por Luciana Romagnolli*
Talita Braga e Marcos Coletta; Sara Pinheiro e Jésus Lataliza. Fotos de Ethel Braga. |
Dois atores, dois escritores. De teatro? A pergunta é capciosa, afinal pressuporia uma definição restritiva do que seja escrever para teatro ou o texto teatral. E é justamente isso que Marcos Coletta e Sara Pinheiro não fazem em seus escritos. A marca comum reconhecível nas suas criações é a liberdade de uma escrita que não se limite por uma preconcepção fechada. Nem de cena nem mesmo do que seja a dramaturgia.
Curiosamente, os dois atores se afastam da materialidade do acontecimento teatral, a qual tão bem conhecem de suas posições de atuantes, para se permitirem produzir (e ler) textos pré-cênicos. Aqueles cuja relação com a cena é virtual, seja ainda mantendo algum vínculo com a transposição, caso mais próximo ao de Sara e suas rubricas, ou pela matriz essencialmente literária, como aparenta ser a de Coletta. Ambos produzem obras autônomas em relação ao teatro, cuja finalidade última não é necessariamente a cena, mas a articulação de sentidos na escrita em si, e que podem servir como pretexto a ser retrabalhado na corporeidade dos atores e na materialidade específica da encenação.
Outras semelhanças se apresentam entre “Conto Anônimo”, assim batizado por Sara Pinheiro evidenciando a tensão com a forma literária, e “Anã Marrom”, nomeado metaforicamente por Marcos Coletta. Certo sentido existencial à sombra da morte e à margem do tédio de viver; protagonistas que se desencaixam de uma rotina restritiva; emergências poéticas; e um reforço no endereçamento das falas pelo eixo extraficcional, o do convívio entre atores e espectadores, e que pode ser pensado como indicativo de um ethos teatral particular próprio a essa geração.
Mas se há de olhá-los em suas singularidades. Vamos a isso.
Enlevo poético ao banal
“Conto Anônimo” apresenta um ser partido em duas formas de subjetivação: Uma, a voz em off veiculada pela televisão sem imagens, descorporificada, de um eu lírico desterritorializado e portador de abstratas impressões sobre a experiência de assassinatos cometidos. Outra, a mulher agoniada pela rotina da casa, do casamento e da vida, cuja consciência se expressa por monólogo interno e por diálogo falho com o marido inerte. Ele é referido somente pelo viés dela, é figura à qual não se tem acesso, espectro, projeção, fantasmagoria do tédio e do vazio dela.
Sara cose o texto por metáforas e analogias, forja frases poéticas e arroubos sensíveis que a filiam à linhagem dramatúrgica de Grace Passô, embora sua estruturação da obra recuse a forma dramática, mesmo a fraturada, para se desdobrar em lírica.
Evoca-se pontualmente o mito de Sísifo, prisioneiro da rotina e ludibriador da morte, como um padrinho dos sentimentos expostos. Sugerem-se metáforas, pelas quais o banal alcança enlevo poético. A da amante da vida, que em crime passional vinga-se justamente da falta de passionalidade de sua “companheira”. A oposição entre a carne fresca e a conservada, como crítica à degradação do corpo e do amor. O preparo do frango e a potencial morte do marido construídos em analogia, até que o descontrole os deslimite. Procedimentos de listagem, também afetados pelo disparate emocional, ecoando também por analogia a leitura da bula de remédio.
Essas construções formais carregam uma vontade de sentido, análoga ao desejo de dar significado – ou grandeza – à vida, que conduz a mulher a elucubrações sobre assassinatos. O desabafo dela desgarra-se de suas ações, como ir ao banheiro, insinuando uma desconexão entre a carne e a vontade. Seu agenciamento da morte como resposta ao anestesiamento da rotina guarda proximidade com as “Delicadas Embalagens” da CiaSenhas (PR). Aqui, contudo, o foco recai sobre o desnorteamento ético e comportamental derivado da ausência de sentido do cotidiano quando se tem no horizonte um ideal de vida.
Contudo, se é a morte (do outro) capaz de restituir o “sentir sem sentido a dispneia da vida”, o campo do sentido sucumbe sob o das intensidades e do acoplamento dos desejos. Estes, esboçados textualmente nos interlúdios, habitados por sensações relacionadas à concretização do desejo do assassinato, ainda que conservem o tom anódino, preservando-se do salto no assombro e no horror do viver e do morrer.
Reside certa simplificação anedótica na decisão de matar por uma lógica frágil, calcada no (admitido) vazio burguês mais do que num confronto visceral com o abismo da vida. O que se almeja é o crime sem castigo, uma vez que não atordoa a consciência, não abala a anodinia. E não há reapropriação possível (da sensação de estar vivo) quando não se rompe a superfície tecida pelos dispositivos conformadores da nossa percepção da realidade.
“Absurdo é o universo que criou-se a si mesmo”
Eis que o abismo espreita pelos entremeios do drama familiar delineado por Marcos Coletta em “Anã Marrom”. Faz-se o espanto pela maternidade, pela vida, numa trama realista que tece relações geracionais e em torno da qual orbitam, como entidades, a tríade universo-mãe-morte: entidades gestacionais ou confrontadoras com a alteridade, quando não ambos.
A imagem inicial é referencial para se pensar visual, espacial e sensorialmente toda a peça. Já nesta primeira proposição, a dramaturgia agencia a presença pela evidenciação do corpo, sugerindo uma atitude performática de autoexibição consciente. Nesta rubrica única, condensam-se diretrizes possíveis para atuação e encenação, das quais o restante do texto se isenta e se liberta.
Coletta compõe frases de forte potencial imagético. De início, elas sugerem momentos-chave da história, como pistas. Também a primeira fala de Estela é abstrata – e poética –, aludindo a um parto. No corpo do texto, prevalecem as narrações intercaladas por fragmentos de diálogos corriqueiros, representativos de fases marcantes da vida e de padrões de comportamento recorrentes – e envolvidos em afeto.
A abordagem realista e corriqueira da relação entre mãe e filho dispensa a ilusão, num jogo entre o épico-narrativo e o diálogo-dramático, de aproximação e distanciamento em relação aos personagens. Essas formas textuais – narração, poesia, diálogo, descrição – então se apresentam numa organização desordenada temporal e formalmente, semelhante a uma estrutura de consciência e memória, um microcaos existencial.
Enquanto o nascimento, a criação, a emergência da vida exercem protagonismo na trama e em seus desvios poéticos; a morte, sofrida ou infligida, é coadjuvante presente como sombra na suposição do aborto, no filhote de cachorro morto, no crime testemunhado. O reverso incontornável e complementar dos sentidos agenciados, sem o qual a narrativa da vida não alcançaria a mesma agudeza.
A escrita do autor apresenta uma qualidade literária de leitura, de prosa poética que pode tanto ser levada narrativamente à cena quanto servir de base sugestiva para a criação de outras cenas. Seu texto carrega uma sensibilidade para motivos e desejos internos não ditos, como certa obrigação indesejada atrelada à paternidade, o medo de após a partida não se ser mais capaz do retorno desejado, a síntese sinestésica da maternidade identificada à calda do bolo, o “azul do pai enterrado nos olhos”.
“Como pode saber um homem o que é uma mulher? Os homens fecundam mulheres e seus corpos são os mesmos. As mulheres são fecundadas por homens. E concebem uma vida”, escreve Coletta num texto fecundado pelo espanto, dando voz à poesia do abismo, à beleza do absurdo, no mais prosaico e reconhecível dos ambientes, o familiar.
Pois que a distinção entre a literatura e o teatro, em seu texto que literariamente poderia bastar-se, reside na vontade do encontro, no impulso de compartilhar esse abismo, esse absurdo – e o afeto – pela fala, em copresença, diante da alteridade do espectador que, como a mãe e o universo, é o outro no qual se pode reconhecer-se e distinguir-se.
*Texto originalmente publicado no blog Janela de Dramaturgia.