– Por Diogo Horta –
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Crítica a partir do espetáculo Chuá, da Insensata Companhia de Teatro, assistido no dia 07 de abril de 2023, no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Belo Horizonte.
Mar, lama, açude, pesca, onda, rio, piscina, mangueira, balão d’água, chuva, entupimento, enxurrada, escorregador, toboágua, natação, copo d’água, tromba d’água, suor, a bolsa estourou, riacho, cachoeira, banho, banheira, água quente, águas termais, água, água, água…
Memórias da água inundam nossa mente com sensações, gostos, cheiros e, sobretudo, histórias. O teatro é o elo que conecta essas memórias e inspira nossa imaginação. O espetáculo é Chuá, da Insensata Cia. de Belo Horizonte que apresenta uma obra para crianças com muita sensibilidade, diálogo e afeto. A companhia apresentou no CCBB-BH, nestes meses de março e abril de 2023, uma mostra de seus espetáculos, concluindo, com Chuá, uma trilogia sobre a memória, da qual também fazem parte as criações Memórias de um quintal e Pru-ti-ti – Memórias de estimação.
Para Chuá o grupo se inspira no livro Os rios morrem de sede, de Wander Piroli, e embarca em uma proposta de experiência cênica íntima com a plateia. A partir de um processo de criação coletiva, os atores-diretores enlaçam memórias pessoais com brincadeiras e diálogos com o público, criando uma rede sensível e delicada, difícil de encontrar nos espetáculos para crianças.
A montagem tem seu início ainda no foyer do teatro quando os atores convidam os espectadores a moldar, em um pedaço de argila, uma memória pessoal que esteja relacionada à água. As pequenas esculturas do dia anterior estão espalhadas por uma colcha de retalhos e um ombrelone, debaixo do qual o público da apresentação do dia se senta para criar seus trabalhos em argila. Tanto para as crianças quanto para os adultos, esse é um momento que nos faz viajar pelo tempo e traduzir em uma forma, ou várias, uma memória em argila.
Foto: Elmo Sebastião
O público é convidado a entrar no teatro com sua memória moldada em argila e é avisado que em certo momento será convidado a partilhá-la durante a peça. A partir daí, a plateia é conduzida pelos atores em várias histórias, ora como lavadeiras do Norte de Minas Gerais, ora como as crianças que um dia foram. As lavadeiras são criadas por meio do recurso da meia-máscara expressiva e inspiram a atmosfera nostálgica e de lembranças que o espetáculo possui. No geral, a presença dessas personagens instaura momentos de calmaria e leveza na obra, que se contrapõem aos momentos de interação dos atores com a plateia ou de narrações de suas histórias pessoais, marcados pela brincadeira, pelo jogo de perguntas e respostas com o público e por um ritmo mais acelerado.
Tal fato confere à montagem nuances entre as cenas e permite que os espectadores transitem entre a fruição e a participação. Isso é interessante pois provoca um certo equilíbrio nas crianças que, tendo em vista o anseio por participar, responder as questões e subir no palco para brincar com os atores, entendem os dois momentos pelos quais o espetáculo vai sendo conduzido e se aquietam nos momentos de cena e música protagonizados, em sua maior parte, pelas lavadeiras.
A referência musical do interior de Minas Gerais também é protagonista da obra, seja pelo canto das lavadeiras, seja pela viola caipira tocada ao vivo por um dos atores. Instrumento com sonoridade ímpar, a viola caipira embala o público com canções conhecidas e desconhecidas do público, fazendo soar, no entanto, o interior de Minas em cena, inspirando lembranças em uns e trazendo uma sonoridade inédita a outros. O cenário também nos remete ao interior com tecidos ao centro como cortinas e dois varais laterais com roupas penduradas em tons coloridos e mais claros. Dessa forma, Chuá inspira gerações e provoca em todos, de todas as idades, conexões muito íntimas e sinceras com as cenas do espetáculo.
A água, como já foi dito, é o eixo condutor da criação, sendo trazida por meio de várias referências, desde o barulho de chuva que dá início à peça – produzido pelos próprios atores com pedrinhas e bacias – até um grande rio em tecido que cobre a cena e toda a plateia (como uma bandeira gigante em jogos de futebol). O espetáculo não possui uma história única, mas pequenas histórias de memórias trazidas por cada um dos quatro atores.
A primeira delas é da atriz Brenda Campos, que se conecta consigo mesma no útero materno para perceber quanta água envolve uma criança durante os primeiros nove meses de crescimento na barriga da mãe. Ela, então, pergunta: “Quem aqui já foi peixe?”. De início, ninguém pensa em responder “sim”, até que ela nos conduz a entender a pergunta e concordar com a afirmação poética de que todos fomos peixe algum dia. A provocação ainda avança para uma segunda pergunta: “como o bebê sai da barriga da mãe quando ele fica sem espaço lá dentro?”.
A atriz escuta algumas respostas das crianças e depois explica, tocando em memórias importantes das mamães da plateia, os partos realizados de forma natural ou cirúrgica. Espetáculos que abrem espaço de diálogo com as crianças representam um grande desafio, no entanto, nos presenteiam com ótimos momentos e com a vivacidade das crianças. Dentre os vários momentos de interação, destaco a participação de uma das crianças, que respondeu, sobre o parto, o seguinte: “o dentista passa o bisturi na barriga da mãe e tira o bebê!”. Todos riram da resposta “certeira” da criança e o espetáculo seguiu seu fluxo.
É interessante perceber que os trabalhos da Insensata Cia. não se furtam em tratar de questões geralmente tidas como tabus para crianças. Como a memória dos atores adultos é matéria-prima para as montagens, muitas vezes situações ou questões mais delicadas aparecem e são levadas à cena. Isso acontece nos demais espetáculos da trilogia já citados, como também em Chuá, no qual a seca do Norte de Minas Gerais e as enchentes na periferia de Belo Horizonte são levadas ao palco.
As enchentes no Córrego do Onça, na Região Norte de BH, por exemplo, surgem em cena por meio das memórias do ator Dário Marques, que viu a transformação dos bairros da região e consequentemente os problemas trazidos com a cheia do rio. Com as enchentes, narra a perda dos móveis, carros e casas inteiras, olhando para a plateia como se visse uma grande enchente passando pela sua frente. O interessante da cena é que a narração não é feita de modo emotivo, mas com um distanciamento narrativo – em referência ao teórico alemão Bertolt Brecht – no qual o espectador acompanha um cenário triste e se pergunta como isso ainda pode acontecer e ser tão próximo de nós. Já as crianças, pelo menos no dia em que fui assistir, se sentiram tocadas pelas perdas e tentaram recuperar os itens perdidos correndo até os atores e dizendo: “aqui seu sofá; sua casa de volta; trouxe seu carro…”. Esse momento revela o envolvimento dos pequenos com a montagem e como o espetáculo se conectou com o público nas mais diversas situações.
Como mencionado anteriormente, tais passagens narrativas são intercaladas por cenas de brincadeiras, nas quais algumas crianças são convidadas ao palco. Uma brincadeira de balão de água (que na verdade tem, em seu interior, papel picado), um pedido para uma criança estender uma roupa no varal ou um momento para brincar de equilibrar trouxa de roupa na cabeça, são esses momentos que também contribuem para a relação das crianças com os atores, gerando cumplicidade e parceira que vão se fortalecendo ao longo do espetáculo.
Foto: Elmo Sebastião
É somente no final da peça, quando essa cumplicidade já está reforçada, que o público é convidado a levar suas esculturas de argila para o palco. Após esse momento, os atores vão selecionando e perguntando de quem é aquele trabalho manual e convidando o “escultor” a compartilhar sua memória com os demais.
Por todos esses aspectos, Chuá traz uma sensibilidade e conexão com as pessoas presentes no teatro, envolvendo adultos e crianças em uma teia de memórias, rica em símbolos e com assuntos importantes a serem refletidos e conversados. O cenário, a iluminação e a trilha sonora envolvem de maneira cuidadosa o espectador, como um carinho de casa de vó: simples, por vezes invisível, mas que está sempre ali para trazer afeto e conforto. Dessa forma, a suavidade das cores, dos tons e das notas musicais preenchem a experiência do trabalho com precisão e sensibilidade.
Cabe, por fim, ainda ressaltar a habilidade dos atores, Brenda Campos, Keu Freire, Cláudio Márcio e Dário Marques, em dialogar com as crianças e se afetarem positivamente por suas intervenções. Por conta da proximidade e abertura constante de diálogo com a plateia, os atores trabalham no limite da interação. No entanto, conseguem transitar bem por essa proposta, com jogo de cintura para colocar os limites quando necessário, sair de situações embaraçosas, relevar uma invasão mirim ao cenário ou, até mesmo, incluir crianças em cenas antes não pensadas com elas.
Chuá oferece, portanto, uma experiência rica ao público com o teatro em sua mais forte potência, a do encontro e do convívio, permitindo aos espectadores, como um todo, brincar, dialogar, interagir e refletir.
Ficha técnica:
Grupo: Insensata Cia De Teatro – Belo Horizonte/MG
Criação Coletiva – Direção, Dramaturgia, Elenco, Iluminação, Cenário, Figurino e Trilha
Sonora: Brenda Campos, Claudio Marcio, Dário Marques e Keu Freire
Cenografia e Figurino: Daniel Ducato
Iluminação: Cris Diniz
Assessoria de criação das máscaras: Rafael Protzner
Assessoria de Imprensa: Aclive Comunicação
Projeto gráfico: Anderson Luizes
Coordenação geral: Brenda Campos E Keu Freire
Realização: Insensata Cia De Teatro