— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo “Página 469”, do Grupo Teatral Engasga Gato (Ribeirão Preto/SP).
Estamos na Praça Roosevelt, em São Paulo. Nos aproximamos do fim do expediente, e o movimento da região começa a aumentar. Enquanto algumas pessoas deixam o trabalho, outras se acomodam nos bares do entorno. Como de costume, grupos de jovens invadem diferentes pontos da praça, ao mesmo tempo em que alguns moradores de rua – às vezes solitários, às vezes não – encontram nela um espaço propício a ser habitado, sabe-se lá por quê e por quanto tempo. Reunidos em um mesmo lugar, simultaneamente de todos e de nenhum deles, tais personagens experimentam a praça como um contexto onde se pode viver, em público, capítulos de trajetórias particulares. Tudo corre conforme o costume – como se nada, na verdade, acontecesse ali.
Mas a praça recebe, nesse mesmo fim de tarde, alguns elementos que intrigam seus frequentadores. Afixadas às grades de uma trincheira que a tangencia, há fotografias que se apropriam da escala humana e imediatamente remetem a moradores de rua protegidos com casacos e cobertores. Do outro lado da rua, descansam sobre a calçada alguns corpos de papel machê, gerando nos transeuntes uma curiosidade que os corpos de carne e osso, igualmente espalhados aqui e ali, parecem já não ser capazes de despertar. Tão sutis quanto os bonecos de papel machê, outros corpos silenciosamente se inscrevem no mesmo espaço. Usando giz branco, se apropriam do acinzentado piso da praça como página a ser ocupada com reflexões e histórias que não encontram ouvido entre as apressadas pessoas que transitam pela cidade.
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É em meio a essa paisagem, na qual arte e vida intencionalmente se misturam, que tem início o espetáculo “Página 469”. Realizado pelo Grupo Teatral Engasga Gato, com texto de André Felipe e direção do veterano artista e pesquisador André Carreira, o trabalho é movido pela busca de Getúlio, um funcionário público que misteriosamente abandonou seu posto e, até onde sabemos, passou a viver na rua. Sob o comando de três atrapalhados funcionários de uma curiosa “Liga do Bem”, a busca rapidamente mobiliza espectadores e passantes, envolvendo-nos num bem-humorado jogo de erros e acertos que, entre linhas de visibilidade e invisibilidade, conduzem ao até então desaparecido Getúlio.
A partir desse encontro, o humor quase farsesco que predominava no início da peça se funde a um drama naturalista que remete a trabalhadores confinados em paletós, escritórios e vidas sem sentido. Como contraponto ao peso de tais enquadramentos, tão familiares a todos nós, a rua é apresentada como arena onde cada um, inclusive Getúlio, tem liberdade para reescrever a própria história. Enquanto nosso protagonista decide se volta ou não a vestir seu antigo paletó, somos convocados a olhar ao redor, imaginando as histórias de todos aqueles que, seja por circunstância ou escolha, abrem mão dos próprios passados e encontram na rua a possibilidade de se reinventar.
Enquanto alguns desses corpos reinventados estabelecem a rua como destino final, outros, como Getúlio, são obrigados a confrontar histórias passadas, deparando-se com um contexto em que a luta pela liberdade é frequentemente tratada como loucura. Devolvidos, então, a um sistema que não lhes cabe, deixam pra trás histórias escritas pela metade, assim como casas imaginárias e afetos concretos, construídos em público, no seio da cidade.
Superando visão que trata a cidade como mero ponto de passagem, “Página 469” defende o espaço público como palco de histórias e personagens que estamos acostumados a não enxergar. Oferece-se como acontecimento público, no qual mesmo dramas tipicamente burgueses ganham novos significados e sentidos sociais.
Ao converter uma praça em sala de casa, converte também um drama supostamente íntimo em questão de interesse coletivo, reativando um senso de comunidade que muitas vezes se perde nos grandes centros urbanos. E findo o espetáculo de características nada espetaculares, nos deparamos com uma cidade de silêncios profundos, adensados por personagens reais, agora muito mais visíveis, e dezenas de outras histórias que, ao menos por enquanto, ainda não nos foram contadas.
(Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)