Crítica a partir da cena Se Os Homens São Feitos do Barro Nós Somos Feitas de Lama[1]
– Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras-UFMG / CNPq –
Fotos de Pablo Bernardo
O lugar da representação é o teatro espanca!, espaço localizado na Rua Aarão Reis, no hipercentro de Belo Horizonte, e o evento é a segundaPRETA, projeto que, já em sua quinta temporada, se converteu em uma instância de divulgação e ressignificação da arte negra produzida na cidade. Diversas propostas de trabalhos e intervenções artísticas têm sido apresentadas, demonstrando a alta qualidade e o vasto campo de atuação dos artistas pretos locais, corroborando a assertiva de que existe uma intensa produção artística negra, revelando pesquisas relevantes embasadas em estéticas diferenciadas, voltadas para o campo do teatro e das suas interfaces com a dança, a música e a performance. É neste contexto que, fechando a 4ª temporada do evento, é apresentada a cena-performance Se os homens são feitos do barro nós somos feitas da lama, potente trabalho protagonizado pelas atrizes trans Giovanna Heliodoro e Juhlia Santos, que nos traz reflexões contundentes acerca das identidades de gênero.
No prefácio de seu livro, Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”, Judith Butler, ao argumentar sobre as relações de gênero, nos apresenta alguns questionamentos:
Mas, se não existe tal sujeito que decide sobre seu gênero e se, pelo contrário, o gênero é parte do que determina o sujeito, como poderia formular um projeto que preserve as práticas de gêneros, como os lugares da instância crítica? Se o gênero se constrói por meio das relações de poder e, especificamente, as restrições normativas que não apenas produzem, mas, além do mais, regulam os diversos seres corporais, como se poderia fazer derivar a instância desta noção de gênero, entendida como o efeito da restrição produtiva? Se o gênero não é um artifício que possa se adaptar ou se recusar a vontade e, portanto, não é um efeito da escolha, como poderíamos compreender a condição constitutiva e compulsiva das normas de gênero sem cair na armadilha do determinismo cultural? Como poderíamos precisamente compreender a recepção ritualizada por meio da qual essas normas produzem e estabilizam não só os efeitos do gênero, mas também a materialidade do sexo? E esta repetição, esta rearticulação, pode também constituir uma oportunidade para reelaborar, de maneira crítica, normas aparentemente constitutivas do gênero? (BUTLER, 2002, p. 13, original em espanhol, tradução minha)
As considerações de Butler se fazem fundamentais para as distintas possibilidades de leituras de Se os homens são feitos do barro nós somos feitas da lama.
Três mulheres negras integram/dominam o espaço cênico com suas corporeidades. Daniele Milena, como uma Equede e ao comando de um atabaque, instala e instaura o toque ancestral do tambor – elo de conexão com a Terra, o Aiyê, e com o Orum –, instrumento que rege a comunicação dos humanos com os Orixás – inaugurando, na cena, o rito performático, e, a partir deste lugar, ela zela, cuida e rege as ações performáticas propostas pelas atrizes Giovanna Heliodoro e Juhlia Santos por meio de seus corpos-identidades. “Corpos-identidades” aqui é a forma de legitimar e demarcar as subjetividades e as identidades de gênero que são trazidas durante a execução da performance e a partir da intervenção cênica das atrizes que, artisticamente, colocam seus corpos em destaque e em discussão diante do olhar do espectador. Desta forma, Giovanna Heliodoro e Juhlia Santos contribuem para a desconstrução das categorias de gênero, respondem e, ao mesmo tempo, colocam em debate, a partir de suas corporeidades, os questionamentos propostos por Butler.
As artistas explicitam a proposta do trabalho, argumentando que esse:
consiste em uma performance que aborda questões sobre a higienização social no que tange à raça e ao gênero. As imposições sociais lançadas ao negro com um recorte no gênero trans, são questionadas de forma não-panfletária, a fim gerar liberdade de pensamentos e reflexões referentes ao tema. O projeto é protagonizado por duas artistas travestis negras que convidam mulheres cis negras, lésbicas oriundas do Kilombo Manzo. (…)
É interessante observar o engajamento das atrizes em relação à potência e ao lugar de transformação exercido pela arte que representam. Conscientes de suas representatividades, elas se autodeclaram como artistas travestis negras, reforçando assim seus lugares de fala e de legitimidade dos discursos que elas trazem para cena; discursos esses que não se expressam por meio de palavras, mas de seus próprios corpos que vão se desnudando diante do olhar da plateia, instaurando outros espaços simbólicos de ocupação e de reverberação de seus corpos para os espectadores presentes. Ambas as atrizes adentram o espaço de “representação” e cada uma ocupa um lado da sala, de onde performatizam ações corpóreas, individualizadas, mas que se complementam nas ações-corpos uma da outra. Seus corpos são, o tempo todo, reconfigurados em cena, “obrigando” o espectador a ressignificar cada gesto que elas propõem. O ato de despir-se, metafórica e metonimicamente, inaugura sentidos múltiplos: Giovanna, várias vezes, vai em direção do público e, muito próxima, quase toca em alguns espectadores com o seu corpo, repetindo o gesto de examinar as suas próprias celulites; Juhlia maquila seu rosto com pancake preto, numa tonalidade bem mais escura que a sua pele, e “lambuza” os lábios de batom vermelho – corpo-clown?–; Giovanna se “embranquece” bebendo vorazmente o leite de uma garrafa de plástico branca – uma imagem simbólica que reitera a ação da branquitude sob a corporeidade negra –; Juhlia depila sua parte íntima. São gestos-mensagens sublimados e que superam quaisquer palavras, mas dizem muito dos lugares dos corpos silenciados que representam, refletindo sobre as identidades de gênero e/ou racial das atrizes. As imagens vão se sobrepondo umas as outras, fazendo com que o espectador não tenha tempo de “digerir” o impacto de cada uma; são imagens- “decifram-me ou eu te devoro” e, de fato, somos devorados pelos gestos/imagens que ultrapassam o lugar de representação da performance.
As imagens “individuais” das atrizes se exacerbam cada vez mais, até que se transformam em uma imagem sublimar quando ambas as atrizes, começando por Juhlia Santos, começam a se enlamear num processo de travestir os seus corpos com barro-lama – evocando a senhora da lama, Naña Buruquê, a deidade que representa a síntese dos elementos primordiais e que justifica a ideia de “começo, meio e fim”, a dona da lama da qual surgimos como seres humanos: há que se recuperar a sonoridade ancestral do tambor trazida para a cena por Daniele Milena –, ressignificando os sentidos que possam sugerir os vocábulos “barro” e “lama” e fundamentando o título da performance. Seria o barro mais “nobre” que a lama? Respostas que deixo para reflexão…
A imagem-gesto final transcende o espaço cênico e rompe as fronteiras das palavras e das falas-verbo: com os corpos completamente enlameados, as atrizes pegam panos brancos e vão em direção à plateia, entregando-os para pessoas presentes, selecionando, entre essas, alguns homens como se quisessem que houvesse uma gama de representatividade diferenciada – corpos cis, mas com tipos físicos distintos e com mais ou menos melanina na pele. Assim que entregam todos os panos, elas se deitam e ali ficam à espera até que todos entendam que cada pessoa que recebeu o pano deverá limpar a lama que entranhou (ficou entranhada) em seus corpos (das atrizes e, simbolicamente, de toda a plateia). Dá-se início ao processo de visibilidade daqueles corpos a partir da “limpeza” da lama. As mulheres e aqueles homens, escolhidos a dedo, têm a função de limpar os corpos das atrizes, ou, talvez, quem sabe, de dar vazão, pelo ato de “limpeza” física e simbólica, às suas potencialidades, identidades, subjetividades… possibilidades de leituras múltiplas…
Dos corpos e das corporeidades destas mulheres trans negras trazidos para a cena implodem as palavras-testemunho de Juhlia Santos, ao responder sobre o alcance do trabalho apresentado, no momento do debate realizado no dia 23 de abril de 2018 na segundaPRETA:
Nós, Giovanna e Juhlia, “podemos falar”, mas porque estamos num lugar de passibilidade social. “Falamos bem”, “nos vestimos bem”, somos acadêmicas, tivemos possibilidades de acesso. Elas perguntam: vocês escutariam nossas outras manas que estão se prostituindo nas ruas, que “não falam bem”, “não se vestem bem” e não são acadêmicas?
Suas palavras dizem mais que qualquer discurso crítico. Eu, partindo de meu lugar de homem negro cis e exercitando o meu olhar de crítico, só posso tentar falar com elas argumentando – e tomando de empréstimo parte do título da obra de Judith Butler – que seus corpos/corporeidades, sim, importam e, mais que isso, que suas corporeidades transcendem o espaço de realização do trabalho artístico e da representatividade que, até então, têm alcançado os trabalhos apresentados na segundaPRETA.
Referências:
BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Trad. Alicira Bixio. Buenos Aires: Paidós, 2002.
[1] Esta leitura crítica integrou o trabalho “Lugares de performatividade dos corpos negros e trans na arte na contemporaneidade” apresentado no I Colóquio Políticas da Performatividade, organizado pelo Grupo de Estudos em Políticas da Performatividade, da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG, no dia 12 de junho de 2018.