Crítica a partir da performance “Outras Rosas”, de Soraya Martins, apresentada em 26 de março de 2017 dentro da Semana do Teatro no Galpão Cine Horto.
— por Mário Rosa–
Há muitas Rosas por aí. Sim, elas, potências de certo negativo, como veremos, se proliferam e experimentam movimentos que performam a resistência e abrem a contrapelo pro ressoar da cordialidade à brasileira e do nosso racismo de cada dia.
Um corpo, uma presença, uma voz que repete uma frase.
Um corpo, uma mulher, uma mulher negra sentada numa cadeira.
O corpo, a mulher negra, sentada, sempre sentada, a frase repetida (não se sabe bem o que ela diz, pois fala em outro idioma) com algumas variações.
O corpo, a mulher negra, sentada, sempre sentada, a frase repetida (em outro idioma) e a interrupção da passagem.
Mas o que pede passagem? A sua palavra? A sua voz? A sua presença? O seu posicionamento, marca de certa insistência? Ou o fluxo de espectadores num dia de peça?
Muitas Rosas por aí, e essa Rosa lá, plantada, insistindo na sua marcação estrangeira, estranha, por vezes imperceptível, numa figuração identificável e deslocada:
“é performance?”
“quando começa?”
“já começou?”
“o que ela diz?”
“o que ela diz me interessa?”
“faz parte da peça?”
Dos movimentos e disposições comuns num espaço cultural que recepciona uma performance ao incômodo (ou curiosidade) causado naqueles que se preparam em espera para uma fruição artística não bem ali, Soraya Martins evoca o gesto afirmativo da negação de Rosa Parks. Uma evocação que não se resume a uma homenagem, talvez possamos falar da experiência que investiga o corpo negro, a posição deste corpo negro em certos ambientes sociais, sua visibilidade e a palavra encorpada, que intenciona furar a parede grossa da indiferença. Corpo, voz e palavra, portanto, que recuperam ativamente a memória de um gesto de resistência: “Eu não penso que deveria ter que me levantar”.
“Outras Rosas” faz parte do processo de pesquisa de Soraya Martins e do dramaturgo Anderson Feliciano, que já experimentaram poeticamente a força do gesto de Rosa Parks na 5ª edição do projeto Janela de Dramaturgia[1]. Naquela ocasião, a proposta de escrita performativa de Anderson Feliciano e sua leitura com outros artistas colaboradores buscou instaurar um campo expandido e variado da voz e da palavra que pudesse abrir pras multiplicidades das corporalidades negras.
A busca desses artistas/pesquisadores, artistas/pesquisadores negros, encontra em “Outras Rosas” a possibilidade do cultivo tenso, tateante e persistente de investigação, com especial atenção aos gestos históricos de resistência, que se atualiza em novos posicionamentos, ao corpo como campo de criação e expansão de singularidades, à memória como potência de fabulação e ação e, como afirma a artista portuguesa Grada Kilomba, “às narrativas que foram silenciadas e como nós conseguimos chegar à voz, e como conseguimos dar voz à nossa história, ou recolher a nossa história, que está fragmentada“[2].
Na “Outras Rosas” realizada na Semana do Teatro, no hall de entrada do Galpão Cine Horto, num domingo, dia de peça (“2×2=5 Homem do Subsolo”), ela, a mulher plantada nas profundas superfícies, permanece sentada. Mexe os cabelos crespos, olha para os lados, para frente, tem uma postura tranquila, não parece esperar nada, não parece cobrar nada, não parece estar a serviço de nada. Está lá. Algumas pessoas sabiam que era uma performance ou que estava para acontecer: esperavam, observavam. Outras, que estavam à espera do início da peça passavam, estranhavam, se distanciavam e também observavam.
O corpo, a mulher negra sentada, sempre sentada, a frase repetida (em outro idioma) e a interrupção da passagem.
Algumas pessoas que a abordaram para perguntar onde era a bilheteria ou o banheiro tinham como resposta: “eu não penso que deveria ter que me levantar“ em italiano.
– “io non penso che dovrei alzarmi”
A frase era dita e repetida, com algumas variações e ênfases, sem contudo soar agressiva. Era a afirmação decidida de um posicionamento, que precisava ser repetida, ocupar aquele espaço, chegar às pessoas que se aproximavam. Alguns pediam para que ela repetisse a frase e, diante do não entendimento, se afastavam.
O tempo passava e ela e eles lá: sentada, a mão no cabelo, a fala, os curiosos, os espectadores da performance, a espera de todos, o desinteresse, o incômodo, a interrupção da passagem, o burburinho do antes da peça.
O que Soraya sustentou durante uns quarenta minutos foi a atitude de permanência naquela cadeira, mantendo a altivez de ali ficar a repetir uma recusa que parecia se referir a um passado que já dura muito tempo. O seu “preferiria não”, ao contrário do personagem Bartleby do conto de Herman Melville, não colocava em xeque a ordem de mundo administrado, mas expunha a latência da memória de um gesto de recusa e deixava entrever como isto repercutia no seu corpo e naquele lugar da ação. A frase repetida em italiano soava como se criasse um entorno sonoro muito sutil de estranhamento, de afirmação, de distância, de segurança, de vontade de comunicação e de visibilidade.
Quem abre passagens?
Quando o público segue em fila para a apresentação da peça e passa por ela, que permanece a insistir em não se levantar, surgem questões sobre a potência deste trabalho, seus limites no que ele tem de demonstrativo de uma situação social já sabida e o que ele ainda consegue sutilmente expor da nossa cordialidade, do nosso jeitinho dissimulado de ignorar as pedras no caminho, em contextos socais aparentemente “abertos” aos devires minoritários.
Uma Rosa no caminho, figura estranha, incômoda, páginas épocas páginas épocas, pedra, dureza extrema.
Ficar plantada lá é a sua força, expor as tentativas de capturas por meio da linguagem e apontar caminhos de deserção também.
Outras mobilizações, de muitas possíveis e desejadas, nas espirais do tempo que felizmente não apenas concilia.
Outras Rosas…
Elas estão por aí, cada vez mais variadas e variantes, se fazendo notar, se fazendo pedra, se fazendo Rosa. Esteve lá também.
[1] Leitura dramática do texto Outras Rosas de Anderson Feliciano, ocorrida em 13 de setembro de 2016. Direção: Ricardo Aleixo. Leitores/performes: Anderson Feliciano, Mario Rosa, Sabrina Rauta, Soraya Martins.
[2] A descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba. Entrevista de Grada Kilomba realizada por Suely Rolnik. ARTE! Brasileiros. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2016/09/o-conhecimento-e-colonizacao/. Último acesso: 05/04/2017.