– Por Victor Guimarães –
Crítica a partir do espetáculo “Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento”, do Colectivo de Investigación Apacheta (Argentina)
Logo à chegada do público, os atores nos oferecem mate e o diretor nos convida para a peça. Aos poucos, com as luzes acesas, dez atores de três gerações diferentes, vestidos com trajes de corrida Adidas, começam a se movimentar pelo cenário minimalista, delimitado por uma fita branca e consistindo apenas em um conjunto de cadeiras, que ora preenchem o espaço marcado, ora permanecem nas adjacências da cena. A iluminação permanecerá inalterada por todo o espetáculo, índice do despojamento cênico que atravessa a poética do Colectivo de Investigación Apacheta, dirigido por Guillermo Cacace, e que se materializa também na frugalidade dos figurinos, na permanência dos atores nas bordas do palco durante toda a peça e na figura discreta de um narrador que se veste como o restante do elenco e é também responsável por operar a trilha sonora.
Fotos de Nora Lezano.
O movimento inicial logo se detém, e o que vemos a seguir é o cotidiano de uma família – e de alguns agregados – durante o dia do aniversário do filho mais novo, Branko (Juan Tupac Soler), que sofre de uma doença motora inominada e ocupa uma cadeira de rodas. O texto – do jovem dramaturgo croata Ivor Martinic – se centra no presente das relações familiares, mas não deixa de se contaminar a todo o tempo pelo passado, sobretudo na figura da avó, acometida pela desmemória e instigada a lembrar precariamente – ou a inventar – nomes, histórias, amores desaparecidos. A franca convivialidade instigada pela sobriedade da encenação é a mesma que permeia o texto, centrado nas relações íntimas entre os personagens.
Mas se a proximidade é o ponto de partida, logo percebemos que a peça trabalhará fundamentalmente sobre a densidade das distâncias, a precariedade do convívio, a dificuldade da expressão do afeto no interior de uma casa em decadência. Fala-se muito, o tempo todo (no limite, a própria legenda é incapaz de traduzir o fluxo verbal intenso e é obrigada a estampar a palavra “caos” na tela), mas quase nunca a conversa se dá entre dois atores que se olham de frente. Durante todo o espetáculo, há um desencaixe entre a economia gestual e o regime da conversação: enquanto o tom da fala é majoritariamente coloquial, a gestualidade é declaratória e se volta conscientemente para a plateia. Incapazes de sustentar o olhar diante do outro, os personagens se põem a falar exasperadamente para nós.
Diante desse estado de coisas, a figura que mais se destaca entre as invenções da encenação é justamente a do narrador, responsável por uma gestão muito peculiar do drama: quase sempre, é a narração que preenche a escassez do gesto e descreve uma ação dramática que não encontra correspondência na performance dos atores. “Mia entregou a sopa para a mãe”, diz o rapaz, enquanto vemos as duas mulheres imóveis em cena. Numa das encarnações mais belas dessa interação entre narração e performance – o momento em que Branko tem o primeiro contato físico com Sara (vivida por Pilar Boyle) –, o narrador descreve a trajetória da mão do rapaz em direção à vagina da moça, mas o que vemos em cena é a mão imóvel na cadeira de rodas e o quase-orgasmo solitário e comedido da atriz. É nesse hiato entre a palavra e o gesto que se dá, muito fortemente, a experiência do espectador.
É curioso que um texto croata ganhe, em cena, uma dicção tão porteña. A verborragia estridente que acomete as personagens de “Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento” reenvia inevitavelmente a diversas expressões da ficção argentina – especialmente bonaerense –, da literatura de Cortázar ao cinema de Alejandro Agresti. Embora notável, no entanto, essa argentinidade por vezes ganha o aspecto de um costumbrismo desgastado, que circunscreve a histeria ao feminino – cuja expressão mais clara é a tia Rita (Clarisa Korovsky) – e esbarra em alguns clichês cômicos, como a figura da velha esclerosada que desata a disparar palavrões a torto e a direito (Elsa Bloise).
A divisão rígida entre homens impotentes e mulheres histéricas é também índice de certo maniqueísmo da dramaturgia, mas felizmente tem como contraponto a potência de um elenco capaz de combinar um carisma evidente e uma destreza inequívoca para encarnar uma variadíssima gama de sentimentos. Numa peça que tem na palavra uma ancoragem fundante, salta aos olhos o trabalho corporal extraordinário da jovem Pilar Boyle, que faz conviver uma precisão gestual impressionante (cada centímetro de seu corpo parece eletrizado, mesmo na mais banal das ações) e uma partitura própria, calcada na conjunção entre fragilidade e estranheza.
Se o final catártico e apaziguador (a dança redentora, velha conhecida dos espectadores do teatro mineiro contemporâneo, parece não ser um problema só nosso) revela o desenho de um arco dramático algo previsível, que parte da decadência para formular uma possibilidade de reconstrução da ternura no núcleo familiar, é salutar que os personagens e o elenco tracem voos singulares ao longo do espetáculo, e que a feição de mosaico consiga se sobrepujar à linha narrativa. Se “Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento” vacila enquanto fábula moral, sua vibração é notoriamente potente quando se dedica a fazer variar a densidade dos afetos em um aglomerado provisório de relações.