Texto a partir da desmontagem cênica do espetáculo Stabat Mater da artista Janaina Leite, apresentado na MITsp.
– por Clóvis Domingos –
Dentro da vasta programação oferecida na MITsp, o eixo Olhares Críticos merece um destaque especial por estar sempre aproximando e instigando o contato entre artistas, obras, espectadores e renomados pensadores e ativistas, através do desafiante exercício de se pensar os caminhos da cena contemporânea. A realização de debates, as conversas públicas, a produção de críticas diárias, o lançamento de livros, entre outras ações, são gestos que expandem o fazer teatral e suas possíveis reverberações para além dos espetáculos apresentados. Nesses Olhares Críticos, cujas implicações artísticas, políticas e sociais são postas em relevo e interlocução, são propostos cruzamentos teóricos e diálogos transversais que acarretam deslocamentos, geram aprendizagens, ampliam discursividades, permitem a irrupção de conflitos e reafirmam o teatro como lócus privilegiado para a produção de pensamento.
Na atual edição, que contou mais uma vez com a curadoria de Daniele Avila Small e Luciana Eastwood Romagnolli, a pesquisadora em foco foi a atriz, diretora e dramaturga Janaina Leite, que através de seu trabalho Stabat Mater (em latim, “estava a mãe”) aborda questões sobre a sexualidade feminina, o poder patriarcal, a idealização do amor materno no seio da sociedade, as relações entre sagrado e profano, os tabus sexuais, além de outras temáticas que articulam criação poética e utilização de materiais autobiográficos. Na sinopse do espetáculo pode-se ler o seguinte trecho: “Janaina divide a cena com a sua mãe real e um ator pornô, discutindo o protótipo de um feminino que se constrói entre a abnegação e o masoquismo”. Tanto o espetáculo como a pesquisa realizada pela artista foram temas de mesas redondas, além da apresentação de uma desmontagem cênica.
Como ação pedagógica e compartilhamento de procedimentos e princípios de criação, a desmontagem, como prática teatral, vem sendo largamente utilizada por inúmeros grupos latino-americanos que se interessam por pesquisa de linguagem, pedagogias de atuação e estratégias de mediação com o público. Segundo a pesquisadora Ileana Diéguez, desde a década de 1990, na América Latina, assistimos a demonstrações de processos práticos por grupos e artistas em sessões de trabalho que ocorrem após o espetáculo e que visam partilhar elementos de composição que foram utilizados durante a feitura das obras, assim como as relações construídas, os materiais descartados, os trajetos percorridos e as escolhas e decisões presentes na estrutura final.
Numa sessão de desmontagem há infinitas possibilidades de se apresentar um percurso criativo: pode-se optar por uma forma mais espetacular, por uma fala e leitura de diários de criação, por um ensaio aberto etc.
No caso de Stabat Mater, há um ponto significativo a ser destacado: trata-se de uma peça-palestra que em sua construção dramatúrgica já opera por narrativas e atravessamentos muito próximos a uma desmontagem cênica, tensionando dessa forma processo e produto, teoria e prática, arte e vida. Nesse documentário cênico, as memórias e afetos são mobilizados e expostos, os limites assumidos, as descobertas e reflexões são feitas entre uma cena e outra, e fatos da vida pessoal da artista são reencenados estética e simbolicamente. Há um desnudamento em cena através da manipulação de histórias pessoais, um transitar entre o real e o ficcional, entre o individual e o coletivo, entre dores e alegrias, que se configura como autoescrituras e reescrituras de si numa poética das fronteiras, num zigue-zague entre o íntimo e o público.
O que (não) estava lá
Na desmontagem proposta por Janaina Leite, somos convidados a ocupar o palco do teatro e nessa proximidade com os dispositivos ofertados presume-se que o objetivo é que de fato adentremos pelos labirintos da concepção do trabalho, não somente como espectadores, mas testemunhas e participantes. A ambientação sugere um set de filmagem no qual ao centro se tem uma cama e ao fundo são projetados vídeos com imagens de conversas e ensaios. Aqui se fundem duas dimensões já presentes no espetáculo: a linguagem audiovisual e a presença cênica. Uma terceira camada será o tom confessional, uma vez que esse também atravessa a dramaturgia espetacular.
No primeiro vídeo, vemos a artista explicando à sua mãe sobre o projeto a ser desenvolvido, narrando sonhos com mulheres da família, compartilhando inquietações e de alguma forma a convidando a participar da empreitada. Logo depois, uma luz se acende sobre a cama que será ocupada por dona Amália Leite (a mãe) e duas outras criadoras do trabalho que farão ali uma entrevista com ela. Nessa conversa, discute-se um pouco da relação entre mãe e filha, como o espetáculo interferiu em suas vidas, fatos que aconteceram na história de Janaina. Passado e presente se interpenetram numa cena inédita para quem apenas assistiu ao espetáculo original. Stabat Mater: “A mãe estava lá e ainda está”.
Na desmontagem, Amália Leite lê um conto sobre um falcão (um dos materiais de inspiração para a peça) e Janaina entra depois no espaço com um facão na mão e se senta junto à mãe para falar dessa estranha relação entre o conto e o objeto (assume o ato falho de se trocar “falcão” por “facão”) – o facão remete à memória de um estupro sofrido pela atriz em sua adolescência. Em seguida, Janaina relembra um antigo exercício de teatro ainda na fase juvenil, quando na apresentação de uma cena, ao narrar fatos de sua vida, vai furando com um facão o colchão. O objeto também está no espetáculo anterior, Conversas com Meu Pai, e agora há a sua volta no atual trabalho para se falar de terror, pornografia e profanação. O facão como objeto que retorna como obsessões que perseguem, imagens que se atualizam e embaralham narrativas. Impossível não associar esse trecho da desmontagem (com a reutilização do facão) a todo o percurso da artista em seus trabalhos: o rasgar-se, o expor-se, o revirar-se, o refazer-se, o reinventar-se.
Já a cama, como espaço simbólico, serve de platô para as temáticas do espetáculo e para a realização da desmontagem: na cama quando dormimos é que os sonhos nos visitam e revelam os materiais inconscientemente recalcados, nela as princesas deitadas aguardam o beijo salvador dos príncipes tão esperados, é também o lugar no qual o sexo é praticado, para alguns é o consagrado leito matrimonial, mas também poderia ser uma espécie de urna fúnebre.
Na cama o sexo pornográfico muitas vezes é filmado. E, na desmontagem assistida, a cama é ponto de encontro para conversas, alianças femininas (grande parte da equipe estava ali participando), memórias e depoimentos. A cama é habitada aqui pela palavra que profana o silêncio. Nela: o antes, o feminino, a sombra e a criação abrem espaços, penetram, iluminam, se escondem, jorram imagens, gozam mistérios e lacunas. Stabat Mater e seus “mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos”. Na cama desse espetáculo, Stabat Mater (estava a mãe) que morre e ressuscita.
Sobre essa mesma cama escutamos o relato das artistas ao narrarem a filmagem da cena de sexo (que é apresentada no espetáculo), quando um ator profissional foi dirigido por mulheres e experimentou a solidão e o constrangimento de se perceber sozinho. As contradições se fizeram ecoar: que sujeito será esse que ao mesmo tempo em que violenta um corpo feminino numa fita pornô fala tão ternamente de sua mãe, suas filhas e companheiras? O que estaria em jogo aí é: que outro será esse? E mais: o que acontece quando a câmera está no comando de uma mulher? Quem dirige a cena agora? Que contra-imagens se produzem? Ainda estaremos no árido terreno entre sujeito e objeto? São perguntas que não aceitam respostas simplórias e parecem habitar mais o território das complexidades.
Fato é: no processo de criação do trabalho temos a mulher (a mãe) que permaneceu e o homem (o ator da filmagem) que abandonou o projeto. Mas “ela estava” sempre lá, mesmo que agora ele não esteja. Por que alguém fica e por que alguém vai embora? Qual o preço a ser pago por nossos desejos, escolhas e deserções? É possível responder a isso?
Na desmontagem cênica, Janaina não demonstrou uma técnica específica, mas abriu mais lacunas e puxou outros fios, assumindo incompletudes, expondo incoerências e perplexidades, coletivizando vozes, atualizando seus fantasmas. Seja no espetáculo como na desmontagem: Stabat Absentia (em latim, “estava a ausência”) continuará a estar. O “por trás” de um espetáculo nunca se atinge, nunca se esgota, é sempre desejo e pulsão. O trauma não pode ser superado inteiramente. São seus restos que permitem a emergência de novas poéticas quando um pouco de Real se transforma em simbólico.
Ainda que cartas, documentos, áudios, imagens e relatos tenham sido apresentados, há algo que fica à margem e repousa nas sombras. Da falta pode surgir a criação. Na desmontagem proposta pela artista, desmontam-se os ideais de completude, de tudo poder dizer e compreender, há algo que resiste à linguagem. Horror e fascínio se alternam. O feminino em seus mistérios.
Na desmontagem, presentificaram-se as frestas e furos pelos quais a obra ainda respira e assim se revitaliza. Não é possível juntar e coser todos os rasgos. A artista, na referida desmontagem, de alguma forma, gerou algo novo e que ao mesmo tempo retornou ao espetáculo produzido, à sua trajetória profissional, à sua história de vida. “E a carne se fez Verbo”. Janaina Leite vem cada vez mais gerando a si mesma. Ela se torna então sua mãe, seu pai, sua filha, seu amante e sua obra.