Por Julia Guimarães :::
As questões identitárias rondaram boa parte dos espetáculos da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Difícil passar ao largo delas em um festival com esse nome. A montagem “Noches Lejos de Los Andes… o Diálogo com mi Dentista”, que encerrou ontem (10) o evento, trouxe um viés bem peculiar ao tema, ao unir humor espirituoso e uma compreensão aguda da condição do imigrante. E é justamente esse tratamento que colabora para o trabalho do GRRR (Grupo Risos, Raiva e Resistência) brincar com lugares-comuns do pensamento sobre identidade.
Escrito, interpretado e dirigido pela argentina Susana Lastreto Prieto, radicada na França desde os anos 1980, “Noches Lejos de Los Andes…” narra as desventuras da própria artista ao migrar para Paris. Ao contar essa história, aposta numa encenação econômica: utiliza apenas duas luminárias, um pano purpurinado preto e uma mala em cena.
Seu principal recurso de linguagem é o diálogo como a musicista Annabel de Courson, que usa um bandoneón para tocar a trilha sonora do espetáculo, criando uma atmosfera próxima à dos filmes de Fellini, cineasta adorado pela protagonista. É a musicista que também dá corpo a alguns dos personagens citados no monólogo de Susana, como o seu gato de estimação parisiense e alguns dos homens com quem ela se relaciona na nova cidade.
Com inteligência e carisma, a artista nos conta dos sucessivos “perrengues” vividos na capital francesa, tão comuns a qualquer imigrante, especialmente na Europa. Embora em diversos momentos direcione a fala para o público – e jogue metateatralmente com suas expectativas e imaginação – seu principal interlocutor é o dentista Toledo, com quem reclama da vida enquanto sofre com o tratamento de dentes.
A protagonista brinca com esse imaginário da imigração que projeta no novo país um destino típico das mais otimistas ficções. Seu gato, por exemplo, ganha o nome de Espe, redutivo para “Esperança de um Futuro Melhor”. No ideário da protagonista, estão também presentes os contos de fadas argentinos, nos quais as princesas casavam-se sempre com príncipes de países longínquos.
A realidade, porém, está longe do esperado. Morar num quarto de 6m², ser camareira de hotel ou não ter dinheiro nem para comprar o bilhete do metrô são algumas das dificuldades relatadas pela personagem. No entanto, em momento algum ela sente piedade de si ou se coloca o lugar de vítima. Pelo contrário, parece ter prazer em rir das próprias contradições de sua escolha.
Ainda assim, sua crítica sobre a maneira como o francês lida com o imigrante aparece na dramaturgia, embora nunca mostrada como face única da realidade vivida. É o caso de quando relata o tratamento diferenciado aos imigrantes europeus e não europeus ou sobre o guarda do metrô que despeja toda a sua xenofobia na latina que não tinha o bilhete.
Susana Lastreto Prieto também não teme ser politicamente incorreta. Usa os termos ‘primeiro’ e ‘terceiro mundo’ sem medo de ofender, com a legitimidade de quem transita pelos diferentes territórios e pode brincar com isso. Típica integrante de uma geração libertária, fala de sexo de maneira totalmente despudorada e não pensa duas vezes ao dispensar pretendentes que insistem em levá-la, como passeio romântico, a uma certa região da França demasiadamente careta.
De modo semelhante, subverte questões de identidade quando afirma, por exemplo, não ter raízes, e sim, pés. Embora não negue as influências dos Andes na sua vida, busca não reduzir-se a elas, daí preferir a imagem dos pés. É o caso, por exemplo, de quando conta que só foi começar a tomar o tradicionalíssimo mate em Paris, talvez um reforço cult ou nostálgico daquela identidade aos olhos do outro.
Já nas passagens que espetáculo busca nuances mais sentimentais – por exemplo, quando a protagonista canta – algumas delicadas reflexões sobre as angústias para além dos territórios surgem nas letras de Hugo Paviot. A narrativa da relação com a família, com os parentes já falecidos, com a irmã desaparecida após ser levada pela polícia argentina também criam pausas no humor que prevalece no espetáculo.
Na descoberta de que seu destino extraordinário é contar histórias, Susana Lastreto Prieto constrói uma abordagem da imigração de quem tem aguda compreensão de causa. Contribui para dar um testemunho perspicaz sobre o que é ser um latino-americano na Europa.
Na maior parte do tempo, contudo, seus dilemas vão além das questões territoriais. Especialmente quando fala da sua solidão, que, se por um lado, tem relação direta com o ato de migrar, por outro, é atemporal e universal. “Em que idioma é menos doloroso viver?”, pergunta-se. Ao tocar em temas profundos com simplicidade e precisão, a artista faz de seu “Noches Lejos de los Andes” um presente ao espectador. De tabela, contribui para dar um bem-humorado desfecho à IX Mostra Latino-Americana de Teatro.
.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Valmir Santos, do Teatrojornal, aqui.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.