Crítica a partir do espetáculo “Menino Azul”, do Grupo Matraca (MG).
fotos de Felipe de Oliveira
– Por Diogo Horta –
Inspira. Um fluxo de ideias se inter-relaciona em ritmo tranquilo, vivo e surpreendente. Expira. Inspira. Objetos, bonecos, canções. Expira. Inspira…
Parece haver algo de mágico na simplicidade de gestos e ressignificações de objetos no espetáculo “Menino azul”, do Grupo Matraca de Belo Horizonte. Não aquela magia de circo, mas sim aquela de imaginação sem fim da infância. É que algo vai se criando de pouco a pouco, a respiração vai acalmando e um suspiro ou outro surgindo. As crianças estão quietas, tranquilas, reagem com alegria e observam curiosas e atentas cada momento do espetáculo.
Em cena, um quadro negro pequeno e um carrinho com rodinhas (como um de pipoca) cheio de suportes, aberturas, buracos, estantes laterais para o decorrer do espetáculo; os atores Juliana Palhares e Cauê Salles juntamente com bonecos e objetos variados. Em cena, a invenção.
‘‘Quando falamos em invenção recorremos a sua etimologia latina – invenire –, que significa compor com restos arqueológicos. Inventar é garimpar algo que restava escondido, oculto, mas que, após serem removidas as camadas históricas que o encobriam, revela-se como já estando lá (KASTRUP, 2005, p. 1278).’’
Em “Menino azul”, os atores/manipuladores parecem trazer essas características da invenção com toda força para o espetáculo na medida em que estruturam o trabalho com cenas que demonstram o processo de criação diante do público e cenas em que contam as histórias e interpretam os personagens com o auxílio dos bonecos e objetos.
Minha primeira impressão foi de estranhamento diante da dramaturgia e da encenação como um todo nos primeiros quinze minutos do espetáculo. A dramaturgia mistura com frequência personagens, atores, manipuladores e bonecos em assuntos que pareciam estar na ordem do objeto e que, de repente, passam a dizer respeito também ao ator e vice-versa. A lógica natural da narrativa é, portanto, quebrada, desmembrada em fragmentos que se suportam justamente no processo de invenção. Por outro lado, e conectada à dramaturgia, a encenação recorta cenas, mistura elementos cênicos como objetos e bonecos, desnuda o ato da manipulação, quebra a quarta parede e se desprende de sequência exata de ações. A passagem de uma cena a outra é por vezes entrecortada, por exemplo, com os atores marcando um ritmo simples no cenário, que as crianças acompanham por alguns segundos e já se passa a outra cena sem que esse momento tivesse alguma conexão com a narrativa.
Na verdade, o que pareceu em princípio estranho, me parece agora ser exatamente o que torna o trabalho especial no teatro para crianças. Dramaturgia e encenação não estão a serviço de uma história, de uma narração, de uma comunicação direta ou de uma estrutura lógica de teatro; ao contrário, estão a serviço de um fluxo inventivo que ganha força se pensamos a invenção como nos apresenta Kastrup (2005). Dessa forma, o público se conecta com algo que ele entende na sua subjetividade, na sua capacidade criadora, e por que não dizer no seu inconsciente, fazendo com que a experiência teatral saia dos contornos do entendimento racional apenas e caminhe lado a lado com a criança (e com o adulto) em seu potencial imaginativo.
A primeira cena do espetáculo são os atores acordando e percebendo que é hora de trabalhar uma vez que público está presente. Eles colocam aventais com manchas de tinta, como de artistas plásticos em seus atelies, e aí começam o espetáculo. Como diz na sinopse do trabalho, “Era uma vez dois artistas que queriam brincar de contar histórias com seus bonecos e objetos”. A metalinguagem e o desnudamento do fazer mencionados acima ficam mais claros a partir destes elementos.
A história narrada é a de um menino azul, menino-rio chamado Francisco, que ao final da fluida e aquosa narrativa se transforma em Velho Chico. As histórias do menino azul são histórias sem vilões e sem um problema a ser solucionado, sendo narrados encontros do menino com o cachorro Estopa, com a Iara, com a sua mãe, entre outros personagens, permeados de histórias sobre um riacho, um rio, um peixe. É difícil definir o “o quê” das histórias, pois elas estão dentro de um fluxo narrativo outro.
Sabemos, porém, que o espetáculo se volta para o rio São Francisco, para a sua grandeza e sabedoria popular, para seus saberes ocultos e escondidos, para sua dimensão mística e lendária também conectada a todos nós por algo ancestral. A história deste Francisco-rio é como uma lenda, ela narra o percurso da vida e celebra a maturidade da natureza.
O trabalho do teatro de objetos ganha força especial no teatro infantil já que é um elemento presente no cotidiano das crianças. A ressignificação e combinação de objetos para formar uma figura, sobretudo sendo construída diante do público, alimentam a imaginação e a curiosidade. Um exemplo simples é o burrinho do Menino Azul feito com dois pincéis, uma toalha sobre o antebraço da manipuladora e um copo em sua mão. Esta imagem do burrinho permanece gravada em mim e, se este personagem tivesse sido construído fora do meu campo de visão ou se fosse um boneco, talvez tivesse tido menos impacto sua passagem pelo espetáculo. Isso denota a força que tem a construção da imagem dos personagens em sobreposição à narrativa e aos demais elementos que compõem o espetáculo. Poucos grupos se dedicam a uma pesquisa do teatro de objetos em Belo Horizonte atualmente e, por isso, há que se valorizar ainda mais o trabalho do Grupo Matraca.
A versão a que assisti foi em um espaço aberto durante o dia e por isso sem estrutura de iluminação, motivo pelo qual não fazemos referência a este elemento cênico que é presente no espetáculo feito em palco italiano. As canções utilizadas são canções populares que as crianças sabem cantar, fortalecendo a conexão delas com o trabalho.
“Menino Azul” apresenta, portanto, um jogo rico entre bonecos, objetos e manipuladores, fazendo uma trajetória entremeada por canções populares, imagens poéticas e interação com o público em momentos pontuais. O ritmo do espetáculo é lento, a voz dos atores suave e o silêncio presente em muitos momentos. O espetáculo oferece, portanto, pílulas sequenciais de suspensão, de encantamento, de poesia e de respiração fluida e leve. Em meio ao barulho das cidades, dos vídeos do YouTube, das canções de adultos, das imagens da televisão, das cores e ruídos dos jogos no celular, o espetáculo “Menino Azul” inventa uma pausa, um suspiro, um respiro, muito provavelmente, azul.
Espetáculo visto dia 21 de julho de 2017 no Sesc Palladium em Belo Horizonte.
REFERÊNCIAS:
KASTRUP, Virgínia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1273-1288, Set./Dez. 2005.
FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia: Criação coletiva a partir do texto de Juliana Palhares
Direção: Rodrigo Robleño
Assistência de Direção: Débora Mazochi
Atores/Manipuladores: Cauê Salles e Juliana Palhares
Cenário: Juliana Palhares
Confecção de cenário: Gastão Arreguy
Figurino: Gabriela Demarco/Elvira Matilde e Juliana Palhares
Bonecos: Cauê Salles
Arranjos e preparação vocal: Gustavo Mafra
Iluminação: Tainá Rosa e José Reis
Sonoplastia: Rogério Alves
Assessoria sobre cultura da criança: Luciana Borges
Programação Visual: Vinicius Souza
Produção e Assessoria de Imprensa: Mariana Câmara
Fotografia: Felipe de Oliveira
Registro em vídeo: Ronaldo Jannotti
Apoiadores: Elvira Matilde, Escola da Serra e Instituto Libertas de Educação e Cultura
Técnica: Manipulação direta, de vara, de luva e manipulação de objetos.