— por Gustavo Falabella Rocha —
Era comum entre as gerações mais antigas de artistas de teatro de Belo Horizonte uma formação autodidata, menos formal – que não passava pelas escolas técnicas ou pelo ainda jovem curso de graduação de teatro da UFMG. É o caso dos meus pais: Carlão e Cida, que se formaram na prática, na rotina de seus grupos e no encontro com artistas parceiros. Hoje, no entanto, as opções para quem deseja ser profissional são maiores. E costuma ser o caminho da maioria dos artistas que se vê atuando na cidade. Assim, é difícil definir, de maneira sistemática, como se dá essa formação que não passa pela organização pedagógica das escolas que oferecem cursos para atores. Podemos falar de experiências.
De tal maneira, escrevo aqui sobre uma experiência absolutamente pessoal que vivencio há 13 anos, no seio de um grupo de teatro, que extrapolou suas atribuições artísticas para flertar com outros campos do conhecimento: as ciências sociais, a antropologia, o ativismo político etc. Falo aqui da (minha) formação de artista/ator dentro da ZAP 18 – Zona de Arte da Periferia.
Para começo de conversa, o meu despertar para o teatro está diretamente ligado a minha mãe: Cida Falabella. E a primeira coisa que me pareceu importante – em um ambiente artístico, de trabalho e que envolvia outras pessoas – era NÃO CHAMÁ-LA DE MÃE! Jamais. Algumas pessoas estranham, acham graça, mas em troca, ela também sempre me chamou de “Gustavo”. Ainda que, algumas vezes, inadvertidamente surjam “filho” e “mãe”, no meio da conversa.
Na missiva que confia na memória como sua matéria-prima, fiz uma divisão por tópicos, para não me perder demais – e, consequentemente, provocar o mesmo em quem lê esse relato. Vocês irão notar que eles não são independentes e/ou puros. Pelo contrário, cada tópico se confunde e se relaciona diretamente com os demais.
Mas tem algo que vem antes.
Há uma passagem interessante no livro “O Ator Invisível”, de Yoshi Oida, que sempre ecoa dentro das paredes do galpão da ZAP 18. Segundo ele, entre preparar um espaço para um ensaio e/ou apresentação – incluindo varrer, limpar, retirar os objetos que não pertencem à cena – e desenvolver seu trabalho artístico (estar em cena), não há nenhuma diferença.
Ao meu ver, a ideia não é rebaixar o trabalho artístico às práticas cotidianas, mas sim entender que essas tarefas básicas, como a limpeza do espaço de uso coletivo para a criação, fazem parte de um todo, de uma ética que permeia um trabalho criativo e que precedem quaisquer grandes ideias que se possa ter para a cena. Portanto, sem romantismos – afinal já são 13 anos de varrições e de passadas de pano chão! –, posso dizer que o trabalho de formação de um ator da ZAP começa pela retirada do lixo, passar pano úmido no chão, fazer o café e outros pequenos cuidados que uma casa requer.
Olhar crítico
PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis:
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo:
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam
gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou?
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou,
quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
Quando a ZAP 18 abriu suas portas, houve uma primeira experiência de oficinas com alunos moradores dos bairros da região, onde a realidade da rotina árida, violenta e periférica nos era mostrada, geralmente de maneira dramática – remontando o drama televisivo, que era basicamente a referência mais forte que a maioria das pessoas têm de atuação. Porém, o registro dramático para cenas dessa natureza, geralmente, se apresenta repleto de estereótipos que não nos interessavam, de maneira alguma. Havia a necessidade de uma ferramenta de engajamento político-social que não estivesse apenas no discurso e invadisse a cena.
Foi então que estudos da obra de Bertolt Brecht se revelaram como uma espécie de glossário para (tentar) levar a realidade para a cena de uma maneira teatral, estilizada e crítica. Posso dizer, sem medo de errar, que o flerte da ZAP com o senhor b.b. (como Brecht costuma assinar alguns de seus textos) passou fortemente pelo desejo de nossa diretora Cida Falabella. E, a partir daí, num caminho sem volta, começamos a treinar esse olhar e posicionamento críticos. Desde então, perguntar, desconfiar, analisar, historicizar e contextualizar são verbos conjugados, com frequência, na ZAP.
É importante lembrar que Brecht não deixou um método delimitado de atuação, mas sim sua oposição crítica aos elementos do drama, usados na criação de uma ilusão cênica, distante da realidade de quem os assistia. De tal maneira, nossa leitura de sua obra e de seus ensinamentos foi se moldando à nossa realidade e aos nossos desejos com o teatro que fazemos.
Épico-brechtiano
Eu comecei a fazer teatro, justamente quando a ZAP 18 abriu as portas de sua sede no bairro Serrano. Na época, eu tinha 20 anos de idade, cursava jornalismo na PUC Minas e lá eu também fazia parte de um grupo de teatro amador, “Filhos da Puc”, dirigido por Elisa Santana – outra integrante da ZAP.
Nos primeiros anos de trabalho, a rotina de artista ainda era bastante ligada a uma ideia de “estar em cena”. Melhor: “como estar em cena”. Modulações de voz, aquecimentos para ativar o corpo antes da ação, jogos de ocupação do espaço. É importante que se diga que esses princípios jamais foram deixados de lado, mas o que pretendo realçar aqui é o surgimento de outras práticas que surgem nos trabalhos artísticos/formativos da ZAP e que, no meu entendimento, são anteriores à técnica, ao domínio da cena e consequentemente a fazer um “bom” teatro.
A obra de Brecht acerca do teatro, da vida, da sociedade capitalista nortearam, de maneira bastante intuitiva, nossas primeiras abordagens da realidade que insistia em entrar na ZAP, sem bater em nossa porta. Cida já havia realizado exercícios inspirados pela realidade que usavam elementos do teatro de Brecht, mas Brecht entra decisivamente na trajetória da ZAP quando decidimos fazer nossa versão de “Mãe Coragem e Seus Filhos”, com texto de Antonio Hildebrando, em 2006.
Com a leitura do livro “Cabeça de Porco” – escrito em parceria por MV Bill, Celso Atayde e Luiz Eduardo Soares –, a história de Ana Felinto, comerciante durante a Guerra de 30 anos no original de Brecht, é transportada para uma favela de uma grande cidade brasileira, no ano de 2020. Nossa montagem flerta com a complexa trama da violência histórica brasileira entre “morro e asfalto”. Mais do que respostas, o espetáculo lançava uma série de perguntas sobre a relação de cada um com a violência e seus desdobramentos.
A experiência de trabalhar todos esses anos com a artista Cida – que também me criou ao longo desses 33 anos de vida – me fez entender que um sujeito pensante, político e ético, na sua lida artística, não tira férias. Ele está sempre alerta, expectante, porém calmo para analisar os mecanismos que se apresentam ao seu redor.
Em suma, o que se aprende com Cida é que o teatro pode ser emancipador, libertário e é um ofício sobretudo de resistência. Talvez mais de resiliência. Não é para qualquer um, não é para quem o talento “resolve” tudo. Sob o olhar de Cida, o teatro é mais humano, mais dialógico, mais complexo e – sim! – muito mais político.
E aqui não incorro nesse generalismo perigoso atual que diz que todo teatro é político. Se todo teatro é político, nenhum teatro é político. Não é mesmo?
Hoje, e já de uns anos para cá, entendo nosso trabalho e nossas brigas intermináveis, como uma bonita parceria. Até a rigidez de nos tratarmos pelos nomes (Cida e Gustavo) e não deixar a relação mãe e filho sobressair foi trocada por horinhas de descuido, que me fazem lembrar outra coisa que aprendi com ela, ao longo desses anos: antes de ser personagem, eu sou um ator e antes de ser um ator, eu sou um sujeito. Um homem de 33 anos, filho de pais artistas, que teve a sorte de crescer e se formar nessas duas casas de carinho: o lar – que ainda está lá, na rua Lume 198, onde moram meu pai – Carlos Rocha – e meu irmão, e a ZAP 18, casa escolhida para os afetos e para a reflexão de um teatro político.
Protagonismo
Cida jamais determina qual é o caminho a ser percorrido. Em 13 anos de trabalho, nunca a vi tomar a cena de um ator ou atriz e dizer “faça dessa maneira, porque é melhor!”. Ao contrário, sua direção é calma, minuciosa e conta com o que cada um tem de melhor para oferecer. Ela sempre pontua, problematiza, lança desafios. Lembro-me perfeitamente dos ensaios de “Esta Noite Mãe Coragem” e do elenco heterogêneo do espetáculo (alguns atores com muita experiência, outros com nenhuma. Para ficar em um exemplo apenas, tínhamos Elisa Santana, com mais de 30 de anos de estrada, e um garoto de 14 anos, Thiago Macedo, que fazia sua primeira peça profissional) e de como ela conduzia o trabalho com cuidado e atenção, na tentativa de revelar o potencial cênico de cada um dos seus atores.
Lá em 2006, quando a peça estreou, Cida já dizia que esse encontro de gerações, de pessoas diferentes (era um fato: nossa Mãe Coragem era composta por gente vinda de vários cantos da cidade e com variadas formações) seria a grande riqueza da peça. Eu concordo. Hoje, em uma realidade teatral brasileira cada vez mais regida pelo profissionalismo, pela pesquisa e pelo aprimoramento de técnicas, o que a ZAP buscava (busca) era o encontro que só o teatro poderia ocasionar. Encontro de gerações, de experiências, de desejos que deram ao espetáculo a complexidade que uma temática como a violência urbana no Brasil merece.
A ZAP jamais se colocou ou se declarou como um grupo que pesquisava o processo colaborativo nas suas montagens, mas a direção de Cida sempre foi conduzida para que os artistas tomassem a cena, não apenas em improvisos livres ou estruturados, mas na concepção de cenas e na construção de pequenas dramaturgias. Pessoalmente, essa liberdade criativa ou esse olhar “de fora” me trouxe a dimensão da direção. Então, no processo seguinte a “Esta Noite Mãe Coragem”, eu pude exercitar essa função, ainda como assistente, na criação de “1961-2009”, junto com os outros três atores do elenco.
Naturalmente, depois de alguns anos, eu arrisquei a direção e sigo os preceitos da Cida: aguçar o olhar crítico dos atores, contextualizar historicamente os acontecimentos envolvidos no trabalho e, principalmente, deixar que os atores sejam os protagonistas do trabalho, sem lhes dar soluções definitivas, mas provocar reflexões, debater possibilidades e fazer escolhas. Mais uma vez – nunca é demais lembrar: antes do ator, vem o sujeito, o cidadão. Antes da cena, vem a realidade e como ela me afeta.
Um teatro político que nunca perde sua dimensão humana é o que Cida, minha mãe, faz em sua rotina, na ZAP e nos outros espaços e coletivos que têm o prazer de sua convivência. E, sinceramente, hoje, como seu parceiro de trabalho, espero estar à altura desse viés político. Tão simples e tão raro.