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– por Felipe Cordeiro –
Crítica a partir do espetáculo Apenas o fim do mundo, do grupo Magiluth
No mundo do teatro, encontrar o equilíbrio entre a proximidade e a distância é uma tarefa árdua e fascinante. É com esse desafio que o grupo recifense Magiluth se depara ao encenar Apenas o fim do mundo, texto de Jean-Luc Lagarce, sob a direção de Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi. A peça, que trata do retorno de um homem à casa de sua família para anunciar sua morte iminente, tem potencial para tocar profundamente o público, mas perde o fôlego em alguns aspectos cruciais durante sua releitura.
A cenografia é um dos pontos altos da produção. Ambientado no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), em Recife, o espetáculo explora inúmeras espacialidades daquele local, como galerias, corredores, a recepção e a rua que abriga o museu, e o público transita por escadas, elevadores e assiste ao trabalho a partir de diversos pontos de vista: de cima, de frente, de baixo etc. Há uma ocupação monumental do espaço do museu, de suas alturas, luzes, sombras e distâncias. O espectador é exposto a portas de entrada e saída, espelhos, corredores extensos, ambientes administrativos, salas com tijolos à mostra e também a tudo que há de suntuoso (como as obras de arte) e decadente naquele espaço (paredes com infiltração, reformas etc).
Fotos: Felipe Cordeiro
Essa escolha de apresentar a peça em um ambiente não convencional, como um museu, proporciona uma experiência singular e instigante. A interação entre a encenação e o espaço cria uma atmosfera que transcende o palco tradicional e permite ao público mergulhar na narrativa de maneira mais dinâmica e sensorial. Além disso, a presença constante do ambiente museológico como pano de fundo adiciona camadas de significado à história, estabelecendo um diálogo profícuo entre o mundo ficcional da peça e o mundo real do museu. É uma abordagem criativa que enriquece a experiência teatral e convida o público a refletir sobre a relação entre arte, espaço e performance.
A interação do público com os atores, ora no mesmo plano, ora em um andar acima, adiciona uma dimensão multiperspectiva à experiência teatral. O grupo demonstra perspicácia ao criar ambientes de intimidade e acolhimento, graças a uma habilidosa orquestração entre cenografia e iluminação, muitas vezes não convencional. De igual forma, uma simples mesa, por meio de jogos de distância, pontos de vista ou até mesmo pelo som de uma laranja, consegue simbolizar o profundo abismo que circunda esses personagens.
Além da distância emocional entre eles, existe uma barreira interna que dificulta a expressão de seus pensamentos e emoções, como observado pela pesquisadora Alice Folco, a partir do texto de Lagarce. Isso faz com que a dificuldade de se comunicar uns com os outros seja precedida pelo desafio de articular seus próprios sentimentos. Suzana (Bruno Parmera) frequentemente se encontra incapaz de explicar ou dizer o que sente que precisa ser dito, enquanto Luiz (Edjalma Freitas), embora desejasse gritar em determinado momento, diz que se manteve em silêncio. Da mesma forma, ele não conseguiu estabelecer um diálogo substancial com sua família quando viviam juntos, nem conseguiu comunicar sua iminente morte quando finalmente os reencontrou.
Um exemplo notável que ilustra visualmente todas essas complexidades relacionadas à comunicação e expressão é o painel decorativo de parede que se desdobra em um espelho imenso e distorcido. Esse elemento cênico se destaca pela sua presença visual, além de carregar consigo elementos simbólicos. Através desse espelho distorcido, somos convidados a testemunhar não apenas a imagem física das personagens, mas também a representação de suas relações e dinâmicas familiares. A distorção nesse reflexo sugere a desarmonia e a dissonância que permeiam as interações entre esses sujeitos, enquanto a imensidão do espelho ressalta a magnitude das questões não resolvidas que os envolvem e sempre podem ser desdobradas. É como se esse espelho refletisse não apenas suas imagens físicas, mas também os labirintos emocionais e a profunda incapacidade de se enxergarem verdadeiramente dentro do contexto familiar. Essa metáfora visual enfatiza a centralidade da incomunicabilidade e da falta de compreensão no cerne do arco dramatúrgico.
A decisão de ambientar uma cena familiar em sépia, com uma paleta de luzes âmbares, tem o poder de enquadrar essa família em um passado carregado de acusações, no qual as cores são escassas, mas as mágoas, os ressentimentos e as lamentações são abundantes. Logo em seguida, somos testemunhas de um momento significativo quando apenas uma geladeira ilumina e testemunha um dos primeiros rasgos de sinceridade que Catarina (Giordano Castro) dirige a Luiz (Edjalma Freitas). Essa escolha de estilização visual evoca um ambiente repleto de conflitos não resolvidos, assim como realça o contraste entre a escuridão emocional que permeia essa família e os raros momentos de verdade e vulnerabilidade que surgem no cenário.
A trilha sonora, na maior parte do espetáculo, desempenha um papel incidental, no entanto, há um momento particular em que o próprio elenco assume a execução dos instrumentos musicais. Essas músicas, com sua sedução sonora e capacidade de convidar à movimentação, emergem como um ponto dionisíaco na produção. Elas estabelecem um contraste intrigante com os momentos de introspecção que permeiam a peça. Enquanto a maior parte da narrativa se desenrola em um tom mais reflexivo, a trilha sonora surge como uma força pulsante que agita a experiência do espectador, incentivando-o a se envolver sensorialmente e a se deixar levar pelas emoções que fluem da música. É um aspecto marcante da produção que adiciona camadas adicionais de profundidade e complexidade à experiência teatral, revelando a versatilidade e a habilidade do grupo em criar uma atmosfera rica e multidimensional.
Por mais que esses momentos descritos acima contribuam significativamente para a ficção que se cria, a atuação e as vozes de alguns personagens não acompanham essas nuances do íntimo, do sensorial e das sutilezas. Apesar da acentuada proximidade física proposta pela encenação, a sensação é de que há uma grande distância simbólica entre os atores e o público, o que prejudica a imersão na história e um compartilhamento mais próximo daquilo que se quer transmitir com as palavras.
As falas, provenientes de um texto verborrágico e poético, em alguns longos monólogos, como os de Luiz (Edjalma Freitas) e Suzana (Bruno Parmera), apresentam poucos matizes e a prosódia escolhida não favorece a construção dramatúrgica. Ambos os personagens atuam como metralhadoras de palavras, despejando uma variedade de ordens e sentimentos, em diversos momentos com a mesma curva tonal. Isso cria uma rotina de repetições que enfraquecem a interpretação. Além disso, a quantidade de público na sessão à qual assisti prejudicou o ritmo do espetáculo, tornando a visualidade e a transição entre as cenas desafiadoras. (Ainda assim, um espaço teatral abarrotado de pessoas não deixa de acender uma chama de esperança, que é também política e estética.)
As pausas e silêncios, elementos fundamentais na obra de Lagarce, em diversos períodos não parecem orgânicos. Esses momentos, que poderiam ser oportunidades para explorar a profundidade emocional dos personagens, acabam sendo escassos na encenação. Os personagens, embora sejam interpretados com dedicação e afinco pelo elenco, parecem se agarrar a arquétipos ao longo das cenas, perdendo a chance de revelar camadas mais complexas de suas personalidades.
A densidade que o texto de Lagarce exige de seu protagonista, Luiz, é pouco presente nesta encenação. O ator parece estar à deriva, sem o peso, magnetismo e mistério necessários para dar vida ao personagem e à sua iminente morte. O protagonista, ponto de convergência de todas as tensões da obra, não transmite os sentimentos que essa pequena tragédia contemporânea poderia evocar. Seu corpo diz pouco, deixando de explorar as tensões, tiques, repetições e traumas que teriam o potencial de enriquecer a interpretação.
Apesar das fragilidades mencionadas, é importante destacar o poder da interpretação de Antônio (Mario Sergio Cabral), responsável tanto pela criação dos climaxes explosivos quanto pelos silêncios e olhares mais acusatórios. Mesmo que muitas vezes não recebesse de seus parceiros reações capazes de catapultar o jogo cênico e surpreender o público, o ator não perdeu em momento algum a ferocidade de suas falas, a tenacidade de seu corpo e a grande variedade de ações cênicas com as quais deu (muita) vida ao seu personagem. Ironicamente, Antônio, o personagem ranzinza, descrito pela Mãe como “um rapaz que imagina tão pouco”, um homem bruto, ligado ao trabalho braçal, às ferramentas de aço e às palavras trincadas, é exatamente o indivíduo que mais instigou minha imaginação e emoções durante aquelas duas horas de encenação. Mesmo que, pessoalmente, eu me identifique mais com Luiz do que com ele. Destaca-se também a interpretação de Giordano Castro, que trouxe nuances de humor, sarcasmo ou mesmo acusação à sua Catarina e contribui para a narrativa dramatúrgica de maneira envolvente.
A opção de elencar atores do gênero masculino para interpretarem personagens femininas pode ser percebida como uma oportunidade para aprofundar a exploração das complexidades que envolvem as relações familiares. Essa escolha, longe de ser uma mera convenção teatral, é uma ferramenta intrigante para lançar luz sobre as dinâmicas de parentesco. Ao desafiar as convenções de gênero tradicionais, a encenação oferece uma perspectiva própria sobre as identidades de gênero e as normas sociais que afetam as interações dentro da família.
Diante do irremediável anúncio da morte, que paira como uma sombra sobre todo o espetáculo, é impossível não refletir sobre as dificuldades de comunicação que permeiam as relações familiares em Apenas o fim do mundo. Desde o prólogo, Luiz busca encontrar as palavras certas para compartilhar sua notícia devastadora com sua família, mas o reencontro termina sem que ele tenha conseguido transmitir seu anúncio. Essa inabilidade de se comunicar também se estende aos outros personagens, revelando o quanto as emoções profundas podem ser difíceis de expressar. A Mãe de Luiz adverte sobre as tentativas inábeis de seus irmãos em se comunicar, enquanto Antônio confessa a dificuldade de expressar seu amor. Nesse contexto, a peça também lança luz sobre o estigma enfrentado pela população LGBTQIAPN+ em relação à epidemia de HIV/AIDS, destacando como essas questões de saúde, sexualidade e identidade de gênero muitas vezes são tratadas com tabu e discriminação. Em um mundo onde as palavras muitas vezes falham em capturar a complexidade das emoções humanas e onde o estigma ainda persiste, Apenas o fim do mundo nos convida a contemplar a fragilidade da comunicação, a profundidade das emoções humanas e as lutas enfrentadas por aqueles que lidam com desafios de saúde expressivos.
A obra do Grupo Magiluth é uma produção que busca trazer à tona os embaraços das relações familiares, convidando o público a refletir sobre as possibilidades de reconciliação e compreensão em meio à incomunicabilidade. A procura pelo equilíbrio entre a intimidade e a distância continua sendo um desafio, um caminhar por essa corda bamba da arte teatral, permeada por sons e fúria, mas também pelo silêncio e pela delicadeza, da dor e da voz.
FICHA TÉCNICA
Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Edjalma Freitas, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro e Mário Sergio Cabral
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de Arte: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth