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– Por Diogo Horta –
Crítica a partir do espetáculo “Mutações” com Luís Melo e direção de André Guerreiro Lopes assistido nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Sesc Palladium, em Belo Horizonte.
Faça 3 respirações profundas para começar. Corta. Black-out.
O que emerge da escuridão? Corta. Black-out.
O olhar se ajusta à falta de luz. Corta. Black-out.
Eu escrevo. Corta.
Já faz 40 dias que assisti ao espetáculo “Mutações”. O tempo passou veloz como uma tartaruga, perfurando camadas da minha pele, renovando células e, ao mesmo tempo, envelhecendo-as. Tentarei trazer chão, mas no primeiro momento ainda ficaremos suspensos no indizível. Aquela sensação de frescor do vento no rosto ainda mora em mim, embora se confunda com os olhos marejados de um não sei o quê. Mas sei que flutuei um pouco. Saí do teatro, na primeira vez[1], flutuando, me entreguei à poesia e peguei carona no vento.
Fotos de Ale Catan
O espetáculo “Mutações”, dirigido por André Guerreiro Lopes, com Luís Melo, Andréia Nhur e Alex Bartelli, é livremente inspirado no I Ching, o histórico Livro das Mutações chinês. O espetáculo nos presenteia, a partir disso, com uma constante transformação, um constante vir a ser, impermanente. Todos os elementos da encenação se somam em camadas de poesia para traduzir as mutações da existência e, dentre todos, o vento foi o elemento mais marcante e simbólico. A energia do vento, a força do vento, a impossibilidade de se agarrar ao vento. A vida da gente é isso: impossibilidade de se agarrar.
Eu desconheço o I Ching. Já tinha ouvido falar, é verdade. Sabia que era uma espécie de oráculo. Mas nunca tive curiosidade de conhecer. O que eu não sabia é que o I Ching teria a força para inspirar um grupo de artistas dedicados a criar uma obra de arte profundamente conectada com a existência humana e a poesia. Um espetáculo que pode ser de difícil apreensão para muitos, mas que para mim foi como um sopro de vida.
O I Ching é composto por reflexões profundas sobre a existência, tendo sido inspiração para grandes pensadores da humanidade. A dramaturgia de Gabriella Mellão percorre as páginas do I Ching, me parece, pinçando frases, movimentos, inspirações, mas, sobretudo, seus múltiplos sentidos. Organiza, a partir disso, blocos, conexões e textos curtos que se encerram em si mesmos, mas se conectam no todo. Por conta disso, do ponto de vista do espectador, é preciso se deixar levar com paciência, é preciso se perder e ir organizando aos poucos as informações.
“Se você não está vendo, é porque é milagre mesmo.”[2]
A iluminação de Aline Santini, ganhadora do Prêmio Shell por “Mutações”, não nos deixa ver muitas coisas. Deixa milagres acontecerem na escuridão do teatro com uma iluminação de uma precisão ímpar, compondo quadros inspiradores. A trilha sonora de Puppi envolve o espectador do início ao fim, com um som que percorre o teatro e instaura um ambiente de curiosidade e silenciamentos internos. Assim é “Mutações”: a iluminação escurece, a música silencia e o espectador explora.
O espectador explora no seu silêncio. É bem possível que o espectador que apenas queira receber respostas saia do teatro frustrado. O espetáculo pede um espectador que aja em seus pensamentos e articule signos; um espectador que se deixe levar pelo movimento das cenas; um espectador, em última instância, que flutue sobre o espetáculo, percorrendo em silêncio os detalhes, os sons, as sombras e os possíveis sentidos.
“Acaso, oco eco do mistério.”[3]
O acaso quis que eu voltasse no dia seguinte: voltei. Na segunda vez, já não flutuei como antes, mas recolhi imagens e frases que ficaram na minha cabeça nos últimos 40 dias. As imagens, sobretudo, permanecem. A direção de André Guerreiro Lopes parece organizar tudo a partir delas. Com a coragem de deixar o silêncio e a poesia se consolidarem, Lopes cuida de criar uma experiência sensorial quase completa (falta apenas o olfato). Com isso, convida o público a se implicar com o corpo todo e a experimentar esse conjunto de sentidos. Curiosamente, a proposta não se abre para muitos acasos, pelo contrário, é de precisão invejável. O acaso fica por conta das reverberações que cenas como aquelas vão gerar na plateia.
Gira, por exemplo, de cabeça para baixo, um casco de tartaruga suspenso no ar. Os atores pairam sobre a fumaça rastejante que invade a plateia. O vento atravessa os tecidos e bate no rosto dos espectadores com suavidade e presença. O que tudo isso provoca? Ecos do mistério, talvez. Ou pequenas parcelas de lágrimas. Se a frase, clichê, que diz que a vida é um grande mistério, for verdade, talvez “Mutações” seja um convite certeiro para que se perceba isso.
“O tempo é um ótimo professor, pena que mata seus alunos.”[4]
As atuações de Luís Melo, Andréia Nhur e Alex Bartelli conseguem encarar a robustez das palavras com reverência e simplicidade ao mesmo tempo. A densidade do texto, por vezes, poderia ser um obstáculo substancial para a compreensão do público. Os atores, com destaque para Luís Melo (um dos grandes atores do teatro brasileiro), conseguem encantar o texto com ritmos, pausas e nuances, trazendo a palavra para somar à encenação e preenchê-la de verdade. A minha sensação é que os atores estão completamente imersos na atmosfera do espetáculo e acreditam verdadeiramente no mistério do qual fazem parte, o que cria propriedade para suas atuações.
O encontro do Jovem e do Ancião nos faz sonhar. Quiséramos nós podermos colocar em diálogo os nossos eus jovens e idosos para partilhar sobre as nossas vidas. Dois tempos que jamais vão se cruzar no real, mas que se consolidam em cena. E o que se vê é carinho. O Eu do presente cuidando do Eu do futuro e o Eu do futuro cuidando do Eu do passado. Nada, além disso: só mutações.
Todo o percurso do espetáculo me conectou muito com a ideia de Anicca. Anicca é um termo fundamental para a tradição da meditação Vipassana que significa “impermanente, efêmero, em transformação. Uma das três características dos fenômenos” (GOENKA, 2019, p. 205). “Mutações” é a própria Anicca em forma de espetáculo: um fluxo contínuo de sensações.
“O vento é o centro do fim dos tempos.”[5]
Como dito anteriormente, o vento é um elemento muito precioso no espetáculo. As imagens dos tecidos com leves movimentos gerados pelo vento até um completo desnudar dos ventiladores são muito potentes, pois conseguem carregar por si o cerne do espetáculo. O vento é a tradução da ideia de mutação: invisibilidade e poder. O cenário e o figurino, assinados por Simone Mina, conectam tempos. Se por um lado temos um aspecto que remete a uma vestimenta mais antiga, com túnicas e muitos tecidos nos corpos dos atores, por outro temos as varas de iluminação do teatro e os ventiladores honrando o momento presente.
Dessa forma, “Mutações” se constrói a partir do diálogo entre muitas unidades impermanentes. Ressalto, por fim, duas cenas que acredito serem fundamentais para contribuir com a experiência do espectador no espetáculo: “o esforço para fugir do acaso” e o “ainda não aprendi a…”. A primeira cena chegou até mim como o esforço que fazemos ao longo da vida para imprimir desejos e objetivos, gerando um alto gasto de energia para fugir da própria impermanência da vida. Já a segunda cena nos ajuda a reconhecer nossa pequenez por não saber tudo e valorizar os percursos já feitos e os que estão por vir. É reconhecer que, no fluxo da vida, insistimos em tomar as rédeas e domar o acaso como se fosse possível controlar todos os processos que nos fazem estar desse jeito aqui e agora.
“Em meio ao dilúvio que a tudo destrói
você mesmo é sua ilha.
Em meio à noite mais escura
você mesmo é sua lâmpada.”
Doha em hindi, S. N. Goenka (GOENKA, 2019, p. 147)
Na solidão de cada um, o silêncio que “Mutações” provoca é um presente. Em um momento da sociedade contemporânea com tantas distrações que impedem-nos de olhar para dentro, o espetáculo é um convite para se pensar o que é ser humano. O espetáculo consegue trazer, a partir disso, dualidades: pausa e movimento, som e silêncio, escuridão e luz, ação e inação. É a efemeridade e a presença do teatro em conexão direta com a impermanência e finitude da vida em mutação.
FICHA TÉCNICA
Concepção e Direção Artística André Guerreiro Lopes
Dramaturgia Gabriela Mellão
Elenco Luís Melo, Andréia Nhur, Alex Bartelli
Direção Musical e Trilha Original Federico Puppi
Cenografia e Figurinos Simone Mina
Iluminação Aline Santini
Assistência de Direção e Cartaz Original Samuel Kavalerski
Consultoria “I Ching” Wagner Canalonga
Idealização Produção Azayah
Produção Executiva Joana Pegorari e Rafael Bicudo
Operação de Luz Felipe Miranda
Operação de Som André Teles
Técnicos de Palco Daniel Sousa e Quinho Gonça
Desenho de Som André Omote
Assistência de Direção Musical Ráae
Cenotecnia Wanderley Wagner, Fernando Zimolo, Alício Silva
Assistência de Cenotecnia Dandhara Shoyama, Igor B. Gomes, Mariana Maschietto, Ebrom Barbosa
Assistência de Cenografia Vinicius Cardoso, Rick Nagash
Confecção de Figurinos e Objetos Amanda Pilla Hellige Sant’ana
Assistentes de Figurinos Nika Santos, Rick Nagash
Fotos de Divulgação Ale Catan
Tratamento de Imagens Carlos Mesquita
Visagismo Roger Ferrari
Videomaker Denny Naka
REFERÊNCIAS:
GOENKA, S. N. e outros. A arte de morrer. 1ª ed. São Paulo: Rede Bhavana, 2019.
[1] O uso das expressões “na primeira vez” e “na segunda vez” significam que assisti ao espetáculo duas vezes, em dois dias seguidos. Na primeira vez, no sábado dia 30 de março de 2024. Na segunda vez, no domingo dia 31 de março de 2024. Ambas apresentações em Belo Horizonte no Sesc Palladium.
[2] Frase presente no texto do espetáculo.
[3] Frase presente no texto do espetáculo.
[4] Frase presente no texto do espetáculo.
[5] Frase utilizada no teaser de divulgação do espetáculo.