por Clóvis Domingos
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Texto escrito a partir dos espetáculos Bronzes e Cristais do Grupo Travessias Escénicas (São Paulo) e Peixeira com Batom da Cia Teatral Ícaros do Vale (Araçuaí/MG), apresentados na 8º Festival Nacional de Teatro de Passos e Região, julho de 2024.
“Um dia uma folha me bateu nos cílios.
Achei Deus de uma grande delicadeza”
Clarice Lispector.
Desde sua primeira edição, em 2017, acompanho como crítico o Festival Nacional de Teatro de Passos e Região. Idealizado e coordenado pelo diretor Maurílio Romão, e realizado junto a ADESC (Associação de Desenvolvimento Cultural fundada em 2009 por artistas e entusiastas da cultura na cidade), o festival conta com a parceria do poder público (Prefeitura e Câmara Municipal de Passos) e com diversos patrocinadores. O FNTP vem se tornando referência no país pela pluralidade de linguagens cênicas e pela criação de um espaço fértil para intercâmbios entre artistas, grupos, pesquisadores, gestores culturais e público. Ao longo dos anos, o festival vem crescendo exponencialmente e mobilizando não somente os coletivos teatrais, bem como criando movimentos e espaços de convívio artístico e social na cidade.
São algumas características do Festival: a coexistência de múltiplas propostas artísticas; a descentralização das apresentações dos trabalhos (ocupando praças, ruas, espaços alternativos e o palco do histórico Teatro Gustavo José Lemos), as visitações lúdicas de palhaçaria em hospitais, creches e lares de idosos, o acesso gratuito a toda programação, a participação e valorização de grupos de cultura popular local como as Guardas de Congo, a homenagem a cada edição para alguma personalidade artística/cultural da cidade, a premiação dos espetáculos feita por um corpo de jurados e a formação continuada do público frequentador que acontece através de ações de mediação (sob minha coordenação) como Crítica Errante (conversas com espectadores nas filas e nas praças a partir da fruição dos espetáculos) e Café com Crítica (debate aberto sobre a programação ofertada e a relevância do evento na vida dos moradores).
Comunidade, arte e cidade
Este texto nasce como efeito e coleta dos restos que ficaram em mim tatuados a partir da intensa experiência de contato com uma comunidade desejosa de arte, cultura e produção de pensamento crítico. O acontecimento cênico com sua poiésis teatral convocou artistas e plateia para uma experiência de encontro e desencontro, acordo e combate entre ideias e visões de mundo, mas que não escapou das linhas de força daquilo que o teórico argentino Jorge Dubatti (2014) denomina de poiésis convivial. Quando um festival de arte acontece numa cidade e uma parcela de sua população compõe e participa ativamente do evento, há alguma chance de algo se transformar no que se refere às dimensões do tempo e do espaço. Uma atmosfera de novidade, festa, celebração e incômodo entram em cena, algo também do campo do extraordinário pode invadir o espaço público e abrir frestas no cotidiano. Uma senhora afirmou: “a cidade parece respirar de forma diferenciada”.
Há uma espécie de vibração encantatória e uma constatação meio difusa de que existiria um tempo marcado pela delicadeza. As longas filas e a grande procura para assistir ao maior número possível de espetáculos refletem um pouco dessa minha leitura. A soma de muitas expectações gerou um horizonte amplo de associações livres e debates estéticos. Não faltaram as discordâncias e os conflitos no que se refere à opinião e gosto dos espectadores.
Falar de delicadeza para se aproximar das vivências ocorridas num festival de teatro, corre o perigo de soar como um discurso ingênuo e agregador, que não se debruça sobre as tensões existentes. Mais do que um tema, interessa-me articular a delicadeza como categoria ético-política. A delicadeza como um dispositivo dialético: deslizamento entre suavidade e crueldade. Numa sociedade na qual a brutalidade e a força muitas vezes imperam nos âmbitos da vida social e política, onde o domínio da velocidade nos atropela em nossa relação com o tempo, a delicadeza como furo frente aos poderes e saberes hegemônicos, pode operar como “gesto menor”, linha de fuga que faz desvios num campo minado e já predeterminado a certos comportamentos e condicionamentos. Para aqueles e aquelas que podem por um período experimentar a vida na cidade não apenas como lugar de passagem, espaço exclusivo para compra e troca de bens de consumo e pela duração do tempo capturado apenas pela chave produtiva, não seria uma pequena e delicada subversão a cidade vivida também como lócus de reunião, lazer e arte?
Um festival de arte numa cidade interiorana no sul de minas, mais do que uma intervenção seria uma “inter-invenção”, isto é, oxigenação, modulação e criação de outras possibilidades de ocupação e convívio. Um curto-circuito e uma interrupção nos modos habituais de funcionamento. Uma composição inventada.
Busco pensar o aparecimento e reconhecimento da delicadeza como ato que se atreve a ressaltar algo que emerge do discreto fio da sutileza, daquilo que não está dado, do imprevisto, do quase invisibilizado. Talvez nosso horror frente ao delicado se estabeleça pela sua recorrente vinculação com o frágil e o vulnerável. Mas a delicadeza serpenteia e quando se manifesta na percepção de alguém tem a força de uma fina presença capaz de provocar inúmeras sensações.
Ela joga com o sutil e o complexo. Inexiste onde habita o grande, o totalitário, onde predomina a supremacia da razão e do tecnicismo. A delicadeza faz trampolinagens e flerta com a astúcia (LARROSA, 2003). Fisga, desarticula, dispensa os elaborados lances de jogos, brinca na minoridade, corporifica a importância do cuidado.
Segue um pouco dos rastros deixados por dois trabalhos do Festival (não consegui assistir a toda programação), cuja substância delicada e seus lampejos poéticos serão por mim relacionados a alguns elementos e signos cênicos. Aqui não se trata mais da minha ação de Crítica Errante realizada nas filas. Agora sou eu quem assino esse texto e apresento minha coleção de fragmentos, detalhes e achados que se revelaram como música “para ouvir no volume mínimo” (Denilson Lopes, 2007).
Escutar o disco da vida numa vitrola do tempo
Existem delicadezas que ferem como lâminas agudas. A beleza também pode causar dor. O espetáculo Bronzes e Cristais do Grupo Travessias Escénicas (escolhido pelo júri como melhor espetáculo do Festival e que também ganhou outros prêmios), deixou grande parte da plateia enternecida e silenciosa. Inspirado na canção da cantora Maysa, o espetáculo trouxe a letra, que, faz uma analogia entre os impasses e esperanças da vida e apresentou de forma poética e refinamento técnico, as dificuldades e alegrias do envelhecimento de duas personagens: Carmen e Leonor. O mote central gira em torno da preparação de uma festa cujo objetivo é reunir amigos do passado e resgatar antigos laços. Entre preparativos e lembranças, ambas confidenciam segredos e histórias que as fazem pensar sobre o sentido da vida, a solidão e o companheirismo feminino na velhice.
Foto: Carla Correa /FNTP
A direção de Marcos Nascimento opta por uma encenação minimalista e o foco recai sobre a atuação precisa das duas atrizes (Camila Rodrigues e Ingrid Taveira) que utilizam meias máscaras expressivas na composição das personagens. De início, minha primeira reação foi de estranhamento com a aparição daquelas “figuras”. Depois, com o desenvolvimento da narrativa, elas passaram a se tornar críveis e eu já me sentia “próximo” de seus desejos e memórias. No espaço cênico composto e rodeado por poucos objetos (cabideiro, mesa, vitrola, cadeiras) era possível identificar a movimentação das personagens por meio de um desenho circular, como se essas fossem a agulha da vitrola deslizando sobre o arranhado do vinil, trazendo assim um pouco de som e melodia para suas miúdas existências.
Bronzes e Cristais começa de forma despretensiosa, vai aos poucos enredando e encantando a plateia, não faz concessões para facilitar nossa recepção, pelo contrário, sustenta um ritmo muito singular e coerente com sua proposta e tema. Os silêncios longos criam partituras de uma suave canção de desamparo. Não há golpes dramáticos nem personagens heroicas numa dramaturgia que não entrega todos os fatos e nuances de uma só vez, vai vagarosamente apresentando cada camada. Há certa lentidão e a presença de lapsos e esquecimentos por parte das personagens, como se olhassem num espelho quebrado. O escritor Affonso Romano de Sant’Anna (2007) defende que: “A delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade”. Corporalmente é possível identificar que Carmen é mais sinuosa (no passado foi atriz, adora cantar e criar danças, se mostra mais sonhadora e bem-humorada), ao passo que Leonor é uma mulher retilínea e mais rígida (sabemos pouco sobre ela, mas é a parte realista e pragmática da dupla) e que guarda um segredo amoroso.
Carmen faz da casa seu “palco” enquanto Leonor parece ali encontrar um refúgio para se sentir amparada e então cuida dos afazeres cotidianos. É ela quem faz as compras da casa e está sempre inconformada com os custos de vida tão altos na atualidade. Mas quando compartilha com a amiga (e com o público) a história de um amor silenciado e não vivido em seu passado, compreendemos que a vida dela precisou pagar um preço muito caro para se manter conformada. O amor de Leonor por outra mulher ficou impossibilitado por motivos que não somos informados, o que sabemos é que restou saudade, memória e solidão. A dramaturgia não invade a intimidade da personagem, respeita o limite de não se ter condições de dizer e explicar tudo. Existem palavras em “estado de espera” e vigília.
Bronzes e Cristais celebra a amizade dessas duas mulheres tão diferentes. Uma distância que produz uma ponte. Exercitam o desafio da alteridade. Como nos lembra Ortega (2004): diante de uma sociedade que nos instiga a saber quem somos, a descobrir a verdade sobre nós mesmos, e que nos impõe uma determinada subjetividade, esse cultivo da distância na amizade levaria a substituir a descoberta de si pela invenção de si e pela criação de infinitas formas de existência. A amizade é no fundo um “programa vazio”, outra denominação para uma relação ainda por criar. O espetáculo nos lembra que não há nada mais delicado do que o campo das relações afetivas e que o amor pode ultrapassar a ideia de casal ou par romântico se expandindo e desaguando numa amizade profunda e capaz de fundar uma rede de apoio, como acontece na peça.
No final, nós, os espectadores, nos tornamos os convidados que não chegaram para a festa. Suplantamos um pouco essa ausência através de nossa presença e escuta atenciosa. A peça fala da necessidade e dependência que temos uns dos outros e da complexidade de nossas vidas atravessadas por momentos de “tormento e paz que são bronzes e cristais”.
Peixeira com batom: espinho e flor
Misturando política, história, música, poesia e ficção, Peixeira com Batom da Cia Teatral Ícaros do Vale (Araçuaí/MG) trouxe a saga do vaqueiro Roseli (numa primorosa interpretação de Warley Glender), que nasceu em uma família tradicional do nordeste brasileiro e que desde cedo sofria preconceito e violência pelo fato de ser uma criança muito “delicada” e considerada “estranha”. Dirigido por Luciano Silveira, o texto é de autoria de Fernando Limoeiro e se apresenta como um divertido cordel cujos versos têm sabor agridoce ao mesclar humor e dor para abordar temas como conflitos domésticos, homofobia e machismo. O espetáculo recebeu três prêmios no Festival de Passos: melhor dramaturgia original, melhor maquiagem e melhor ator coadjuvante (Luciano Silveira).
Nos cordéis, a estrutura enunciativa de vários folhetos também se nutre da tradição e se firma na utilização de recursos que resgatam as antigas formas de relatos orais. Teatro e Literatura de Cordel forjam encontros inusitados e convergem na produção de fabulações lúdicas que segundo Pinto (2009) imprimem a oralidade à escrita como um dos procedimentos em que se dá a confluência entre poema e prosa. Nessa literatura, a par dos poemas que exibem bravatas, desafios, são frequentes os que se valem, mais precisamente, da chamada “enunciação comunitária”. É por esse viés coletivo que o Grupo Ícaros do Vale nos convoca a assistir Peixeira com Batom.
Foto: Carla Correa /FNTP
A exuberância do colorido presente no cenário e a bela execução sonora realizada ao vivo (com o apoio de dois músicos) encontram na poesia de Limoeiro a plenitude necessária para envolver a plateia nesse trabalho marcado por episódios cômicos e outros mais angustiantes. Roseli, como “bicha afeminada”, caminha numa corda bamba correndo o risco de ser reduzida apenas à caricatura de uma “figura típica e engraçada”, ao mesmo tempo que nos afronta com sua postura destemida e sua dor sincera, nos convencendo com sua humanidade. Essa linha tênue entre o cômico e o trágico permeia toda a encenação, mas é possível perceber a escolha pela leveza e o riso como elementos condutores capazes de provocar o divertimento aliado à denúncia social. Houve momentos na apresentação do espetáculo que era possível escutar o riso constrangido e nervoso de alguns e o suspiro tenso de outros. Se o pai de Roseli quer mantê-lo escondido e aprisionado no ambiente familiar, pela caixa cênica o que se dá é o contrário: as questões do menino vaqueiro ganham a dimensão pública numa subversão poética.
O próprio título Peixeira com Batom já traz no nome o dilema no qual se encontra Roseli: de um lado um objeto característico do rude universo masculino e do outro, um acessório que além de ornamento também marca a expressividade feminina. Pela tradição lhe é imposta a peixeira. Numa traição, seu desejo clama e também se identifica com o batom. Vale lembrar que as pinturas faciais têm suas origens na Antiguidade e que o uso do batom chegou a ser proibido na Idade Média, incluindo a perseguição de mulheres que passavam a ser chamadas de bruxas. No caso do espetáculo, a personagem borra a divisão de gêneros e papéis sexuais transgredindo as normas vigentes. Roseli passeia por diferentes lugares e identidades: é homem, mulher, bicho e flor. Porta a peixeira e o batom ao mesmo tempo. Com a primeira corta e talha o couro do discurso patriarcal. Com o batom pode se metamorfosear e “performar” outras personagens e mulheridades. A utilização do batom já sinaliza o que acontecerá depois em seu futuro: a entrada no universo artístico, onde encontrará um espaço de aceitação, expressão e elaboração de sua história.
Assistindo a esse espetáculo do Ícaros do Vale, um elemento cênico capturou meus sentidos: as flores de papel crepom dispostas no palco. Em meio à uma atmosfera tão hostil e agressiva de sua casa, o menino Roseli produzia esses enfeites numa busca por algum tipo de beleza e delicadeza. Flores artesanais e artificiais como telas de proteção para não ser engolido pelo desespero, o horror e a morte.
Cena do filme Ataque dos cães. Fonte: Internet.
Lembrei então de uma obra cinematográfica: Ataque dos cães, da diretora Jane Campion, que retrata a vida de caubóis numa região desértica dos Estados Unidos entre os anos de 1910 e 1920. Há uma cena emblemática: um grupo de homens chega para comer num restaurante e ao se depararem com flores de papel na mesa perguntam, em tom de escárnio, que mocinha teria sido a responsável por aquelas “futilidades”. O susto advém quando o jovem magricelo Peter responde: “fui eu”. Ridicularizado pelo grupo, ele ainda assiste a um vaqueiro queimando uma flor junto à vela, enquanto sua mãe se esconde na cozinha para chorar. As flores ofendem e apontam para aquilo que os vaqueiros do filme e o pai de Roseli não são e têm pavor de um dia serem: sujeitos fragilizados. Então o que lhes cabe é honrar suas masculinidades ferindo os outros com espinhos.
Cartaz do espetáculo e o detalhe com as flores
Os trejeitos burlescos e os trajetos dolorosos de Roseli no espetáculo Peixeira com Batom encontraram nas flores de papel sua síntese e força simbólica. Após o debate do espetáculo chamou a atenção ver os espectadores as segurando e carregando como lembrança do trabalho. Se à Roseli foram destinados apenas espinhos, ela conseguiu extrair perfume em meio a tanta intolerância e injustiça. Como muitas pessoas com sexualidades e gêneros dissidentes do acordo com a heteronorma e o “cistema”, a personagem precisou migrar e começar uma outra vida num novo lugar. Como na canção de Cartola: “deixe-me ir preciso andar, vou por aí a procurar, rir prá não chorar”…
Ao final, num tom folhetinesco (próprio da farsa), Roseli se torna uma artista famosa e rica e que anos depois pode voltar para ajudar no tratamento de saúde do pai. Essa “volta por cima”, a meu ver, é menos relevante do que sua maior vitória: manter-se viva.
Última faixa
Com esses e muitos outros espetáculos apresentados no Festival Nacional de Teatro de Passos e Região, para mim foi instaurado um tempo de delicadeza. Em suas diferentes variações, ela, a delicadeza se fez personagem no samba-canção e lamento de Bronzes e Cristais e na flor vermelha como ato de resistência e força em Peixeira com Batom. No geral, quando saio de um espetáculo, minha avaliação tende a ser sempre precipitada e absoluta: “que fantástico”, “que trabalho forte”, “impactante” ou então “que experiência ruim”! Entre os extremos que engrandecem ou diminuem certos espetáculos, raramente a categoria do delicado é ativada em minha percepção.
Será que ela habitaria um “entrelugar”?
O que pode a delicadeza?
Referências:
DUBATTI, Jorge. Teatro como acontecimento convival. Revista Urdimento, 2014.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana. Danças, piruetas e mascaradas. 4 ed. São Paulo: Autêntica, 2003.
LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens, 2007, Editora UNB.
ORTEGA, Francisco. Por uma ética da amizade. Disponível em: https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2020/07/cad109-por_uma_etica_e_uma_politica_da_amizade-francisco_ortega.pdf.
PINTO, Maria Isaura. O cordel do Brasil e o cordel de Portugal: possíveis diálogos, Linguagem em (Re)vista. 2009.
SANTA’ANNA, Affonso Romano de. Tempo de Delicadeza – Porto Alegre: L&PM, 2007.