_ Clóvis Domingos _
Crítica escrita a partir da peça Crowd, de Gisèle Vienne (França), vista na MITsp 2020
Multidão (Crowd), peça da artista franco-austríaca Gisèle Vienne, que abriu a 7ª MITsp no Auditório do Ibirapuera, é um trabalho hipnótico e instigante, que propõe aos espectadores uma série de jogos de percepção pela subversão do real. O palco, que aos poucos será tomado pela presença e estranha agitação corporal de um grupo de 15 jovens, encontra-se no início do espetáculo timidamente iluminado, feito uma planície abandonada e forrada apenas de terra e garrafas plásticas. Numa dimensão fantasmagórica, há algo de insólito que se prenuncia a cada aparição dos bailarinos ao adentrar esse espaço trazendo consigo suas bebidas para a realização de uma festa techno.
Esse evento festivo é marcado pela estilização dos movimentos dos dançarinos que ocorre por lentidões, acelerações, fragmentações, repetições, dispersões, composições e contraposições entre gestos e trilha sonora. Como se fossem marionetes, os corpos reagem conforme os estímulos sonoros propostos e, por vezes, os desobedecem através de pausas incisivas, o que causa significativas interrupções. Nessa deformação, tempo e espaço se alteram e podem ganhar mais densidade. Como espectadores vivenciamos a duração de uma festa com seus momentos de pico e euforia alternados com cansaço e repouso. Há também algumas partes nas quais os atuantes congelam como se transformassem em esculturas para que alguma outra singularidade pudesse assim se manifestar e, dessa forma, contrastar com a imobilidade conjunta estabelecida.
O mecanismo escolhido pela encenadora parece priorizar a irrupção de um certo estranhamento e incômodo destinados aos espectadores, ao mesmo tempo que os convida a se inserir numa outra dinâmica na qual eles possam completar as ações que ficaram suspensas.
Nesse espetáculo, a festa rave se configura como uma espécie de efervescência coletiva que oscila entre prazer, sensualidade, violência e êxtase espiritual numa dança sempre contínua e que parece não ter fim. Apresentado a partir de tableaux vivants (quadros vivos), o trabalho provoca deslizamentos perceptivos, isto é, ora invade nossos sentidos, ora abre possibilidades de criação e produção de imagens simbólicas potentes. Seria Multidão (Crowd) um trabalho para se experienciar e se deixar afetar de diferentes modos ou haveria algo ali a ser decodificado? Ou seriam as duas coisas?
A coreografia desse ritual festivo pagão segue um rigoroso desenho em sua execução, como uma tela que vai sendo pintada minuciosamente ao vivo, e que nos convoca pelas batidas das músicas eletrônicas e a celebração efusiva dos corpos. O largo tempo destinado a contemplar o que se passava em cena de alguma maneira me aproximava e distanciava dali, abrindo vazios num movimento de vaivém. Impossível ficar imune a esse contágio.
Um ponto a ser destacado nesse espetáculo é sua capacidade de abstração e com ela a liberdade de se poder construir diferentes narrativas, isso num momento no qual nosso teatro tem primado pelo discurso direto como forma de arte política. Mas a possibilidade oferecida por esse trabalho de se conviver com as imagens em aberto e de se dar tempo para ouvi-las e elaborá-las, de acordo com sua vontade, não seria uma política da imaginação?
Ainda que em alguns momentos a nossa atenção possa se prender a algum bailarino específico, a pulsação coletiva parece ser a tônica mais forte, daí podemos pensar na ideia de uma multidão, isto é, a ausência de um rosto ou subjetividade. Para mim seriam forças em ebulição, formas anônimas animadas que explodiriam em desejos por conexões efêmeras. Corpos em combustão, lentidão e relação. Uma multidão capaz de mobilizar afetos, garantir participações e renovar energias a partir de um vetor em comum.
Com esse espetáculo é possível também pensar a festa como dispêndio e gesto de resistência numa sociedade pautada pela excessiva produção, pela lógica do consumo e da utilidade. Na contramão disso tudo, em seu aspecto lúdico e agonístico, a festa prezaria pelo ócio, pela alegria e pelo sacrifício. Aqui se ganha pela perda. Seria a festa hoje uma necessidade vital para as sociedades contemporâneas deprimidas por tanto esforço, cansaço e exploração? E se os DJs pudessem ser considerados como os novos xamãs a nos seduzirem com seus mantras eletrônicos? Para muitos de nós, diferente de um instrumento de alienação, a festa se revela como uma busca nostálgica e ancestral de uma experiência num tempo mítico e numa vida tribal.
Em Multidão (Crowd), esse horizonte parece estar não apenas apontado, mas corporificado. Nessa dança pictórica, os corpos ardem e queimam. Mas será que ainda que dancem juntos, se beijem, se enfrentem, estabeleçam aproximações e afastamentos, esses jovens de fato se reúnem? Na rave, ainda que todos estejam juntos, cada um parece dançar do seu jeito, e o que embala, talvez, seja a solidão.