– por Luciana Romagnolli –
Ao Banho de Sol,
“Nossa vida é finita.
Tem um marco de proporcionalidade que o perdão excede”.
Amélia Valcárcel. A memória, a justiça e o perdão.
Hesitei antes de escrever essas palavras. Havia algo a dizer que o formato convencional da crítica parecia trair. Admito o momento de crise com a crítica, que não se descola do momento de crise com a política, com os tribunais virtuais, com os discursos, as representações e os julgamentos. Essas escritas que se lançam ao mundo pretensamente detentoras de algo a dizer sobre o outro. Como escrever sobre um trabalho que os corpos ainda cumprem em presença, no qual ainda se colocam com toda sua carne e suas terminações nervosas? Como gerar, a partir da crítica, um espaço de convívio? Ou precisaremos de outra coisa? Outra forma de estar com as palavras e as obras e as pessoas? Outra forma de negociar sentidos?
Por isso escrevo assim, feito arremedo de carta pública. Pensei endereçá-la às atrizes Gláucia, Talita, Kelly e Mariana, mas seria um gesto metonímico: tomar as autoras pela obra. Por mais que estejam em cena, com seus corpos e humores, por mais que a peça seja a elaboração cênica de uma vivência delas como professoras de teatro em uma instituição carcerária para mulheres, “Banho de Sol” é uma parte da obra que essas artistas vêm constituindo ao longo de uma vida em cena. E tomar um momento como definidor de uma vida – o próprio espetáculo alerta – é insuficiente.
Isso não significa que eu esteja defendendo uma visada pretensamente objetiva e distanciada ao trabalho. Tal como é tecido, de suor e lágrima das mulheres aprisionadas, das mulheres artistas, de homens e mulheres na plateia ou no palco, “Banho de Sol” demanda um sujeito de carne e osso para tentar estabelecer um diálogo.
Afinal, a primeira aproximação à peça já é da ordem desse encontro pessoal. Quando Mariana, Kelly, Talita e Gláucia nos recepcionam e cumprimentam com suas roupas “de passeio”, essas que elas e nós podemos usar por não estarmos condenadas ao cárcere, nos fazem pensar em nossos privilégios de ir e vir e consumir com variada liberdade, de acordo com a rotina que a classe social e a ideologia à qual nos alinhamos permita. De trajes de banho, evocam a distância entre nossos lazeres e as duas horas de banho de sol permitidas dentro de um presídio.
Neste início, como um prólogo, convocam a um olhar crítico e estabelecem algumas diretrizes éticas determinantes para o trabalho, que eu compreendi como uma espécie de “carta de intenções” que deixa vestígios para interpretarmos tudo o que vem depois. É o momento de autocrítica, quando comentam ter passado um ano dando as aulas de teatro dentro de um presídio feminino para mulheres presas por crimes hediondos e, só depois de encerrado o período, tomaram consciência da prevalência de mulheres negras nessa condição de privação da liberdade.
Com base nessa constatação tardia e no fato de serem quatro mulheres brancas, Talita localiza o público (de maioria branca, como de praxe numa instituição burguesa) e as artistas na estrutura social racista. “O sistema somos nós”, sintetiza.
Nós no sistema
Adianto, aqui, que essa é uma das questões que insistiram na minha cabeça dias após a peça. Embora afiada, a frase não me parece dar conta da complexidade social a que alude. O sistema somos nós em que medida? Como esse sistema opera? Por quais motivos é cruel e seletivo? Que poder de decisão de fato temos, enquanto sujeitos, ou grupo social, dentro de uma estrutura de cinco séculos, dominada por grupos de capital financeiro inimaginável para trabalhadores de classe média?
Não sugiro que não tenhamos nenhuma responsabilidade ou possibilidade de ação, pelo contrário. Mas penso que se o problema é estrutural, a responsabilidade não pode ser individualizada, pois esbarra na impotência de cada um, nos limites de ação de pequenas formações temporárias de “nós” como é uma platéia de teatro, e a quais nós se refere.
Então, seria preciso discutir como o sistema se estrutura (pela exclusão dos corpos “indesejáveis”, pelo racismo…) e se atualiza; e por quais modos opera a seleção racial que define quem será ou não punido. Entretanto, por efeito da tomada de consciência racial posterior ao fim das aulas no presídio, só pontualmente as questões de raça e classe são tratadas explicitamente na dramaturgia das cenas criadas a partir dos encontros com as mulheres.
Entendo a escolha de abordagem de “Banho de Sol”, então, como outra. Menos política no sentido macro, mais de uma política da empatia. E até que ponto é justo cobrar de uma obra o que ela não pretende ser?
Sim, o terreno que se abre é o da justiça. Mas não o do tribunal. Voltaremos a isso depois.
Pacto dos pressupostos
Compreendi esse prólogo, então, como uma negociação de valores, no qual as posições (anti-Bolsonaro e anti-Pena de Morte, sobretudo) são pactuadas como premissas básicas. E é importante que elas não fiquem só implícitas, mas sejam afirmadas, como pressupostos sem os quais o diálogo palco-plateia seria inviável.
Isso não significa que as artistas pressuponham que todos os presentes partilhem das mesmas posições, mas que haja uma mínima abertura ou disposição para olharmos pela perspectiva delas.
Afinal, quanta energia não gastamos tentando conversar com pressupostos incompatíveis? Ou quando sucumbimos à agenda embrutecedora desse governo, que bloqueias avanços da discussão pública quando questões como a de gênero regridem ao azul x rosa, por exemplo?
Distâncias e visibilidades
O distanciamento crítico proporcionado de início é especialmente importante porque a encenação que se segue se baseia na identificação e na catarse, com altíssimo apelo emocional. Tão logo começa a narrativa do processo de entrada das quatro na penitenciária, as atrizes criam um espaço imaginário de muita empatia pela dor daquelas mulheres, submetidas a violências simbólicas e físicas. A maior delas, a restrição da liberdade a um cubículo por anos a fio. Minha reação e a de muitos ao redor foi de comoção.
O procedimento cênico criado para dar concretude a esse ambiente carcerário impossível de ser reproduzido em um teatro é um retângulo desenhado no chão, com as medidas da cela, preservado permanentemente em cena, para que a proporção da privação nunca seja esquecida. Nenhum outro esforço feito pelas atrizes para restabelecer nos olhos alheios a percepção da humanidade daquelas mulheres é mais contundente do que essa noção espacial do quinhão de mundo ao qual são restritas. Assim, “Banho de Sol” indaga como tais condições podem preparar para um retorno sadio ao convívio social. Como não enlouquecer ali?
Outro desafio para a encenação é como representar/presentificar essas mulheres. As atrizes optam por não usar imagens nem depoimentos em áudio, nada que identifique um rosto, uma voz, um corpo. Afinal, não fazem um documentário sobre as habitantes do presídio feminino, tampouco uma investigação social, política e jurídica do sistema carcerário ou da ideologia punitivista. A peça narra a dimensão humana do encontro dessas quatro atrizes com aquelas mulheres, dentro dos limites e da grandiosidade dessa experiência.
A ética que rege a cena é a da não exposição delas. Não reconhecemos quem são, salvo exceções que, significativamente, correspondem a mulheres brancas de classe privilegiada: a mulher que talvez tenha comandado Minas Gerais por anos (não enquadrada como crime hediondo) e a que matou os pais.
A opção das atrizes por não se pôr no lugar delas nos diz algo sobre a impossibilidade de representação de um outro em situação tão distinta. Ao mesmo tempo, dá visibilidade à invisibilidade social das mulheres em situação prisional. E mais: Mulheres da plateia são convocadas para a construção das cenas; estas, sim, ocupam um lugar de representação do corpo coletivo das presas e emprestam seus corpos à ideia professada de que “poderia ser uma de nós ali”.
Poderia? Penso que, no limite, sim. Pelas estatísticas sociais, menos provável.
No livro “Encarceramento em Massa”, a pesquisadora abolicionista Juliana Borges chama a atenção para como os presídios se configuraram como as novas senzalas na sociedade brasileira e para a falta de uma perspectiva interseccional na elaboração de políticas públicas. “As ideologias punitivista e racista operam de modo tão articulado e estão tão internalizadas, que muitas pessoas simplesmente não conseguem conceber uma realidade sem aprisionamentos”, diz a autora.
Este talvez seja o ponto central de “Banho de Sol”. Talita anuncia entre suas intenções que, se houver ao menos uma pessoa presa injustamente, será contra a existência de prisões. Em acordo, retomo, então, as palavras de Juliana: “nesse sentido, é preciso buscarmos outras questões, mais profundas, que garantam que cada vez menos pessoas sejam encarceradas e que não precisemos mais de prisões” (BORGES, 2019, p. 117).
A experiência do público, contudo, encontra o limite de estar diante/dentro de um palco povoado por pessoas brancas com suas roupas de passeio (as espectadoras), que muito dificilmente farão conexão com um presídio abarrotado de pessoas em maioria negras impedidas de contato com o mundo exterior. Essa distância entre a situação prisional e a cênica evidencia como a racialização dos corpos em cena seria fundamental para o debate em questão.
Momento definidor
De todas as escolhas estéticas pautadas eticamente em “Banho de Sol”, a que mais me perturba, e motiva esta escrita, é a de nunca abordar os crimes cometidos. Com isso, de modo algum defendo que se instaurasse um tribunal público para julgá-las – já bastam os do Twitter, Instagram e Facebook.
Compreendo que a opção das artistas seja por lidar com aquelas mulheres pelo que elas são para além de um ato cometido. Talita também tangencia esse ponto no prólogo com uma questão de extrema pertinência, que ainda reverbera em mim: quem gostaria de ser definido por um único momento de sua vida?
A exceção acentua a recusa a abordar os atos cometidos quando, mais tarde, ouvimos a única narrativa do “crime” de uma das mulheres anônimas. Um relato trágico de abandono parental, pobreza, distúrbio psiquiátrico e infanticídio (para usar aqui palavras cruas, deixando a experiência catártica a quem ainda for assistir à peça). A construção impactante expõe os mecanismos de exclusão social que pavimentam o caminho de uma mulher até a cadeia, como exemplo concreto do que significa “não ter a quem recorrer”.
O meu questionamento é sobre o efeito de ser esse o único relato de crime. Um caso em que a ausência de medicação para um transtorno grave aponta para um incidente de insanidade mental, expondo a falta de acesso a um julgamento justo e, com isso, a falha na aplicação da lei, mais do que na legislação em si. Ainda que concordemos com a simplificação de equiparar a legislação à sua aplicação, como partes inseparáveis de um sistema jurídico forjado por homens brancos, pergunto: por que apresentar ao público somente a história de uma mulher cujo “crime” é mais facilmente justificável?
Sem dúvida, a estrutura racista produz numerosos outros casos em que as condições sociais precipitam atos de violência ou mesmo de condenações antecipadas e equivocadas – se um policial é capaz de atirar em um menino negro por “confundir” o guarda-chuva com uma arma, o que dirá aprisionar? Se “Banho de Sol” fizesse esse recorte racial e social na estrutura da própria peça, talvez não houvesse o que interpor nesta carta.
Mas hei de lembrar que entram na cena menções a mulheres brancas, ricas, que mesmo em menor número também compõem a população carcerária. E hei de lembrar que, entre as injustiças evidentes, sobram vítimas de atos classificados como crimes hediondos, que sofreram violências irreparáveis; a maior delas, a destituição da vida. Para reverter a desumanização das mulheres em situação prisional, a encenação realiza o que eu vejo como um apagamento de atos de violência cometidos. É preciso esquecer esses atos para considerarmos a humanidade de quem os comete?
Nem tanto monstro, nem tanto vítima. Como olhar para essas mulheres e conjugar o que vem do lugar social à singularidade? E, então, como fazer a crítica ao sistema carcerário e ao punitivismo da nossa noção de justiça sem desarticular qualquer possibilidade de atribuir responsabilidade a um ato definitivo como o de estupro e/ou morte?
Outra síntese
Ainda no prólogo, Talita deixa explícito que fará a defesa dessas mulheres porque o contrário disso já acontece cotidianamente (conhecemos os discursos de “bandido bom é bandido morto” ou sobre gastos “excessivos” com pessoas em situação prisional). Penso se “Banho de Sol” é a segunda parte de uma estrutura dialética, que responde com defesa irrestrita à ofensiva social desumanizadora, e se isso pode provocar no público uma síntese outra, dentro do campo ético de cada um.
No meu caso, e por isso tento alguma pessoalidade nesta escrita, é impossível assistir à peça sem considerar a vivência de uma morte por assassinato na família (cometida por um homem branco de classe privilegiada). Quando Talita alerta que, se alguém perdeu uma pessoa amada, respeita essa dor, mas a questão da peça é outra, penso na irreparabilidade da morte. Não no luto de quem fica, mas na privação absoluta de quem morre. Daí meu desconforto em ter essa dimensão da violência totalmente encoberta em uma experiência cênica catártica.
É no prólogo também que aparece algum dissenso entre as artistas, quando Kelly se questiona repetidamente sobre a necessidade de adotarem uma perspectiva mais crua. A dúvida dela persiste em mim, especialmente porque o distanciamento crítico do prólogo não retorna ao palco.
Ressocialização
Para tornar viável a ressocialização de quem comete um ato criminoso, Juliana Borges diz que “precisamos repensar o sistema de justiça que se organiza não pela vingança e pela punição, mas, principalmente, pela restauração e pela reconciliação” (2019, p. 119). Sem pretender equiparar a posição abolicionista dela e a minha aqui expressa, deixo reverberarem algumas das críticas que ela faz no sentido de reiterar a necessidade de discussões mais complexas e aprofundadas sobre o tema, para além de um momento, de um ato, de um trabalho único.
Penso que só isso poderia, diante da impossibilidade da reparação, abrir espaço para fabularmos outra possibilidade de responsabilização de quem comete um ato violento, que não sejam a vingança nem o apagamento da violência cometida.
Abraços,
Luciana Romagnolli
06 de junho de 2019.
Ps. Encontrei aqui a lista de crimes hediondos segundo a legislação brasileira: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm
Pss. O livro da Juliana Borges, O que é encarceramento em massa?, foi publicado pela Letramento Editora e Livraria LTDA, em 2018, e pela editora Pólen, em 2019.