado por mulheres artistas que criam dispositivos cênicos que tensionam campos como presença, virtualidade e corpo. No final da ação fomos convidados a partilhar nossa experiência com outros participantes numa plataforma coletiva (pelo zoom metting) e continuamos a dançar juntos, separados e conectados.
O texto que segue é fruto de uma parceria entre dois artistas que buscam pela escrita sobre dança compartilhar as ressonâncias de suas experiências sensíveis e praticar o exercício da crítica como criação, poesia e gesto de intervenção no mundo. Um prolongar no tempo e espaço essas danças camaleônicas. Uma crítica-aventura num mar revolto e ao mesmo tempo calmo de sensações e descobertas.
Como afirma o pesquisador e crítico de cinema Marcelo Ikeda:
“Escrever passa a ser lançar-se a uma aventura na folha de papel em branco, guiada pelos sentimentos que o filme trouxe, mas como ponto de partida, e não como destino de chegada. Não me interessa a crítica como um porto seguro, e sim como um barco à deriva. O crítico escreve sobre o filme, que ele no fundo não sabe bem como é. Ele escreve para tentar decifrar. Ele então divide com o leitor as suas dúvidas, as suas angústias. Ele no fundo escreve sobre si. Ele no fundo escreve para si. Ele escreve para tentar entender, mas não consegue, fracassa. “Decifra-me ou te devoro”, e o crítico é sempre devorado pela esfinge fílmica. A boa crítica é aquela preenchida pelo fracasso, consumida pelo sentimento do crítico de não conseguir dar conta do que é o filme. Como isso é possível? Através de uma escrita trôpega, e não cartesiana, retilínea, apolínea, academicista, militar[1]”.
Talvez nós escrevemos esse texto para continuarmos dançando.
Durante uma semana trocamos mensagens, vídeos, áudios e imagens. Uma provocação mútua. Um jogo de imaginar outros modos de escrita como deslizamento de campos de força e pulsação.
Uma escrita e crítica juntadas e expandidas para celebrar e incendiar afetos e ideias.
Juntadas e propagando ondas policêntricas de mobilidade. Em uma cinesfera[2] ampliada e compartilhada virtualmente no ciberespaço. Em rede.
Escrita em fluxo poético de dança. Fluxo como fator de movimento, livre e controlado, como propôs Laban[3]. Ações performativas em rede com fluxo incontrolável de informações e palpitações poéticas gerando microdanças subversivas.
08/11/2020. 21:11. Após a experiência.
Clóvis: Boa noite Samuel. Depois de varrer, fazer café, dançar e compartilhar (Telekinesis foi tão diferente e bonito!), te convido a telecriar. Escrever… E por aqui (no whatsapp), no mesmo dispositivo que nos foi oferecida a experiência programada no Junta – Festival Internacional de Dança de Teresina. Juntar aqui sensações, memórias, movimentos e kinesis. Juntar escritas.
Samuel Leandro: Sim, vamos juntar um espaço criativo em rede.
09/11/2020. 09:52.
Clóvis: Primeiras impressões: pequenas danças. Delicadas coreografias. Epifanias. Movimentos miúdos e ações cotidianas num encontro com o poético, trazendo subversões e relações outras com objetos da casa. Afirmação do presente. Corpo vivo. Descobri como a cor vermelha está exuberante em meu espaço da casa. Fui compondo com o vermelho dos objetos e meu olhar estava atento e encantado. Varrer com o vermelho da paixão e do fogo as tristezas da alma. Vestido com a camisa vermelha (Só percebi depois…), varrer um Brasil doente de ódio, fascismo e mortes. Não é um vermelho de partido político, mas de vida mesmo.
10/11/2020. 23:50. O afeto da lembrança
Imagem: Clóvis Domingos
Samuel Leandro: Varrer, arrastar, flutuar para longe as sensações que afetam. Crescer, expandir, subir. Improvisação na gafieira, dois corpos, um inerte e um dinâmico. Um duo entre cotidiano virtualizado e corpo performativo. Fazer café. Presença. Foco do olhar. Espaço direto. Cheiro de café, xícara, afeto. Calor do fogo, água que desce da xícara pelo meu corpo. Onda. Rede, rizoma, conexão. Radicais, línguas, linguagem: dança.
13/11/2020. 11:35.
Clóvis: Um duo entre duas realidades. Dançar o pequeno. Desencardir o habitual. O cotidiano é poético. O cheiro do café. A xícara e a memória de uma pessoa amada. Os objetos presentificam ausências. Uma colher se transforma em espelho. Eu refletido de forma invertida e embaçada. Transgredir os usos utilitários das coisas. A xícara que minha irmã me deu e estava guardada há tanto tempo. Uma xícara é um corpo? Num objeto respiram muitas histórias e afetos. Mínimas celebrações.
Samuel Leandro: Sobrevivências e subversões poéticas. Sentir pelo varrer, limpar dançando, dançar limpando. Memórias. Cheiros. Sensações. Mapeamento. Direcionamento. Dinâmicas labanianas de esforço. Sabor e sensação. Café forte. Café amargo. O amargo que trava, resiste. O doce que flui sem empecilhos. Fluxo contido. Fluxo livre. Gotículas de água fluindo na xícara.
Clóvis: Gotículas de suor escorreram no meu braço. Parei. Observei o percurso. O tempo bom entre uma ação e outra propostas nesta dança virtual. Ou era real? Não houve pressa. Um convite à percepção que pode ser lenta e preguiçosa. Os vídeos enviados (durante a ação) co-inspirando e conspirando miragens com suas imagens que me abraçavam… Percebo esses vídeos como companheiros e presenças numa viagem exploratória pelos recantos adormecidos e esquecidos do corpo e da casa. Dançávamos tão longe e tão perto. Ou tão perto e tão longe?
Um tempo depois, Clóvis:
[12:29, 15/11/2020] Cada um em algum canto do mundo e conectados numa mesma ação. Danças-vaga-lume. Limpando. Dançando. Preparando algo. E depois veio o compartilhar coletivo. Momento de escuta, troca e partilha. Palavras dançando. Os pelos à flor da tela. O íntimo e o público. Foi lindo construir isso com você e com um bando de desconhecidos. Um chamado, não um programa de regras a ser cumprido. Você subverteu alguma parte? Pequenas danças (entre)vistas e outras ocultas. Eu dancei comigo e para mim. Dancei com você. Minha vassoura vermelha. Vermelho: cor de sangue. Vida. Vermelho fogo. O Junta Festival de Dança com suas plataformas incendiárias (um tema insurgente, urgente e necessário). Labaredas do desejo. Incendiar levantes. O fogo que destrói também aquece. Transforma. Combustão.
Isso arde. Isso arte.
Isso queima. Isso teima.
Isso pode. Isso move.
Isso JUNTA.
[14:29, 15/11/2020]. Segue, Samuel, um poema da Adélia Prado:
Momento
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio, um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça.
A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
Samuel Leandro: O vermelho da colher. Vermelho do recipiente de café. Preto do café. Preto da panela. Vermelho e preto. Nego. Paraíba, nordeste. Vizinho. Nego todo o poder que se instaura sobre o meu corpo. Subverto-o. Como arte imanente. Latente. Pulsando e vibrando. Corpo vibrátil. Pulsa e emite ondas. Como água, como calor. Fonte de energia que impulsiona o mover no cotidiano. Vídeo. Eletricidade. Transmissão. Rede rizomática de pessoas conectadas. Juntas dançando. Junta-se em um corpo cotidiano uníssono. Juntes movendo-se com arte, pela arte.
Imagem: Samuel Leandro
Clóvis: Juntes dançamos diferentes. O que podem discretos deslocamentos? Seguem fotos que fui fazendo durante a dança no dia da realização.
Samuel Leandro: Tudo vermelho! E aqui um mix de azul, vermelho e preto.
Clóvis: Sim.
Samuel Leandro: E o poema (da Adélia) é lindo também…
Clóvis: Agora veja a imagem oficial da proposta: feche os olhos e veja…
Imagem: Divulgação Coletivo Co-Inspirantes
Samuel Leandro: Linda por sinal:
Azul, vermelho, reflexo, dourado, panelas.
Telekinesis.
Reflexo turvo em alumínio.
Minha imagem.
Sua imagem.
Duo virtual
Em solo ciberespacial.
Clóvis: Os objetos e suas teatralidades. Que relíquias a gente guarda e coleciona? Penso no artista plástico Nino Cais e suas obras que nos lembram que “a gente continua nos objetos que nos cercam”. Estaremos escrevendo uma crítica bailarina? Algo bailando aqui-agora na minha memória-pele.
Samuel Leandro: Uma proposta dançante, uma crítica dançada pelas palavras.
Clóvis: Sim. Uma deriva. Daquilo que resta. Uma crítica de artista.
Samuel Leandro: Uma crítica em fluxo.
Clóvis: Uma semana depois ou ainda estamos naquele agora habitado por objetos, espaços domésticos, danças sutis e tempos entrecruzados? RespirAÇÕES. Você se sentiu acompanhado?
15:35. Solidão
Clóvis: Samuel! Eu arrumando aqui agora meu quarto e de repente cai esse suplemento literário (Suplemento Pernambuco) no chão. Agacho e pego a capa vermelha enquanto espero mensagem tua. Voltou o vermelho! Volta a dimensão dessa violência brasileira sobre nossos corpos (Na capa há o seguinte escrito: “E o barulho de bomba é ali fora e a polícia parte para cima dos teus afetos”). Eles nos agridem. Nós dançamos resistências.
Posso repetir?
Eles nos agridem. Nós dançamos resistências.
Samuel Leandro: Residência.
Reside em cadência o nosso mover.
15:41.
Clóvis: “Casa com vida, prá mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. (…) E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança”. Carlos Drummond de Andrade no poema “Casa Arrumada é assim”.
Uns minutos depois.
Clóvis: Deixa eu ver os arranhões da tua casa?
Samuel Leandro: Em rápidos lampejos as lembranças vêm à tona e mobilizam o pensar.
Clóvis: Sim, mobilizam através das mobílias…
Samuel Leandro: Convidar para uma dança na casa arranhada.
Clóvis: Sim. Para sentir como os pés e todo corpo sentem essas frestas…. Penso nas coreopolíticas, como escreveu o André Lepecki. Dançar sob o chão esburacado. Isso é possível.
Espaços vazados.
Vazios.
Vacilos
Ou vassalos?
Vazar rios.
Jorrar movimentos.
(Move-menos?)
Clóvis: Samuel, você ainda deseja escrever mais alguma coisa? Ou podemos finalizar esse diálogo coreografado? Se sim, como terminar essa dança das alteridades? Haveria um último gesto?
Meu movimento agora é de espera…
Olhando o celular o tempo todo.
Clóvis: Quer me mandar alguma imagem de algum objeto da tua casa? Assim eu posso ensaiar o fim com um recomeço.
[16:05, 15/11/2020]. Envio de imagens
Imagem: Samuel Leandro
Samuel Leandro: O espaço varrido do movimento.
Clóvis: Teu corpo ainda se agita aí. Obrigado. Vou varrer e juntar o texto todo agora. Envio para você ver o que acha. Um abraço!
Samuel Leandro: Abraço.
[19:29, 15/11/2020].
Clóvis e Samuel Leandro:
E algo que nesse texto não se alcança,
naufraga,
logo dança.
_____________________________________________________
Samuel Leandro é artista-pesquisador da dança com ênfase em processos criativos e mediação tecnológica. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Tem Licenciatura em Dança pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Ficha técnica de Telekinesis:
Criadoras – guias: Nicole Sazo, Diana Carvajal, Loreto Caviedes, Kamille Gutiérrez e Camila Rojas
Desenho audiovisual: Mila Ercoli
Desenho sonoro: Emiliana Abril
[1] Texto: A crítica (o crítico) como um barco à deriva. Disponível em: https://doidosporcinema.wordpress.com/2010/09/07/critica-em-xeque/.
[2] “O termo Cinesfera refere-se ao espaço físico tridimensional ao redor do corpo, alcançável ao estender-se sem que seja necessário transferir seu peso” (FERNANDES, 2006, P. 182).
[3] LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. Ed organizada por Lisa Ullmann. Tradução: Anna Maria Barros De Vecchi e Maria Silva Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1978.