– por Clóvis Domingos –
Fotos de Raquel Carneiro
Crítica a partir do espetáculo Projeto Maravilhas realizado pela Plataforma BEIJO.
“Períodos de convulsão são sempre os mais difíceis de viver, mas é neles também que a vida grita mais alto e desperta aqueles que ainda não sucumbiram integralmente à condição de zumbis – uma condição a que estamos todos destinados pela cafetinagem da pulsão vital. Vale assinalar que em sua dobra financeirizada, o regime colonial-capitalístico exerce sua sedução perversa sobre o desejo cada vez mais violenta e refinadamente, levando-o a se entregar ainda mais gozosamente ao abuso. Nesse grau de expropriação da vida, um sinal de alarme dispara nas subjetividades: a pulsão se põe em movimento e o desejo é convocado a agir. E quando se logra manter em mãos as rédeas da pulsão, tende a irromper-se um trabalho coletivo de pensamento-criação que, materializado em ações, busca fazer com que a vida persevere e ganhe um novo equilíbrio. Por isso, momentos como este de agora são sempre também os mais vigorosos e inesquecíveis”.
(Suely Rolnik. Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada, N-1 Edições, 2018, p. 25.)
Escrevo este ensaio crítico num enorme esforço de romper um certo anestesiamento, uma tristeza profunda, as palavras afogadas, uma angústia gerada nos últimos dias com a eleição no Brasil de um presidente que desprezou o debate e o diálogo públicos e que, com seus discursos de salvação messiânica, mensagens de ódio e intolerância, antes mesmo de tomar posse, já deixou claro seus inimigos e alvos principais: a Educação, a Cultura, a Liberdade de Expressão, o Pensamento Crítico, os Direitos Sociais, o Exercício Democrático. Uma política cafetina a alimentar e engrossar o caldo de um horizonte sombrio no qual o fascismo contemporâneo a cada dia se revela e nos ameaça em nossas possibilidades de existir, estar, amar, criar, transitar e falar. Mas, como afirma Rolnik: a vida precisa perseverar. Mais uma vez é chegada a hora das invenções: como mobilizar novos afetos, como criar mundos nos quais estejamos nos amparando (“ninguém solta a mão de ninguém”), como produzir ressonâncias que anunciem micropolíticas de resistência e insurreição?
Assisti ao Projeto Maravilhas na véspera das eleições, precisava me alimentar de arte, convívio, presença humana, imaginários poéticos e espaços de respiro, dentro desse panorama tão asfixiante que vem roubando nossa potência de estar vivo. O trabalho aborda as geografias da sexualidade, no caso, – as vivências homossexuais masculinas nos espaços – e entrelaça: história da cidade, memórias pessoais, autoescrituras ficcionais e corpografias urbanas subjetivas.
O cenário é composto por um jardim com muitas plantas e vasos. Começa reduzido e concentrado (como um esconderijo, já numa referência à prática homossexual), e com o passar do tempo, se expande, se abre, avança ao encontro do público, cria frestas e instaura pequenas ambiências. Se o desejo homossexual é muitas vezes vivido na solidão e clandestinidade, a montagem parece nos convidar a um florescimento existencial coletivo. Como criar laços e formar comunidades? Como não reproduzir os valores fálicos e agressivos provenientes de uma educação machista? De que forma apostar na suavidade como dispositivo relacional? Como encarar o macho-animal que habita em mim? Como substituir poder por potência? Como não internalizar o opressor? Como nos reeducar? Como falar de sentimentos? Como assumir fragilidades, as vivenciando como forças? Como superar nosso instinto de defesa dos afetos, essa nossa competição cotidiana, esse nosso medo das palavras?
A vida quer perseverar, não a morte. E Projeto Maravilhas fala da condição assassina que muitos homossexuais se veem obrigados a experimentar: matar o desejo, matar a possibilidade de amor, matar a construção de uma identidade positiva, matar nossa subjetividade, matar nossas poucas alternativas de realização, matar e, assim, secar a planta frágil e única que somos. Se a vida não persevera, os jardins se tornam artificiais e as árvores-existências não vicejam. Mas, como se afirma num momento do espetáculo: “Eu precisei matar para viver”. A sobrevivência física e até mesmo psíquica de muitos cidadãos homossexuais depende então de um crime. Ou de muitos crimes. No espetáculo, esses crimes são assumidos. “O meu parque é também um cemitério”. Mas esse ciclo será sempre perpetuado? Eis a questão que os criadores desse trabalho nos colocam. E a resposta é definitiva: não. A vida quer perseverar… E para isso precisamos conversar, escutar, acolher as diferenças, respeitar e sensibilizar: “Eu quero ver você”.
Ainda que, em sua estrutura, o espetáculo apresente camadas de um experimento cênico, sua força está numa dramaturgia (assinada por Marcos Coletta) que não abre mão do necessário enfrentamento das palavras, dos discursos padronizados, que opera por deslizamentos de sentidos, tensionando a presença de atores tão jovens frente a questões tão urgentes e pouco encaradas. O teatro articulado à vida e pela vida. A vida precisa perseverar.
A cenografia dialoga com o primeiro lugar evocado na dramaturgia: o Parque Municipal, palco de um crime homofóbico real que escandalizou a sociedade belo-horizontina nos anos de 1940 (tema do livro Paraíso das Maravilhas de Luiz Morando e que foi fonte de inspiração para o trabalho). Nos momentos seguintes do espetáculo, o jardim vai materializando e atualizando lugares de sociabilidade gay da cidade, como banheiros de shopping, saunas, cinemão, quartos etc. A homossexualidade é de fato vivida nos espaços domésticos e também públicos, num jogo de forças entre pertencimento, exclusão, visibilidade e proteção. Há um momento significativo no trabalho no qual podemos reconhecer que a maioria das saunas gays está localizada em ruas cujos nomes são de tribos e povos indígenas: Caetés, Tupis, Timbiras. Nesse ponto, se articulam, ainda que subterraneamente, questões sobre colonização, a fabricação de guetos, as dizimações, quem é ou não visibilizado, os chamados “involuntários da Pátria” na acepção de Eduardo Viveiros de Castro.
Aisha Brunno, Igor Leal, Bremmer Guimarães e Pedro Henrique Pedrosa têm uma atuação performativa. Os quatro atores são amigos que se revezam em cena e em discussões (ora leves, ora mais densas, ora com muito humor) sobre masculinidades, preconceitos, vida no armário, desejos, sonhos e medos. O espetáculo traz em seu bojo uma dimensão colaborativa na reunião dos criadores, com a direção de Cláudio Dias que recupera certa proximidade com os trabalhos da Cia Luna Lunera, me remetendo muito a Urgente. A dramaturgia de Marcos Coletta (integrante do Quatroloscinco Teatro do Comum) faz delicada costura entre depoimento pessoal e material poético. A cenografia de Thálita Motta funciona como uma instalação plástico-visual que, ao ser transformada pelos atores, se conecta à ideia de que a cidade é um espaço pelo qual se luta, se monta, se conquista, se organiza e se festeja. Como sustentar heterotopias?
A montagem tem uma atmosfera tropicalista dos anos 1970, lembra Caio Fernando Abreu e Gal Costa, oscila entre a leveza e o projeto de se criar um jardim mais afetivo e comunitário. Os tempos mudaram: avançamos ou retrocedemos? Mesmo com os aplicativos gays à nossa disposição, o que buscamos encontrar é atemporal: apenas um corpo? Ou um afeto? Um corpo sem afeto? Um corpo e uma história? Por que a gente se lembra mais dos lugares do que das pessoas? Alguém te habita? São muitas indagações propostas nesse trabalho, não há lição de moral, não há cartilhas a seguir, a insurreição aqui é poder falar, poder silenciar, rir, chorar, dançar, “dar pinta”, se contradizer. Um espaço de compartilhamento que me remeteu à ideia foucaultiana da homossexualidade como forma de amizade. “A gente vai plantar árvores em nosso Lar das Mariconas” – eis a promessa feita pelos jovens artistas já construindo seu jardim futuro.
A vida quer perseverar. A vida quer perseverar, apesar de. “Apesar de você amanhã há de ser outro dia”… A vida quer perseverar, quer revigorar, agora mais do que nunca. A vida quer perseverar e vingar nas ruas, nos bares, nas salas de aula, nos espaços de teatro, nas boates, nos beijos na boca. Eu quero ver você, porque a vida quer perseverar, quer romper o medo e a inércia. A vida quer perseverar! Maravilha é lutar por isso. Projeto Maravilhas a partir de agora é Projeto Resistências.
Espetáculo visto em 27 de outubro de 2018 na Funarte MG.
Ficha técnica
Direção e preparação corporal: Cláudio Dias
Dramaturgia: Marcos Coletta
Atuação: Aisha Brunno, Bremmer Guimarães, Igor Leal e Pedro Henrique Pedrosa
Iluminação: Marina Arthuzzi
Figurino e adereços: Thálita Motta
Cenário: Cláudio Dias e Thálita Motta
Projeto gráfico: André Victor
Operação de luz e som: Will Soares
Assessoria de imprensa: Bremmer Guimarães
Produção: Bruno Lélis
Apoio: Cia Luna Lunera, ENTRE – uma casa que se torna, Funarte MG, Galpão Cine Horto e Teatro Invertido
Realização: Plataforma BEIJO