“É preciso, em parte, reafirmar a rua, o fora, a concretude lúdica, e trazê-la de
volta para dentro como forma de sensibilidade” (Leonardo Guelman)
– por Clóvis Domingos –
Crítica a partir do espetáculo ”EXIT”, do Grupo Cultura do Guetto (CDG), de Belo
Horizonte.
Nas últimas décadas, tornou-se visível o aumento de produções artísticas nas quais o circuito da dança urbana e contemporânea se faz presente a partir dos embates e fronteiras entre uma dança que se germina nas ruas e aquela que se apresenta nos palcos. Nesses trânsitos criativos, os desafios seriam muitos: como transpor para o palco a vibrante energia dos corpos que é gerada nos espaços urbanos? O que se perderia e o que se ganharia nessa migração de lugares? Quais alterações aconteceriam no campo da recepção por parte dos espectadores? Como as composições coreográficas equilibram o virtuosismo presente nas danças urbanas com as complexas construções dramatúrgicas da dança contemporânea em suas pesquisas temáticas? A performatividade da dança contemporânea no encontro com os movimentos técnicos da dança urbana traduziria uma importante reflexão sobre os caminhos da dança hoje? A dimensão política e social da dança urbana em questionar os direitos do corpo cidadão no uso e apropriação do espaço público, ao ocupar os palcos, ainda manteria vivas tais pulsões e lutas?
Fato é que, como uma das expressões da cultura hip hop, juntamente à arte do grafite e do rap, a dança de rua ou street dance não é praticada apenas nos ambientes abertos da cidade, mas também se expandiu para academias, quadras, escolas e edifícios teatrais. Se nas ruas e viadutos, os corpos dançantes nas rodas de break e nos eventos de competição subvertem e contrapõem a ordem instituída e os códigos sociais que tendem a proibir a realização dessas manifestações artísticas, no caso da utilização nos palcos, tal inserção criativa pode funcionar como dispositivo de inclusão e resistência para se abrir um diálogo frutífero sobre as possíveis contaminações entre uma certa dança contemporânea mais elitizada com os movimentos pulsantes das danças produzidas pelas camadas populares. A meu ver, mais do que uma ameaça de dominação ou captura, o que se impulsionaria é a ampliação de uma arte capaz de inventar táticas nômades do corpo popular urbano, fugidio às normas estéticas, corporais e morais e que pode se expressar tanto nas ruas quanto nos palcos.
Trago em minha memória de espectador trabalhos como ”Quilombos Urbanos” (1999), produzido pela Cia. Será Que, numa parceria do coreógrafo e bailarino Rui Moreira com o grupo de Hip Hop Up Dance em Belo Horizonte. Ano passado, assisti aos espetáculos ”Pai Contra Mãe”, da Cia Fusion de Danças Urbanas na programação do VAC (Verão Arte Contemporânea) e ”Faça Algum Barulho”, com o B.boy Rodrigo Peres e Rui Moreira no FID/BH (Fórum Internacional de Dança). Em ambos os projetos, pude perceber tanto as peculiaridades existentes nos vocabulários da dança urbana quanto as possíveis interferências e informações provenientes das pesquisas em dança contemporânea.
A porosidade e multiplicidade que se explicitam nesse encontro dificultam qualquer desejo de se estabelecer hierarquias e se erigir apontamentos muito rígidos, restando o exercício de conviver e apreciar uma dança mista que escapa a formas previsíveis de regulação ou identidade fixa, num gesto de insubordinação por parte de seus criadores e praticantes. E mais: ainda que apresentados em espaços concentrados como os teatros, esses trabalhos não abrem mão da denúncia dos mecanismos de controle, exclusão social, racismo e violação sobre os corpos anônimos, comuns e periféricos em sua luta cotidiana pelo direito à cidade, à vida e acesso aos bens públicos. Dessa forma, vinculam-se: corpo urbano, arte política e vontade de dança.
”EXIT” é o espetáculo de estreia do Cultura do Guetto (CDG) de Belo Horizonte, formado em 2006, e que nasceu com a proposta de ser um grupo de competições. Em sua trajetória de 12 anos de atividades, vem colecionando uma série de títulos conquistados em mostras e festivais de dança de rua no Brasil. O CDG possui um projeto artístico que se divide em três vertentes: participação em competições, formação de novos dançarinos e dançarinas e desenvolvimento de trabalhos autorais.
Em ”EXIT”, trabalho apresentado no palco, a proposta é uma reflexão sobre os discursos e condicionamentos que automatizam nossas ações e empobrecem nossas existências. Num agudo atentar a questões tão urgentes, a escolha de tal temática para um espetáculo de dança urbana e contemporânea pode interferir sensivelmente em nossa capacidade de pensar o mundo e a nós mesmos num contexto de fortes incisões e ataques por parte dos poderes estratégicos dominantes. Haveriam saídas possíveis para as armadilhas impostas por um cotidiano opressor e que incisivamente produz desafios e transformações sobre nossas formas de agir, pensar, conviver e criar? Como tais estratégias neutralizam nossas potências enquanto corpos-mundos?
A cenografia opta pela utilização de inúmeras portas (serão “saídas de emergência”?), que dispostas lado a lado sugerem lugares de passagem e frestas que se abrem para que o corpo possa experimentar algum tipo de reação e movimento. Na coreografia inicial, o que temos é a repetição contínua e extenuante de gestos, quedas e movimentações em grupo que nos mostra a luta e tentativa dos corpos de escapar daquilo que os mantêm enclausurados. Importante destacar que a cada instante um corpo desaparece e outro surge, numa sequência vertiginosa que alude à nossa aderência imediata a uma engrenagem coletiva que objetifica nossos corpos e desejos. Um incômodo e mal-estar se produzem a partir da sensação de um certo cansaço provocado pelo excesso tanto sonoro (pela cadência de batidas fortes da música de Danilo Bourog) quanto maquínico dos corpos. Então uma nova camada se superpõe à primeira leitura: esses mesmos lugares de passagem também parecem espacializar pequenas celas que impedem qualquer tipo de fuga, pois a elas os corpos sempre retornam (como fios que os puxam para trás) e reatualizam ações automatizadas.
Como em ”EXIT’ a dança tem dimensão mais performativa do que representativa, uma nova imagem me visitou nessa mesma parte do espetáculo: tinha a impressão de ver corpos escravizados se exercitando em barras de ferro como numa academia de ginástica (seria a busca pelo corpo padronizado e perfeito que nos promete a “gorda saúde dominante”?), ao mesmo tempo que ensaiavam o ato indisciplinado de pular as catracas (dos parques? Das festas e eventos pagos? De ônibus?), que barram qualquer forma de movimento e circulação. Confesso nesse ponto uma possível articulação de minha parte com as questões do corpo e suas astúcias na vivência com a cidade e os efeitos causados pela exploração dos serviços de transporte que dificultam o acesso irrestrito aos espaços de fato públicos. É possível circular livremente pela cidade? Quais espaços são exclusivos e privativos para uma determinada classe social? Quais lugares estão fora dos mapas oficiais? Quais poderes determinam nossos trajetos. Quem controla nossos passos pelas vias urbanas? Como resistir a uma certa anestesia dos sentidos?
Uma outra parte significativa na composição dramatúrgica do espetáculo é o momento no qual um bailarino evolui pelo espaço dançando dentro de uma grande bolha de plástico. Estará seu corpo asfixiado e em batalha? Ou encontra-se confortável e bem adaptado? Ainda que a ambiguidade prevaleça, é impossível não contextualizar esse dispositivo cênico com as inúmeras bolhas nas quais estamos inseridos: nossos grupos de afinidades comuns, nossas relações nas redes sociais virtuais, nossas castas e “cascas” protetoras contra qualquer forma de diferença, nossas igrejas, nossos arcabouços teóricos, enfim, nossos guetos. E nesse isolamento e solidão nos quais vivemos, somos destituídos da capacidade de agir coletivamente, nos tornando intolerantes e individualistas. Mas quando o bailarino rompe a bolha e a luz imediatamente se apaga, algo se marca como que nos acordar de um certo adormecimento. Aqui uma virada importante acontece: o público que aplaude efusivamente a movimentação do bailarino é retirado de um certo transe causado pelo efeito estético gerado por uma imagem sedutora e agora se confronta com uma ação que convoca à transformação. O perigo do encantamento dá lugar ao exercício do pensamento. Os signos e textualidades que compõem o espetáculo como espaço, luz, música e coreografia se beneficiam das possibilidades da caixa cênica como recorte e moldura para prender nossa atenção, o que talvez não aconteceria na dispersão presente na vida urbana caótica.
Nadar contra a corrente. Há no desenvolvimento do espetáculo uma série de pequenos grupos que se alternam, e as diferentes cores dos figurinos dos dançarinos e dançarinas (entre vermelho, azul e amarelo) a mim remeteram a uma multidão de singularidades. Nesse ponto, ”EXIT” aborda questões de como vivermos juntos, como conciliar vida singular e coletiva, como viver num país marcado pelas polarizações partidárias e políticas (os “vermelhos” e os “verde-amarelos”), como criar aparições e desaparições feito zonas autônomas temporárias. Logo depois, quando todos e todas trajam uniformes brancos numa coreografia conjunta, a impressão é de assistir a um cardume de peixes a lutar pela sobrevivência como no fenômeno da piracema. A tensão aumenta no volume coletivo dos corpos, uns se salvam e outros morrem. Num desenho coreográfico cujo traçado assume como característica principal a coralidade, uns conseguem nadar contra a correnteza, já outros são vencidos.
Na imagem final, após a queda dos inúmeros corpos num “fosso-lago”, um dançarino resiste e de alguma forma recusa tudo aquilo que nos impede de experimentar a existência de forma alargada. Não seguir a moda, a onda, a massa e a propaganda. Não obedecer aos apelos midiáticos, aos modelos de vida pré-estabelecidos, às listas de sucesso etc. Não se intimidar diante das câmeras de vigilância e das catracas materiais e invisíveis. Nessa dança que ao mesmo tempo confronta a ordenação e a dominação afirma-se uma coreografia da Recusa, no sentido:
[…] de recusar todos esses modos de manipulação e de
telecomando, recusá-los para construir modos de sensibilidade,
modos de relação com o outro, modos de produção, modos de
criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma
singularização existencial que coincida com o desejo, com um
gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual
nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar
os tipos de sociedade, os tipos de valores que são os nossos
(GUATTARI E ROLNIK, 2007, p.22).
Em tempos tão alarmantes do ponto de vista social, político, cultural e de comportamento, o espetáculo recusa nos oferecer respostas prontas ou receitas mágicas para nos livrar das angústias e de um pessimismo que cresce a cada dia. Mas como poéticas da resistência, o trabalho (em sua rica profusão de imagens sugestivas e provocadoras) nos instiga a buscar saídas inventivas que recoloquem a vida humanizada e coletivizada noutro patamar mais sustentável e possível. Isso exige trabalho de tempo, desejo de encontro e abertura à escuta. Seriam necessárias a aposta, a aventura, a coragem, a empatia, a ação direta e uma consciência crítica permanente? Buscar mais as perguntas do que as respostas? Em ”EXIT”, por meio da performance dos corpos nômades e dançantes, o poder sobre a vida transmuta-se em potência de vida.
Referências:
GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografias do desejo. Rio de
Janeiro: Vozes, 2007.
Espetáculo assistido em 02 de fevereiro de 2018 no Teatro Bradesco dentro da
programação do VAC.
Ficha técnica:
Diretor Artístico e Coreógrafo: Gladstone Navarro
Elenco: André Grigório, Carlos Balarini, Cleber Junior, Everton Leonardo, Gina Luiza,
Gladstone Navarro, Jéssica Dutra, Ludmila Von Randow, Marcelo Mendes, Marina
Goulart, Vitor Sávio, Wanderson Silva, Wellerson Luiz e Wendel Castro.
Trilha Sonora: Danilo Bourog
Letra Original: Well MC
Luz: Luiz Coelho
Coordenador Técnico: Colibri
Figurino: Grupo Cultura do Guetto, Amanda Cavalcanti e Ravagnani Souza
Contra-regras: Emerson Mendes, Ravagnani Souza e Marina Machado
Coordenadoria de Palco: Stephanie Pinheiro
Diretora Técnica: Marina Machado
Artes Visuais: Skap e Ladobeco (Rupestre Crew)
Identidade visual: Eduardo Santos e Cecilia Berger
Assessoria de Imprensa: Pedro Valentim
Gestão de Produção: Neon Cultura e Entretenimento/ Victor Magalhães