Por Soraya Belusi (*)
Os escritos de Bartolomeu Campos de Queirós têm aparecido com cada vez mais frequência como inspiração ou adaptação em espetáculos teatrais. Conhecido por sua capacidade de aliar simplicidade poética à profundidade filosófica, tais leituras acerca de sua obra literária têm em comum o fato de todas elas, cada uma à sua maneira artística, carregarem como como componente constitutivo (ético-estético-convival) o afeto. Em “Por Parte do Pai”, do Grupo Atrás de Pano, de Nova Lima (MG), ele se esparrama pelo tom da narrativa, na composição do espaço, nos cheiros e nos jeitos.
Foto Renato Shizido |
A peça nos mostra a visão de um menino sobre o mundo ao seu redor e seus dilemas filosóficos e existenciais. Antônio passou parte de sua infância na casa dos avós paternos e, ao narrar suas lembranças, descortina uma série de questões sobre o tempo e a vida. Para chegar aos palcos, as palavras de Bartô ganharam adaptação dramatúrgica de Carlos Rocha, que habilmente deu vida aos personagens “secundários” em cena, sem com isso perder as doses de lirismo e melancolia que o universo do escritor oferece, mas acrescentando dinâmica à narração e ao jogo teatral.
Assim como a narrativa-poética de Bartô, o espetáculo nos fala de um outro tempo e realiza em cena procedimentos para trazer a plateia para junto dele. Desde os ramos de ervas espalhados pelo chão ao redor da entrada, o tempo diluído da cena inicial, assim como a iluminação quase sempre no lusco-fusco, por intermédio das velas e das sombras.
As palavras do escritor têm na boca e no corpo dos atores o mesmo ar de brincadeira e despretensão que nas páginas de seus livros, sem trazer formalidade à prosa, tornando-a ainda mais agradável aos ouvidos. Mas, nem tudo é afeto na literatura de Bartô, que carrega mistério, religiosidade, certa melancolia. Mesmo que mais timidamente, esses elementos permanecem nessa adaptação teatral, simbolicamente representados por elementos como a presença do terno preto ou dos degraus escritos a giz com a tríade religiosa “Pai, Filho e Espírito Santo”.
O universo das casas do interior mineiro é recriado com elementos realistas como xícaras, rádio, comida de verdade, mas sem nunca fazer uma utilização puramente cotidiana deles. Essa mistura entre a sensação de um certo naturalismo e da manutenção da teatralidade (um exemplo é a cena em que os personagens tomam café) cria um dialogismo possível nas relações entre o real e o imaginário, o literário e o teatral, a empatia e a contemplação do espectador.
“Por Parte de Pai” tem sua beleza na pequeneza dos detalhes, na sua capacidade de preencher o real de fantasia e o sonho de concretude. Ou, como diz o próprio Bartô, “na fantasia tanto mora o vivido quanto mora o sonhado. Na memória não mora só a verdade. A memória também é o lugar da mentira. A memória é o lugar onde o vivido conversa com o sonhado”. (*)
(*) Depoimento de Bartolomeu Campos de Queirós, em entrevista concedida ao jornalista João Barile, publicada em 25-4-11 no Jornal O Tempo.
(*) Crítica originalmente publicada no site do XX Fentepp.