— por Joyce Athiê (também conhecida como Gisele) —
Crítica a partir dos trabalhos apresentados na terceira noite do 17º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, realizado entre 15 e 18 de setembro de 2016, em Belo Horizonte (MG).
O que se viu na terceira noite do Cenas Curtas foi uma mostra de trabalhos potentes em suas linguagens, com alto nível de habilidades técnicas, formas e discursos. No público, percorrem os burburios da dificuldade de votar, uma grata indecisão.
A pergunta “Que lugar você ocupa?” que guiou o pensamento curatorial do festival presenteou o público com trabalhos que refletem temáticas políticas que também traduzem as variadas formas do como fazer teatro político nos dias de hoje. Os discursos e as reflexões geradas trouxeram a indagação sobre as fricções que causamos com o posicionamento em cena, como também modos de potencializar o encontro e o atrito. Para quem estamos abrindo uma conversa sobre aquilo que queremos falar? Se na política, o embate e o conflito são potencialidades da cidadania, estamos também no teatro promovendo conexões com saberes distintos, pensamentos e ideologias contrastantes ou falamos para nossos pares? Se o discurso é antifascista, para quem deve levá-lo a ouvir? Ontem, a pergunta que circulou no debate das cenas ganhou uma possível resposta do próprio público durante a apresentação de “Anti-Antígona”.
Assim como no texto de Eliane Brum “Black Blocs, os corpos e as coisas”, publicado na coluna do El País no dia 13 de setembro, que circulou na internet nos últimos dias, os mascarados vêm à cena sem maniqueísmos, defesas ou ataques à conduta. Vai dizer Brum: “Enquanto a destruição dos corpos de manifestantes pela Polícia Militar é naturalizada, a dos bens é criminalizada. Reafirma-se, mais um vez, que os corpos podem ser arruinados, já que o importante é manter o patrimônio, em especial o dos bancos e grandes empresas, intacto”. Se Brum vai apontar a marginalização da conduta dos Black Blocs – “inimigos do patrimônio público” – como uma forma de entender a complexidade dos valores priorizados na sociedade, “Anti-Antígona” vai, junto a este pensamento, abrir a reflexão sobre a violência, também por eles compartilhada na forma de resistência.
O sentimento de ódio, revelado em ataques homofóbicos, em estupros e na violência doméstica, no extermínio da juventude negra, nas repressões militares das manifestações e em brigas entre familiares nos grupos de WhatsApp, transparece na dificuldade de ouvir aquele que difere em ideologias. Ontem, nem mesmo pelo teatro foi possível conversar. O vermelho, o martelo e a foice revelaram novamente o medo por qualquer forma de mudanças estruturais no status quo. A fricção causada pela reação de um espectador que se levanta para ir embora sem, não antes de disparar seu ódio, revela a potência da cena, assim como também não nos deixar de pensar no público emancipado, capaz de elaborar sentidos e reagir a eles, embora, na ocasião, a reação carregue o mesmo discurso odioso que estava sendo refletido em cena.
“Anti-Antígona” cria imagens impactantes. O fogo, o sangue, o vidro, a mulher morta enquanto viva e a repetida imagem que já nos esquecemos, de um jovem, um viaduto e uma queda. O discurso de que o amor não é mais capaz de vencer essa disputa que está dada, trazendo à tona outras formas de lutas combativas, nos leva a pensar onde iremos chegar com tudo isso. A inversão se faz potente. Falaremos de ódio para falar de amor e, assim, provocar sobre o mesmo efeito que causam as diferentes ideologias carregadas por mãos que ferem e matam, sem, no entanto, refletir sobre a complexidade dos contextos e das formas de resistência. E, nesse sentido, a imagem da mulher, morta mesmo que em vida, vai dizer de todas as dores que deixadas por todas as formas de opressão, violência e ignorância. Estende-se do íntimo da imagem da mulher – talvez a mãe que perde o filho – uma imagem para a sociedade que está sendo soterrada enquanto pede por liberdade e justiça.
Em “A Terrível Planície de Kenótita”, há um carrinho de compras, alguns outros poucos elementos, um ator e uma cena gigante. E antes de mais nada, vale dizer do trabalho de Matheus Macena, em uma interpretação que apresenta forte domínio sobre o corpo, deslocamentos rápidos e repentinos que transitam entre ambientes de realidade e ficção em uma construção respeitosa de um personagem real, vivo e presente debaixo de marquises e viadutos. O corpo ali construído, de um morador de rua, se faz também um pouco circo e um pouco palhaço em acrobacias e contorções, em vigor físico que remete à resistência, também corporal, desses sujeitos.
A cena vai beber, como é dito, na escola da rua, cheia de histórias de vida, sonhos atropelados e invisibilidade. Há algo de poético que vai trazer um morador de rua dividido entre um mundo imaginário e a realidade, entre a vida que tem e o que quer esquecer ou, ao menos, dar menos importância para poder seguir. Colocar o foco nas possibilidades desejadas, de um futuro diferente, com sonhos e vontades de transformação.
Outro ponto é o abandono, no caso, paterno. E não seria possível deixar de lembrar as mães solteiras, também abandonadas, dadas a elas a responsabilidade solitária pela criação de um indivíduo. A carência paterna é lembrada e transmutada em um desejo de dar ao filho que virá a possibilidade de uma vida diferente, afetuosa e cheia de orgulho.
O personagem da cena é conhecido e popular. Está em todas as esquinas. Nos encontramos com ele cotidianamente. O solo, porém, cria um diálogo sutil que fica a cargo da plateia, pois é nela que está o interlocutor. Quem é a dona que oferece a quentinha? Quem é o condutor do veículo que dispara o carro contra o vendedor de livros? O que seria pensar em uma invisibilidade, a que o personagem não consegue nem imaginar? A cena repetida ao final vai ganhar outro significado, capaz de revelar pelo choque uma resposta possível. A morte daquele morador de rua, quem foi que viu? Interessante observar que o trabalho joga com diversas perguntas para o público sem fazê-las propriamente dito em cena. A responsabilidade compartilhada pelas mazelas sociais é dada também o espectador que tem a possibilidade de se deixar afetar por algo que vemos cotidianamente. E, o que é que fazemos? Não vamos fazer nada? A pergunta não é dita, mas é feita e isso abre a possibilidade de gerar na plateia um olhar mais atencioso para a questão que está sendo debatida.
Como sugestão para a cena, caso venha se tornar um espetáculo de longa duração, deixo como provocação os contrastes da rua e dos sujeitos que fazem dela moradia, das outras violências que ali ocorrem, dos perigos, das drogas e do álcool, de tudo o que, inseridos em um contexto de ausências e carências emocionais e materiais, tornam aqueles sujeitos animais ferozes em busca de sobrevivência. O que são eles capazes de fazer para resistir e permanecer em vida? Qual o sentimento que têm frente às desigualdades, injustiças? Quão duro se torna um sujeito diante de tanta dureza que lhe é oferecida?
A terceira cena da noite, “Pariré”, veio do interior da Bahia quase como uma síntese extremamente poética das diversas discussões que vêm sendo apresentadas no Cenas Curtas desse ano: a liberdade de ser, contra toda forma posta de opressão. É um grito doce que arranca suspiros do público e que não deixa de perder sua força e seu posicionamento mesmo quando tratado com delicadeza.
A farsa nos leva às páginas ou a filmes de uma fábula perpassada, apenas esteticamente, em outros tempos medievais. As personagens carregam nas corcundas uma metáfora quase bufônica quando, pelo corpo, revelam as transfigurações dos sujeitos impedidos de viver suas individualidades, seus sonhos e desejos.
Em questão, está a instituição familiar, primeiro solo formador e constituidor dos indivíduos. É entre uma avó/mãe e uma filha/mãe que se instauram os primeiros gestos que irão tolher o voo, posto dentro de uma gaiola logo ao nascer. O que revelam aqueles vários pés guardados dentro de um baú? Seriam eles uma ancestralidade também reprimida de percorrer o caminho da libertação?
Daquela instituição primeira a que representa a cena, abre-se uma gama de lugares sociais e políticos tão limitadores da expressão que, assim como o trabalho corporal da cena indica, será carregado também na matéria física. Como é a voz de um sujeito que teve ao longo da vida o direito da fala impedido nas instâncias de poder? Como caminha um indivíduo que, por necessidade de sustento, tem suas horas de vida exaustivamente dedicadas ao trabalho? Como cruza a rua uma mulher que é posta como objeto de olhares masculinos? Como o corpo carrega a opressão? O quanto pesa no peito o sonho interceptado?
Ao final, quando se espera que as asas voem alto, quando se deseja pegar carona naquele salto, há algo paralisa o final feliz e isso nos faz pensar no percurso que ainda precisa ser percorrido.
Por fim, se é para falar de incomunicabilidade, os atores/bailarinos de “Last Dance” dão ao público a vivência incômoda do silêncio que muito diz. O que fazer com ele? Quando é que a cena vai começar? O vazio traz a necessidade da conversa e do diálogo, como algo capaz de preservar as relações íntimas e afetivas, mas também – extrapolando – o convívio entre as diferenças formas de pensamento. Como chegar ao acordo sem a fricção do embate e do debate?
Referências bem conhecidas de um teatro mineiro que bebe nas heranças do trabalho da Cia. Clara, tangenciando o citado Caio Fernando Abreu, os encontros e desencontros do mundo contemporâneo, ganham outra dimensão quando vem imprimidas por um imbricamento, metalinguístico, entre a vida e a arte e os reflexos que se transpõem entre esses campos. A ficção é entrecortada pela realidade do casal assim como o corte é provocado pela participação especial de Sabará (técnico do Cine Horto), quando a produção entra no palco para encerrar aquela encenação, não antes de somar sentido a ela.
O olhar feminino também pode recair enquanto leitura sobre a cena quando se vê a figura da mulher em busca de uma conversa, uma forma para salvar a relação, assim como a empoderada decisão de ir embora. Ela está pronta. São os tempos líquidos novamente sendo chamados para refletir sobre a transitoriedade das relações e o abandono da preservação da intimidade separada pela fuga, pelo egoísmo e pela dificuldade de se reconhecer o que é preciso ser transformado. É como um chamado das relações íntimas como forma de refletir sobre as interações sociais. Vale também dizer do corte que o microfone utilizado pelos atores provoca, como uma outra camada de ambiente em que a conversa, rara entre eles, toma um caráter de espetacularização de uma intimidade feliz, até que aparece a ruptura também posta a público. Seria o microfone o Facebook?
O teatro e a dança, ao contrário da cena que se representa, dialogam e se completam em um belo espetáculo de movimentos que são também personagens ou estruturas narrativas do trabalho.