– por Juliano Gomes (Revista Cinética) –
Crítica escrita a partir do espetáculo Suíte nº2, de Joris Lacoste (França)
A base do trabalho do diretor francês Joris Lacoste e sua equipe é coletar materiais de fala variados pelo mundo e trazê-los para o palco de forma a explorá-los em sua dimensão sonora, a partir de um trabalho muito preciso de controle e modulação sonora dos sotaques, entonações, volumes e harmonias. Usando códigos visuais de apresentação musical (cavaletes de partitura, roupas neutras, disposição linear e frontal dos performers, coreografias de regência) Suíte nº2 acaba por realçar o duplo sentido da palavra “peça” em português, também em direção à sua inflexão musical. Todo seu desenvolvimento se dá em variar as relações entre som e sentido, entre execução sonora e disposição espacial.
Num momento histórico no qual uma leitura excessivamente unidimensional, literal, tem sido o abismo frequente para o avanço dos olhares, a pujança da exploração semântica aqui empreendida certamente provoca uma cisão política com os modos de se relacionar com a fala do mundo. Quando as corporações tomam para si palavras como “feminismo” e “antirracismo” é imprescindível atentar-se aos modos. Também, haveria aqui um enorme risco de se reencenar a farsa colonial, onde um grupo francês passeia livremente por enunciados macropolíticos, circulação irrestrita, e encontra uma dimensão descontextualizada em que todas se igualariam. Sem dúvida, o trabalho encara o risco do cinismo, da ironia de um relativismo absoluto, sugerindo uma equivalência geral dos falares. A hipótese aqui é que a obra consegue ultrapassar esse vórtice que se apresenta.
Além do investimento no som, os materiais coletados sugerem um teatro de atualidades, um certo inventário do contemporâneo: Trump, Harvey Weinstein, conflitos no Oriente Médio, Pós-ideologia, novas técnicas de comunicação (que amparam conceitualmente a peça e sua pesquisa neste acervo sem fim), discursos de presidentes, homofobia, atendimento ao consumidor, desastre de avião, sexo virtual, abuso policial, religião, imigração, entre outros. Pequenos ganchos de grandes assuntos se tornam gatilhos de atenção na medida em que sua exploração sensorial se desdobra no palco, e a escolha não é de forma nenhuma aleatória. É possível notar, inclusive, um certo panorama apocalíptico dos materiais da primeira metade, sucedido por discursos que colocam perspectivas em seu texto, especialmente o imigrante francófono e a estudante inglesa.
A extrema capacidade expressiva dos intérpretes parece gerar raras ilhas onde o jogo dos desdobramentos sonoros dos textos soa repetitivo técnica ou dramaticamente, como na engraçadíssima cena de uma mulher hispânica ao telefone com o atendente de uma empresa de internet – que usa habilmente o material cancional para criar como refrão a repetição dos universalmente irritantes trechos musicais a que se é submetido ao lidar com teleatendimento de grandes empresas. Apesar disso, há um par de momentos em que o espetáculo parece encantar-se consigo próprio e com seus dispositivos de evolução, exibindo sua técnica impecável. Entretanto, é notável a capacidade de saber desenvolver-se em níveis heterogêneos em cada parte. Sua força reside justamente numa empreitada composicional na qual cada situação percorre níveis variados. Em algumas cenas, o dramático vai caminhando para a prevalência do sonoro, em outra, há a entrada gradual de atores em números que vão se tornando coletivos, e os eventuais cruzamentos e composições de séries variadas – que são o horizonte convergente da encenação. A movimentação no palco, a expressão corporal do elenco e a dimensão plástica das palavras projetadas no telão são vetores menos evidentes que o trabalho modula de forma a conquistar dinâmicas consistentes. É onde ele investe sua forma de variar.
Se o feito mais evidente é fazer da dimensão fonóloga o proscênio do trabalho, é conceitualmente forte que outras dimensões usualmente sobressignificadas nas convenções teatrais tenham um desenvolvimento mais subterrâneo, porém nada neutro. É mais do que uma inversão que se trata aqui, mais do que uma perspectivação a ativar o território sensível entre corpo, afeto e sentido, entre som, informação semântica e pregnância visual.
A prosódia rebuscada do rapper Lil Wayne em A milli (um milionário) aqui emulada, somada a uma narração da queda da bolsa de valores, a fala de hipnotizador e um mantra oriental, combinadas, parecem o ápice da simultaneidade das analogias entre som, sentido, comparação, contraste, produzindo uma montagem política irredutível a um enunciado único. A seguir, o texto projetado como informação visual se autonomiza (massa textual que vira cor cinza), a iluminação se torna mais marcada, encaminhando para porção final com a fala brasileira, que ouvimos gravada pela primeira vez.
Suíte Nº2 resulta como um libelo antiniilista que acredita na recomposição, na tomada de posição em relação aos materiais sensíveis do mundo, como forma de exploração possível e sensível dos vividos. O imenso arquivo que massivamente produzimos está somente à espera de quem possa revelar suas dimensões adormecidas, além da interpretação literal. Toda expressão possui acessos variados. Cabe à arte fazê-las vibrar – é isso que aqui afinal se celebra: a verificação da simultaneidade de multinaturezas em cada ato expressivo, materializadas à nossa frente.
Texto originalmente publicado no site da MITsp.