Uma conversa crítica sobre Montagem, espetáculo de formatura do Cefart/Fundação Clóvis Salgado.
– por Clóvis Domingos e Mário Rosa-
Fotos de Igor Cerqueira
Clóvis: Mário, que bom você ter aceitado meu convite para fazermos uma conversa a respeito do trabalho Montagem. Penso que nesse exercício, podemos de alguma forma montar um texto crítico num formato mais livre e dialógico e a produção de um discurso mais polifônico. Acho que vamos pensar um pouco juntos e desdobrar percepções e questionamentos a partir do trabalho. Para mim Montagem é uma tentativa de colocar o teatro em questão, isto é, a cena entre fronteiras: artista e espectador, ficção e realidade, individual e coletivo, arte e vida, técnica e espontaneidade. Nesse deslizamento, o trabalho opera por questões bem contemporâneas ao campo da arte, me parece também metalinguístico e expõe de alguma forma sua feitura, seus bastidores, seus dispositivos de feitura. Você de alguma forma também percebe um pouco disso ou pensa diferente? Quais pontos são mais destacáveis na sua percepção?
Mário: Então, estou pensando no que você escreveu sobre fronteiras e sobre os jogos em cena. Concordo com esta noção de que o real e a ficção estruturam o trabalho no espetáculo Montagem. Quando assisti, pensei: não gosto de depoimento. Sei lá, nem é a questão de uma recusa absoluta, mas somente a vontade de ver o que pode o jogo e a ficção, e acho que eles conseguem na proposta encarar o desafio de estarem 20 pessoas em cena, num deslizamento de superfícies (tema, presenças, experiências de contato) em que o barato é perceber o artifício, o que é pra existir na rapidez, na pouca profundidade em discutir e abordar as “questões” e numa urgência também.
Clóvis: Interessante isso, realmente parece ter algo acontecendo numa certa rapidez e urgência de se dizer algo. O espetáculo assume que buscou influências e inspirações nas poéticas de artistas como o coreógrafo Jérôme Bel e o cineasta Eduardo Coutinho. Reconheço alguns pontos de aproximação em alguns momentos. São diretores que montam seus trabalhos nessa fricção entre vida real e vida ficcionalizada. Mas há também a questão do enquadramento, seja da câmera de cinema ou do espaço cênico, o que pra mim acaba resultando que tudo fique de fato mais no campo do imaginário e se torne ficção. Então pra mim o elemento mais preponderante é o jogo que se cria.
Mário: Pensando no que você falou sobre o Coutinho (há uma referência mais explícita ao Jogo de Cena na peça, né? E algo que parece uma inspiração distante do que ele criou na experiência de encontro, da conversa e da ficção nos seus filmes), me veio a pergunta do que é o real quando se está no palco e de que maneira a realidade do estar em cena elabora o que é experiência de vida dos atores, ou melhor, a experiência dos atores juntos na busca de um caminho pra montagem. Nesse caso, sim, o que é real e ficção, como separação ou curiosidade, perde importância, é o jogo que importa.
Clóvis: Está muito presente uma dimensão de festa e “show de calouros”. Tenho dúvida se de fato a virtuosidade e técnica dos atores não se sobrepõem à uma certa busca de fragilidade e exposição (que parecem ser também parte da proposta), até porque, uma vez que está em cena, tudo ganha característica espetacular e mais, especular. Por outro lado, acho que tem uma certa ironia, inteligência e provocação por apresentar quadros com as habilidades e vivências dos atuantes, isso no contexto de um espetáculo de formatura, no qual se presume que, ao final de uma trajetória de estudos e aprendizagens, se vá assistir a um bom e famoso texto dramático ou testemunhar grandes atuações. Para mim é como se colocasse o teatro no campo do comum, isto é, todo mundo pode realizar aquilo, uma certa crítica à ideia de especialização e de preparação técnica. Um outro fator: onde a vida estaria mais interessante: no palco ou no cotidiano? Como um gesto de profanação, aqui numa referência ao Agamben[1], a uma certa sacralização que ainda se tem muito forte no fazer artístico.
Mário: Não acho que os dispositivos de feitura fiquem tão expostos. Sim, há a montagem, a localização dos atores e algumas falas referenciais do processo. É a cena, o teatro e o que já sabemos de um distanciamento da representação, da ausência de personagens, de fragmentos de relatos e ficções. Mas tem um encadeamento de situações que me parece muito bem estruturado e que não sabemos bem onde vai dar. Isso é interessante, pois parece que o que se perde em porosidade no jogo de acaso atrelado à improvisação, ganha no que eles estabelecem como brechas (algumas, poucas) pra relação mais direta com a plateia acontecer, e isso me faz achar que há algo que os fortalece, que me faz pensar que eles estão ali com os recursos que têm, com as histórias que têm e com o que você destacou do resultado de uma formação: o que apresentar? Eu vejo artistas em formação no manejo crítico e irônico dos seus recursos.
Clóvis: Ainda sobre o jogo, também penso no Huizinga e sua teoria do homo ludens e me vem essa citação, que de alguma forma, me remete ao espetáculo do qual estamos conversando:
“Chegamos assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica intimamente ligada à primeira é que o jogo não é vida “corrente” e nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria”.
Nesse ponto, em Montagem, há para mim, uma multiplicidade de jogos: na espectação, na dramaturgia, na encenação, na proposta mesmo.
Mário: Acho que sim. O jogo está lá e também a aposta no dar conta de sustentá-lo. Aí vem pra mim forte o título Montagem. Fico com a impressão de que é esse jogo de montar uma peça, de chegar lá, de encaixar propostas, cenas, experiências de cada um e de permitir que todos estejam ali em ação. Muitas vezes funciona e o forte e como eles variam e intensificam essa sustentação. Agora, sempre volta pra mim, como curiosidade, o quanto as coisas lá estão estruturadas e do quanto há realmente de oscilação entre a “flor de realidade” e a “flor de ficção”. O acaso é controlado e a ficção, bem, gosto de pensar que é o que toma tudo, criando sim essa realidade da cena com o público.
Clóvis: O trabalho me sugere também uma dimensão de convívio e de acontecimento vivo na relação com o público. Mas acho que os atores dominam a cena, até porque os dispositivos já são conhecidos de antemão por eles. Vejo Montagem como uma encenação intervalar: entre programas, gestos e quadros ensaiados e espaços de abertura e porosidade para a improvisação e intervenção do e com o espectador. Uma remontagem que acontece ao vivo e com frescor e alegria, seria também uma desmontagem-montagem…
Mário: Na minha viagem de espectador, fiquei nisso de pensar como viver junto, ou melhor, como encontrar essa coisa difícil de conviver num campo de criação, vaidade, muito “eu”, muitas narrativas e pressões por alinhamentos. Aqueles corpos, aquelas trocas de roupa, aquela dança das variações de entrada e permanência que diz sobre posicionamentos e modos de vida, aquela brincadeira conhecida de uma palavra puxar outra música e sustentar o movimento em estilos e gostos muito diferentes… tudo isso me fez pensar na participação política, nas formas de organização e convivência. Posso estar forçando a barra no otimismo (é o que me resta nestes tempos), mas penso que tem um jeito de lidar com a superficialidade que não é fraco, mas sim numa outra dinâmica do tempo e das velocidades, da atenção também: é presença corpórea, tem violência, tem opacidade, tem vazio, tem clichê, tem tentativa, tem recusa… e é dança. Mais que espontaneidade, há uma pulsação deles muito estimulante.
Clóvis: Penso que como espectadores, podemos experimentar diferentes modalidades de atuação: com distanciamento, com mais proximidade, com desconfiança entre o que seria realidade ou ficção, ou até mesmo como co-criadores dessa experiência a qual somos convidados não somente a assistir, mas também a participar. Há um artigo da Consuelo Lins sobre a trajetória do Coutinho e ela também fala dessas possibilidades de ser espectador: espectador crítico, espectador oscilante (“o que é verdade ou ficção agora”?) e espectador-montador. Eu me reconheci um pouco em cada um deles durante a apresentação do espetáculo. Como foi tua experiência?
Mário: Eu quis dançar com eles. Eu quis muito perguntar algo no momento da dança que incomodasse, que dividisse os participantes e fiquei me perguntando se a proposta era não mentir (acho que mentiria se fosse muita exposição ou pra embaralhar o jogo das diferenças) ou se aquilo de trocar de roupas e dobrar a ficção estaria também nos outros jogos. Em alguns momentos, busquei identificar o depoimento das pessoas e construir uma biografia, mas isso sempre vinha com certo incômodo. No final ficou forte de que a pulsação do grupo era o que mais importava e que tinha algo que deixava se expor pela performatização.
Clóvis: No texto “Que Morram os Artistas”, Jérôme Bel afirma:
“Façam seus jogos! Tudo vai bem! Joguem, representem, mintam, acreditem no teatro, trapaceiem, traiam como eu acabo de fazer com argumentos capciosos, raciocínios falaciosos e citações erradas. Como diria o outro, o importante é participar. Eis talvez uns dos interesses do teatro, não novo, mas, em todo caso, reativado por essa cena. A ontologia do teatro como modus vivendi, um meio de existência. Utilizar o teatro, não fazer teatro (o teatro é apenas um meio, não um fim em si). Utilizar o teatro para representar a vida (pouco importa se como ator ou espectador).”
Sabe, Mário, acho que essa ideia de utilizar o teatro e não fazer teatro seria para ele um meio para que outras coisas aconteçam, outras formas de aparição, resistências a um certo tipo de repetição que pode haver a cada noite durante uma apresentação. Será que tal ponto seria uma chave de acesso pra pensar em Montagem?
Mário: Sobre o texto do Jérôme Bel, gosto de pensar nesse uso do teatro, e acho que tem muito disso lá. Pensei no lance de encontrar o jeito de tocar em certos assuntos, de “dar uma real”, e como isso acontece em cena, até no que é de certo alinhamento de narrativas que partilhamos (aquela coisa de falar do mesmo jeito sobre o já sabido). Claro que há também o problema do que fica quando as coisas se reduzem ao passeio na superfície e a sintonia com esses tempos de rapidez e transbordamento de fluxo. Não sei, mas o que fica de interessante é o que eles conseguem nos modos de conexão.
Clóvis: Transbordamento de fluxo. Não tinha pensado nisso. Você acha que no final fica a sensação de um certo esvaziamento? Será que são flashes e instantâneos, e aí vamos aos poucos costurando e montando o trabalho do nosso jeito, ganhando e perdendo imagens, escolhendo certos momentos ou pontos de discussão mais próximos da gente? Ou elegemos apenas certos fragmentos? Algo que talvez não deixe que a gente tenha uma ideia ou sensação de totalidade. Uma parte valeria pela leitura do todo?
Mário: Boa. Eu fico pensando na maneira como a gente consome informação e se relaciona com esses fluxos. Tem fragmentação demais, algumas coisas que ficam na superfície e muitas costuras, articulações, às vezes tudo muito rápido, apressado até. Muitos modos também. Eu acho que minha costura parte da imagem inicial: aqueles 20 jovens atores sentados diante da gente e o que se monta, o “junto” deles nessa proposta e o que conseguiram no final de negociações, de escolhas, do que ficou. Sigo com eles a cada virada dessa tentativa, dessa “montagem”.
[1] Filósofo Giorgio Agamben em seu livro Um Elogio à Profanação.