Crítica a partir do espetáculo “Tijuana”, do grupo Lagartijas Tiradas al Sol, do México
– por Soraya Belusi –
Imagens de ”Tijuana”. Fotos Escenas do Cambio, 2017
Santiago Ramirez é um operário. Trabalha em uma fábrica de tijolos na cidade de Tijuana. Vive em uma das regiões mais pobres da cidade mexicana, onde aluga um quarto em um pequeno barraco habitado por uma família de três pessoas. Como a maioria dos cidadãos de seu país, sobrevive com um salário mínimo. Gabino Rodriguez é um ator. Faz parte de um importante grupo teatral sediado na Cidade do México. Viaja o mundo mostrando sua peça no circuito dos festivais internacionais. Seu mais recente projeto é justamente dar vida a Santiago Ramirez. Não no palco. Neste, quem está é Gabino. Mas, na vida, quem existe de fato é Santiago. Ou seria o contrário. Provavelmente, os dois.
Não há onde se agarrar. A instabilidade é companheira do espectador em ‘’Tijuana’’, espetáculo da companhia Lagartijas Tiradas ao Sol, que se apresentou dentro da programação do FIND – Festival Internacional New Drama – Democracy and Tragedy, realizado no teatro Schaubühne, em Berlim, em março deste ano. A obra integra um ambicioso projeto intitulado La Democracia in Mexico e prevê a criação de uma série de espetáculos com o intuito de refletir e criar acerca da realidade mexicana e suas contradições.
É pautada no contraditório que se constrói ‘‘Tijuana’’. Uma dramaturgia – calcada em elementos dos teatros do real, documentário e performativo, aos quais irei perpassar de alguma maneira ao longo dessa escrita – que instaura no espectador uma experiência de crise, como definiu Victor Turner (1969. p. 95) citado por Erika Fischer-Lichte, no qual ‘‘o esbatimento do real e do ficcional, mesmo sendo único em cada caso, resultou no fato de transportar o espectador/visitante para um estado intermediário, um estado de liminaridade. Tal estado desestabiliza não apenas uma ordem de percepção, mas – ainda mais importante – o eu’’ (2013. p.31).
Esses espaços liminares compõem a estrutura de ‘’Tijuana’’. As noções de real e ficcional são borradas permanentemente, a representação é colocada em crise constante , o documental se fricciona com a possibilidade de existência do drama e a narrativa cênica é composta pelos materiais de registro de seu próprio processo. Gabino Rodriguez criou o espetáculo a partir de uma experiência real. Durante seis meses, ele se mudou da Cidade do México para Tijuana e se transformou em Santiago Ramirez, vivendo sob condições específicas que o afastaram do seu universo habitual. Permaneceu incomunicável enquanto trabalhava com um salário mínimo numa fábrica da região.
O espetáculo é justamente a narrativa artística dessa experiência. E isso, em si, já é capaz de provocar uma série de deslocamentos de percepção do espectador ao longo do espetáculo, na medida em que a encenação procura indagar as possibilidades de se colocar no lugar do outro, se trocar pelo outro, ser outro, atuar como outro, representar o outro. Onde se dá de fato a ficção neste caso? No palco, em que Gabino ‘’fingiria’’ ser outro, criaria um personagem, ou na vida, em que ele ‘’representou’’ para dezenas de pessoas com as quais cruzou cotidianamente? É permitido ‘’enganar’’ o outro? Na vida e no palco? Há ‘‘honestidade’’ na representação no teatro quando nós – plateia e performer – representamos personagens de um falso pacto democrático?
Toda a experiência de assistir, em Berlim, na Europa, a um trabalho que trata da exploração do outro promovida pelo sistema capitalista e pela falsa percepção de democracia que habita a desigualdade dos países latino-americanos – afinal, o México não vive situação assim tão diferente a do Brasil e da maioria nossos outros vizinhos –, foi muito mobilizadora e perturbadora no sentido de explodir os questionamentos. E por isso vale a pena narrá-la. O espetáculo foi apresentado no estúdio do teatro Schaubühne – uma sala menor, anexada ao prédio principal que estava sendo ocupado nos outros dias por ‘‘medalhões’’ dos circuitos internacionais de teatro, como Romeo Castellucci e Roger Bernat.
Cada espetáculo tinha seu preço, e ‘‘Tijuana’’ era dos mais baratos. Sei lá por que, ao menos não conscientemente, essa percepção me causou incomodo. Como se o espetáculo valesse menos, tal qual as pessoas que vivem como o ator Gabino Rodriguez experimentou por seis meses de sua vida. E por isso, por valerem menos – assim como eu, com o pensamento colonizado ainda em desconstrução, me senti diversas vezes diante dos alemães, ainda que estes não fizessem nada para que assim me sentisse –, eu, Gabino, os mexicanos e os alemães, todos nós, aceitássemos como natural que pessoas sejam capazes de viver com um salário mínimo. ‘‘Tijuana’’ só nos prova, com sua forma e conteúdo, o que já estamos cansados de saber: neste mundo desumano, na ordem que chamamos de democracia, uns valem mais que os outros, mesmo que finjamos que não. É a ficcionalização da própria noção de democracia. Vivemos uma tragédia.
Quando entramos no estúdio da Kurfürstendamm strasse, nos deparamos com um palco quase vazio. Ao lado direito da plateia, um homem está mexendo seu corpo sob um pequeno foco de luz. Pequenos objetos e uma cadeira estão próximos a ele, e, do lado oposto, há um telão. Ele constrói seu próprio palco com tijolos. Ali, narrará sua história. Ou melhor, a de Santiago, ou melhor ainda, sua história nos dias em que foi/representou Santiago. Sua matéria brutal de criação é o real. Ele aparece em forma de vídeos que gravou escondido enquanto habitava uma das regiões mais pobres de seu país. Anotava diariamente em uma caderneta as experiências do dia, notas estas que são projetadas no telão. No corpo, traz a memória do homem que dançava no barzinho ao qual frequentava às sextas-feiras após o expediente, onde gastava as últimas notas guardadas, para aquisição de um par de cervejas, que sobraram dos 85 pesos mexicanos diários que recebia de salário – p equivalente a R$ 15,30 ao dia ou R$ 459 por mês.
Onde está o real e o ficcional enquanto assisto a essa narrativa, me perguntava. A forma como o ator se coloca em cena só reforça esse sentimento, já que ele oscila entre narrar e performar, ser ele mesmo e representar a outro. O que é real? É esse momento aqui e agora do teatro em que eu sei que um ator está ali me contando uma história? Mas não é justamente o que ele viveu e não o que ele me conta que é real? Santiago Ramirez não é real? Ele é ficção? Mas como, se ele existiu, nem que seja por seis meses? Ele foi real pra muita gente. Mas o palco não é o lugar da representação? Mas Gabino representou mesmo foi na vida real, fingindo ser outra pessoa, não foi? Assim, permaneço num fluxo instável entre dois mundos, ou, como escreveu Fischer-Lichte, dando continuidade à citação que fiz no início deste texto:
‘‘Quando, durante um espetáculo, a percepção muda repetidamente e, devido a este fato, o espectador é frequentemente transportado a um estado entre as duas ordens, tal diferença perde cada vez mais sua pertinência e, ao contrário, a atenção do sujeito que percebe fixa-se na ruptura da estabilidade, no estado de instabilidade, na passagem. Quanto mais frequentemente o deslocamento aparece, mais o sujeito perceptor torna-se um viajante errando entre dois mundos, entre duas ordens de percepção. Neste processo, ele toma progressivamente consciência da impossibilidade de controlar essa passagem. Ele pode tentar, repetidas vezes, reajustar sua percepção à ordem de presença ou à ordem de representação. No entanto, notará rapidamente que, qualquer que sejam suas intenções, o deslocamento se opera espontaneamente e o propulsiona para um estado entre as duas ordens sem que ele queira ou possa impedi-lo’’ (2013, p.31).
A própria metodologia/procedimento de criação é questionável no meu entendimento. Ao mesmo tempo em que aprecio a disponibilidade/coragem do ator em tentar se colocar no lugar do outro, no sentido de vivenciar para poder falar da experiência vivida, me pergunto a validade de tal ação na medida em que ela é insuficiente por principio porque se colocar no lugar do outro nunca é sentir/ser o outro e porque ele implica outros seres humanos que se envolveram afetivamente com uma pessoa que acreditavam ser de verdade. Mas não era? Voltam as minhas incertezas. O próprio ator, em entrevista a um jornal mexicano, admite esta contradição, que, diga-se de passagem, é compartilhada em cena com o espectador em diversos momentos do espetáculo. “Contesto esse método da infiltração que é recorrente no cinema e no teatro – como se passar três dias com um motorista te desse o direito de falar por ele. Esta peça também é uma crítica a essas práticas artísticas que acreditam que aproximar-se de um mundo é suficiente para poder representá-lo. A realidade tem qualquer coisa de irrepresentável; ignorar isso chega a ser imoral ”, afirmou Gabino Rodriguez.
A precariedade com que vivem as pessoas obrigadas a se sustentar com tão pouco reflete-se na construção do espaço, em coerência com o conteúdo da obra. Os objetos de cena são elementos baratos, simples de se achar em qualquer lugar – o que é mais uma contradição, já que isso facilita, e muito, a circulação pelos festivais ao redor do mundo, fazendo-o assim parte de um seleto grupo de companhias ‘escolhidas’ para compor esse circuito. Os tempos e espaços da narrativa – o quarto no barraco, o trabalho na fábrica, a ducha no banheiro, a pista dançante do bar – são criados com poucos elementos, que são construídos e desconstruídos ao longo da encenação, reforçando seu caráter processual e de inacabamento.
‘‘Tijuana’’ insere-se em um panorama de produções teatrais contemporâneas que colocam em crise a noção de representação no teatro, tendo como aliados elementos diversos na construção de sua linguagem artística. Mas consegue ir além da qualidade inerente a tantos outros trabalhos que dialogam com essas questões ao conseguir transportar para o espectador o estado de liminaridade da qual a obra fala e da qual ela é feita. Não é apenas a representação no palco que está em crise. É preciso questionarmos a representação que propomos ao mundo. Se depender dos aplausos inflamados ao fim da sessão – o ator teve que voltar ao palco quatro vezes para receber o reconhecimento da plateia alemã –, algumas centenas de pessoas saíram do pequeno estúdio da ‘‘Kudamm’’ em estado de crise. Assim como eu saí. Assim como termino essas linhas.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FISCHER-LICHTE, Erika. Realidade e ficção no teatro contemporâneo. IN: SALA PRETA, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cenicas, ECA/USP, VOLUME 16, Nº 2, 2013 (p. 14-32)
FICHA TÉCNICA
Projeto de Gabino Rodríguez
Baseado em textos e ideias de: Gunter Walraff, Andrés Solano, Martin Caparrós
Direção adjunta: Luisa Pardo
Iluminação: Sergio López Vigueras
Cenário: Pedro Pizarro
Desenho de aúdio: Juan Leduc
Vídeo: Chantal Peñalosa y Carlos Gamboa
Colaboração artística: Francisco Barreiro