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Crítica da performance cênico-musical Sol à meia noite, assistida no dia 14 de julho, no Galpão Cine Horto, como parte do projeto Ressonâncias, idealizado pela artista e pesquisadora Graziele Sena
Por Guilherme Diniz
Amadou Hampâté Bâ, em seu clássico texto, A Tradição Viva, nos ensina que, para muitas sociedades africanas, nomeadamente aquelas localizadas ao sul do Saara, a palavra, dotada de um caráter sagrado, está vitalmente ligada ao ser humano. O sábio malinês entende que o verbo, nestas cosmopercepções, assume funções diversas e indissociáveis (religiosas, epistemológicas, estéticas, lúdicas, etc.), constituindo toda a existência: “a tradição oral conduz o homem à sua totalidade […] um mundo concebido como um Todo, onde todas as coisas se ligam e interagem”. Hampâté Bâ ainda ressalta que a fala possui a capacidade de fazer vibrar (este é exatamente o termo utilizado por ele) as dimensões criativas do ser humano. “Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação”. Não estamos, pois, diante da palavra apenas em sua acepção vocabular. Contemplamos tanto a sua amplitude sonoro-acústica, quanto a sua natureza movente, como propulsão criadora.
De quando em vez, a sabedoria de Hampâté Bâ me vinha à mente enquanto eu adentrava na performance Sol à meia noite, de Graziele Sena e Luciano Mendes. Neste trabalho, delineado por uma atmosfera ritualística, o poder imagético, sonoro e mágico das palavras se justapõem. Importa não apenas o texto proferido, este, aliás, largamente lírico e metafórico, mas sobretudo a sua elocução, isto é, os modos de dizer. No gesto de Graziele, a palavra, ora na fala, ora no canto, é redimensionada e explorada pela sua elástica voz. A ação vocal é um princípio fundamental aqui, pois é a partir da vocalidade que todos os elementos da cena são interligados e ativados. É com a voz, em distintos registros, que a performer cria ambiências místicas, evoca presenças, penetra no espaço e estabelece relações múltiplas com quem a assiste. O som se apresenta, de fato, como matéria a ser investigada e, nesta cena, ele tem, por assim dizer, atributos táteis que vão nos atingindo, acima de tudo, pela voz da atuante.
Graziele Sena passou quase uma década desenvolvendo pesquisas no Workcenter de Jerzy Grotowski e Thomas Richards, com o qual se apresentou mundo afora. Este não é um mero pormenor. Lembremos que principalmente em suas últimas fases, do Teatro das Fontes até a Arte como Veículo, o encenador polonês, ao lado de colaboradores e colaboradoras de diferentes partes do globo, investigou, de maneira radical, os muitos aspectos expressivos dos cânticos de tradição (em especial aqueles de matriz africana e afro-diaspórica) no trabalho do artista cênico[1]. Ao mergulhar nestas sonoridades e musicalidades, o performer poderia alcançar vários níveis de percepção e consciência de si, abarcando “o corpo, o coração e a cabeça”, para ficarmos com seus termos.
Por exemplo, na célebre conferência Você é filho de alguém, de 1985, Grotowski, valendo-se de uma linguagem bastante alusiva, discute algumas possibilidades estéticas e éticas para a edificação de uma prática artística fundamentalmente livre, rebelde, aversa aos limites superficiais, diletantes e mercadológicos da sociedade moderna e industrial. Ao contrário disso, ele propõe uma concepção vertical, similar à postura de alguém que escava um poço, realizando um trabalho artesanalmente profundo de orgânica e precisa reflexão/criação sobre si próprio, sua corporeidade, sua história, mas não por uma via individualista e/ou narcísica. A experimentação com os cânticos tradicionais proporciona ao performer acessar intensamente certas questões relativas às suas linhagens, pertencimentos e, em suma, à sua ancestralidade. Quem foram as pessoas que entoaram estes cânticos antes de você? Como as pessoas alcançam seu corpo ancestral? Estas são algumas das interrogações que permeiam o seu pensamento. Além do mais, Grotowski se mostrava grandemente interessado pela qualidade vibratória da voz e do som, suas ressonâncias no espaço e no corpo.
Em boa medida, tudo isso transparece em Sol à meia noite. Graziele Sena executa vários cantos afrorreferenciados, experimentando ágeis e distintas modulações vocais, esquadrinhando alturas, intensidades e timbres como quem molda o som. As suas transições entre tonalidades agudas e graves, límpidas e ásperas, sussurradas e fortes orquestram também humores inconstantes que vão da exaltação ao lamento, percorrendo um amplo gradiente de afetações. Há um recurso vocal, intensamente utilizado pela performer, que se assemelha a um vibrato. Em cena, vemos e ouvimos as dinâmicas ondulações sonoras manejadas por Graziele. Essa peculiaridade vibrátil (mencionada por Hampâté Bâ e por Grotowski) irradia por todo o espaço, preenchendo-o com as presenças evocadas pela artista. Os instantes de silêncio, que, por sinal, poderiam ser mais pontuados, têm o seu peso, porque não apenas sublinham os elementos sônicos, mas acrescentam algo crucial em trabalhos desta natureza: uma sutilíssima camada de mistério, segredo, tudo aquilo, enfim, que habita antes a intuição do que a decodificação.
Graziele, uma mulher negra, reverencia tantas outras que antecederam os seus passos. Dentre as muitas paisagens construídas pelo seu texto, sobremaneira poético, germina a imagem de mulheres cansadas, mas não menos ávidas pela vida, pulsantes, recheadas de possibilidades. Nos símbolos textuais (por vezes nos lembram orikis), nos cânticos entoados e nas múltiplas vozes criadas por ela, a vemos efetuar uma consistente reflexão sobre sua ancestralidade, tomando-a inventivamente como princípio criativo, manancial estético de formas, sonoridades, vocalidades e simbologias.
A ênfase até aqui dada às propriedades vocais não nos deve induzir a uma separação entre as dimensões corporais, orais e sonoras. Isso não existe na performance em questão. Em verdade, presenciamos uma articulação indivisível entre gestualidade e cantoria. A performer se desloca continuamente pelo palco, manipula diferentes objetos do despojado cenário (as flores, a cachaça, um pequeno castiçal etc), explora posturas e qualidades de movimento instáveis. Em todo esse processo, a voz, a palavra e os cânticos se fazem presentes. Cada nova gesticulação ou movimentação gera também possibilidades outras de ressonância. Uma ação imprevista vem acompanhada de uma vocalização que reverbera por todo o corpo. Grotowski chega a dizer que “é sempre o canto-corpo, nunca é o canto dissociado dos impulsos da vida que passam através do corpo”. No âmbito das culturas negras diaspóricas, Leda Martins não nos deixa esquecer que:
“As culturas africanas transladadas para as Américas encontravam na oralidade seu modo privilegiado, ainda que não exclusivo, de produção de conhecimento. Assim como para os povos das florestas, a produção, inscrição e disseminação do conhecimento se davam, primordialmente, pelas performances corporais, por meio de ritos, cantos, danças, cerimônias sinestésicas e cinéticas. […] Grafar o saber não era, então, sinônimo de domínio de um idioma escrito alfabeticamente. Grafar o saber era, sim, sinônimo de uma experiência corporificada, de um saber encorpado, que encontrava nesse corpo em performance seu lugar e ambiente de inscrição. Dançava-se a palavra, cantava-se o gesto, em todo movimento ressoava uma coreografia da voz, uma partitura da dicção, uma pigmentação grafitada da pele, uma sonoridade de cores (grifo meu)”.
É este, portanto, o campo de trabalho desta performance, ou seja, uma integralidade cênica, formada por dimensões coreográficas, verbais, sonoro-musicais, físicas e etéreas. Nesse sentido, é fundamental a participação do músico Luciano Mendes, que atua do início ao fim do espetáculo. O que me parece mais destacável em Luciano é o fato de que sua contribuição não se resume a um acompanhamento musical. A presença do instrumentista elabora um verdadeiro diálogo com as ações de Graziele. As sonoridades extraídas da cabaça, do atabaque e do udu (este último é singularmente encantador) envolvem toda a performance, perfazem contrapontos e harmonias, ecoam na movimentação da performer, imprimindo ritmos e pulsações que, fundidos nos gestos, arquitetam variadas temporalidades.
Fotos de Poly Acerbi.
Sol à meia noite compartilha, inclusive nominalmente, alguns importantes pressupostos com o belíssimo espetáculo Meia noite, concebido pelo artista pernambucano Orun Santana. Nas duas criações, seus respectivos idealizadores, imersos em uma meticulosa pesquisa artístico-cultural, encaram as tradições negras como elementos criadores de visualidades, coreografias e musicalidades que reorientam a cena. Santana investiga a capoeira, se inspirando na convivência com seu pai, o mestre Meia-Noite, cofundador do Centro de Educação e cultura Daruê Malungo, na periferia do Recife. Em ambos os trabalhos, a memória cultural, individual e coletiva, das corporeidades negras, é a base do pensamento criativo. Pode-se ainda frisar a relevância da iluminação que, neste par de obras, enfatiza o volume, a densidade e as movimentações do corpo, além de sugerir emanações mágicas, puros sortilégios visuais.
Em um determinado momento, Graziele Sena sobrepõe temporalidades ao se referir às mulheres, forças, imagens e símbolos , dizendo que “Eu sou porque fui e re-fui antes. Do mesmo modo eu serei e re-serei novamente”. Aí está, de certo modo, uma condensação de Sol à Meia Noite, pois o vigor dos cânticos tradicionais africanos e afro-diaspóricos, trazidos pela performer, reside fortemente no seu encantamento que reatualiza e presentifica tempos idos e vindouros, ancestres e entidades que circulam nas veredas da memória. Um “eu” composto por inumeráveis vozes, seres e lugares. Nesse ponto, o título do texto de Amadou Hampâté Bâ, A Tradição Viva, tem muito a dizer a uma mentalidade branco-eurocêntrica que desmembra, de maneira hierarquizada, os saberes tradicionais da vida contemporânea, como se as tradições não se reinventassem continuamente, como se elas não articulassem estratégias de transformação e de rearranjo até mesmo para a sua sobrevivência, entre continuidades e rupturas. Sol à meia noite é parte desse fluxo nos quais as tradicionalidades são vivas e fazem viver.
FICHA TÉCNICA
Direção e Concepção: Graziele Sena
Músico-Performer: Luciano Mendes
Orientação Artística: Guilherme Kirchheim
Iluminação: Marina Arthuzzi e Tainá Rosa
Produção: Marcela Rodrigues
Gestão Financeira: Simone Rosa
Assessoria de Comunicação: Bramma Bremmer
Social Media: Natan Vianna
Design Gráfico: Bia Perdigão
Registro Audiovisual: Daniel Ferreira
Fotografia: Poly Acerbi
Pesquisa: @isabelcasimira, @maedangodyahongolo, @lindinalva.barbosa.9 e @cicideoxala
[1] Estudiosos brasileiros e estrangeiros como Juliana Trasel Martins, Giuliano Campo, Luciano Mendes de Jesus e Sayonara Sousa Pereira, Jane Milling e Ley Grahan, analisam certas relações estabelecidas entre Grotowski (e seus continuadores) e as tradições afro-diaspóricas, discutindo tópicos como apropriação cultural, ética etc. De uma ponta a outra, não se vê grandes consensos quanto a esta faceta do trabalho de Grotowski, embora o próprio encenador tenha demonstrado autocrítica com relação a tais diálogos interculturais.