por Luciana Romagnolli
Os absurdos do ambiente de trabalho estão em pauta no teatro. Em Belo Horizonte, são a obsessão criativa do ator, dramaturgo e diretor Daniel Toledo, como visto em seu primeiro espetáculo, “Fábrica de Nuvens”, e em outros escritos esparsos que evidenciam a insignificância e a insensatez da rotina de funcionários de uma empresa fictícia.
Marco Nanini também se embrenhou pelos labirintos empregatícios no solo “A Arte e a Maneira de Abordar seu Chefe para Pedir um Aumento”, baseado na obra do francês Georges Perec, que critica a desumanização dos procedimentos empresariais. A história do empregado cujo desejo é paulatinamente minado no decorrer dos anos encontra humor na espiral acumulativa de redundâncias na qual ele submerge, sem saída. Essa estrutura textual rígida, contudo, domina a cena e lhe impõe limites. Um deles pode ser o inexistente espaço de ação e conscientização de um personagem reduzido à caricatura do bom subalterno: aquele que não indaga nem contesta.
Esta não é a postura da funcionária interpretada por Débora Falabella em “Contrações“, espetáculo dirigido por Grace Passô, com o Grupo 3 de Teatro e assistência de Ricardo Alves Jr. Às primeiras e menores demandas descabidas da chefe de RH (Yara de Novaes), ela reage com descrédito e alguma desobediência. O potencial desestabilizador do texto do britânico Mike Bartlett reside justamente nessa resistência previamente apresentada e no modo como as solicitações desmedidas da chefia pouco a pouco solapam qualquer resquício de racionalidade da protagonista, envolvendo-a em um processo irrefreável de desumanização no qual as exigências se tornam cada vez mais insanas, como é crescentemente identificável em relações de trabalho contemporâneas.
Outra vez, o texto determina as linhas de ação e sobressai aos demais elementos cênicos, os quais surgem como desdobramentos dos sentidos expostos ou subentendidos nos diálogos. Marca da diretora Grace Passô desde “Por Elise” e levada adiante neste trabalho pós-Espanca!, a materialização de metáforas sublinha esses sentidos e reverbera-os além da apreensão intelectual, dando um salto poético e fazendo com que afetem sensorialmente. Enquanto em “Os Ancestrais” a sensação de fazer parte de uma tragédia é sentida pelo espectador ao ter a perna alcançada pelas mãos dos soterrados em busca de sobreviventes; em “Contrações”, o espectador percebe na pele a metáfora climática da frieza requerida no ambiente corporativo.
Bartlett organiza o tempo por uma lógica própria, comprimido entre as sucessivas visitas da funcionária à sala de RH; ao que a direção e atuação respondem com uma partitura de ações centrada num simples por e tirar de casaco, que absorve as contrações do título e metaforiza a dor gerada pelos sacrifícios feitos pela carreira, cuja consequência é o encurtamento de seu horizonte pessoal. Essa lógica singular ditada pelo tempo torna-se motor das ações e põe a máquina textual pra funcionar, forjando uma atmosfera opressora. Débora Falabella delineia a gradual perda de tônus da personagem à medida que cede às pressões, em contraste à figura inabalável de Yara de Novaes.
Há um horizonte claro de sentidos evocados em cena, em direta comunicação com o espectador. Entre eles, o descontrole parece ser o mais difícil de ser representado formalmente dentro de uma estrutura arquitetada como é a da peça. Descontextualizada na cena, a bateria surge como estratégia de escape para a raiva e o desequilíbrio da protagonista, permitindo somente um descontrole controlado, a salvo de maiores riscos.
*Espetáculo visto em outubro de 2013, no CCBB São Paulo.