– por Clóvis Domingos –
Crítica a partir da leitura dos textos “O Time Perfeito” , de Adélia Carvalho, e “Se Não Houvesse Mais Ninguém no Mundo”, de Byron O’Neill, com a colaboração de Carol Oliveira, apresentados no Janela de Dramaturgia – Edição Especial Teatro para Crianças e Adolescentes.
Ao acompanhar as edições do Janela de Dramaturgia, percebo em mim uma maior abertura e amplitude para o desenvolvimento do exercício da escuta. Através da leitura dos textos dramatúrgicos pelas vozes dos atores, atrizes e autores, revelam-se a força das palavras, os jogos de linguagem, os gestos escondidos, as intenções poéticas, a nossa luta diária e incessante pelo diálogo e pela comunicação, enfim, os vazios e os plenos que habitam a “casa da palavra”. Somos seres de linguagem.
Abrir a “janela da escuta” atualmente, num tempo repleto de tantos discursos, informações velozes, excessivas polarizações e muitas agressividades, se constitui como um ato corajoso e necessário. Como provisoriamente abandonar esse lugar de faladores compulsivos, opinadores e comentadores nas redes sociais, e renunciar à posição de poder, permitindo que a linguagem, a experiência e a alteridade estejam em primeiro lugar?
Numa de suas crônicas, o dramaturgo Nelson Rodrigues afirma: “A maior utopia do homem é ser escutado”. Mas para escutar os outros é preciso fazer silêncio. E mais: despir-se de nós mesmos. Suportar ser visitado por ângulos e pontos de vista com os quais podemos não concordar, pois as falas do outro podem evocar aquilo que nos incomoda. Sim, é muito difícil escutar as pessoas com seus diferentes universos e desejos, mas a perda dessa capacidade tão preciosa ameaça ensurdecer e empobrecer nossas vidas.
A atual edição do Janela de Dramaturgia nos convida a escutar e nos encontrar com as questões e temáticas presentes na vida das crianças e adolescentes. Como crítico convidado, mesmo tendo lido antes os textos a serem apresentados, nada se compara à experiência de escutar “O Time Perfeito”, de Adélia Carvalho, e “Se Não Houvesse Mais Ninguém no Mundo”, de Byron O’Neill, com a colaboração de Carol Oliveira. Como sujeito de escuta, o público presente na leitura desses textos com claras abordagens juvenis, também pôde escutar musicalidades, silenciamentos, poemas, memórias e incômodos.
O primeiro texto apresentado e escutado foi “O Time Perfeito”, de Adélia Carvalho. Uma dramaturgia que se apresenta como uma narrativa dramática que aborda questões como bullying, sexualidade, futebol, religião e suicídio. O texto, com latentes camadas complexas, retrata a vida numa cidade interiorana e conta de forma densa, e algumas vezes metafórica, o drama do adolescente Vítor ou Vitinho, excelente jogador de futebol que irá se descobrir transexual. Será possível conciliar uma profissão declaradamente masculina com um desejo e identidade femininos? Certamente existe aí um grande conflito. Mas a autora explora pouco e timidamente o conflito subjetivo do personagem principal frente às normas e regras estabelecidas tanto para o que se espera de um jogador de futebol em ascensão, quanto para a realização afetivo-sexual de uma pessoa transexual. No texto, Vítor é mais “falado” pelos outros personagens que estão à sua volta (seja pelo preconceito dos colegas de time, seja pela experiente transexual Sol, que num diálogo parece lhe revelar uma “verdade” que ele até então desconhecia, ou até mesmo pela irmã que afirma que já sabia de sua transexualidade) do que um sujeito que se enuncia, se questiona, se faz escutar.
Vítor decide muito rapidamente assumir sua nova forma de vida. Muita certeza, pouca dúvida. Quando se trata de sexualidade, não acredito ser simples se autodefinir, a meu ver é sempre um processo de desconstrução e reconstrução. Nesse ponto, a dramaturgia soa ingênua, pelo conflito pouco desenvolvido na aceitação do jovem e dos seus amigos de time, se pensarmos no contexto de uma sociedade conservadora e numa prática sexista e machista como a do futebol. No entendimento de uma progressão dramática, haveria a necessidade de desenvolvimento de mais conflito, tempo e ação. Tal questão inclusive compromete o final da história, com uma rápida adesão de todos à “capitã” (expressão presente no texto) do time, que por seu talento trará a vitória e a alegria para os moradores da cidade. Isso de fato seria verossímil? Ou seria a arte apontando possibilidades outras e “novos tempos”? Seria isso a ser escutado pelo texto de Adélia Carvalho?
“O Time Perfeito” é um texto repleto de pausas e alguns cortes, como pontos e fios que, pela extensão da colcha dramatúrgica, vão aos poucos se alinhavando. Adélia Carvalho, nesse texto, nos convoca a escutar a dor dos adolescentes que sofrem preconceitos sociais e sexuais. Escutar os adolescentes hoje se torna essencial diante do crescente número de suicídios nessa fase da vida. O jovem Vítor será alguém que não precisará desistir da vida por causa de sua orientação. Pude escutar a vida pulsar para Vítor no mesmo Cruzeiro onde a morte de outra adolescente aconteceu exatamente pela falta de escuta.
O texto também questiona os estereótipos vigentes do que seriam atividades de meninos e meninas, quando apresenta Juninho e sua profissão de costureiro, aprendida junto à avó. No texto há uma subversão potente que desmascara alguns códigos estabelecidos: o adolescente que lida com vestidos e agulhas apresenta uma opção até então heterossexual, enquanto cabe ao artilheiro e campeão de chuteiras do time “perfeito”, uma outra escolha afetivo-sexual. Como lidar com esses embaralhamentos? O que tal questão nos coloca a refletir?
Outro ponto interessante presente no texto: após a revelação de sua transexualidade, Vítor passa a ser chamado de “Vi”, para mim, pura ambiguidade, entendida como sintoma. Isso porque no “novo” nome há algo de masculino e feminino (diferente de Vitória, por exemplo) e ao mesmo tempo quando os personagens dizem “ o Vi”, é como se eu também pudesse escutar: “Eu o vi”. Ou pela estrutura da peça lida: “eu agora o estou vendo”…. Esse meu apontamento só foi por mim identificado no ato de escutar o texto, o que confirma que as palavras proferidas dizem muito mais do que imaginamos ou então abrem janelas para outras possibilidades de leitura.
Quadros cotidianos
Depois foi a vez de escutarmos “Se não houvesse mais ninguém no mundo”, de Byron O’Neill, com a colaboração de Carol Oliveira. O texto se estrutura através de três cenas independentes, apresentando diálogos curtos e ágeis, numa mistura de ironia e humor. Quadros da vida cotidiana de adolescentes típicos da capital, envoltos numa atmosfera de liberdade, mas que também têm que se haver com as interdições sociais e familiares. Na primeira cena, temos a tentativa de diálogo de uma filha com seu pai, sendo que este tenta se adaptar às novidades de um mundo que se “moderniza” a todo tempo. A perplexidade do pai ao saber que sua filha tem uma namorada, ao mesmo tempo que nos provoca risos, também nos revela o longo e conflituoso processo de compreensão necessário para se lidar com as transformações trazidas por uma juventude que abre novos campos para se vivenciar desejos, relações e afetos.
Longe de qualquer didatismo, a força da dramaturgia está em nos fazer ouvir tanto o desconforto de um pai que luta para se mostrar “bacana”, quanto a naturalidade de uma adolescente ao afirmar suas escolhas amorosas. Mas há um embate violento escondido nas entrelinhas e pausas do texto, que, numa primeira impressão, pode parecer apenas ser divertido. A filha reclama que o pai nunca a escuta, mas será que a adolescente também se abre para escutar as dificuldades e os preconceitos que seu pai ainda tem? O texto sugere que ambos, adolescente e homem adulto, estão em crise diante de valores calcados na diferença geracional.
“Se não houvesse mais ninguém no mundo” traz a voz dos adolescentes para o centro do palco. Radiografa conflitos, as descobertas da puberdade, os medos e anseios juvenis, suas fragilidades e arrogâncias, suas perguntas difíceis, enfim, nesse texto, de fato, não há como proteger nossos ouvidos daquilo que não tem pudor de ser dito, questionado e enfrentado.
A ótima escolha do elenco juvenil para a leitura da peça confirmou a atualidade da proposta de uma dramaturgia quase crua, direta, um depoimento vivo das experiências dos adolescentes. O título da peça “Se não houvesse mais ninguém no mundo” de alguma forma opera numa inversão do conteúdo apresentado, se configurando como algo instigante, isto é: o título, a mim, parece se aproximar a algo como que a constatação dolorosa de uma solidão sempre persistente na vida de muitos jovens, mas o que percebo nos diálogos é uma forte presença do elemento cômico. Dessa forma, se oscilam uma certa leveza juvenil ao tratar ainda que disfarçadamente, de delicadas temáticas que ocasionam dores na vida dos adolescentes.
No debate aberto após o fim das leituras, foi salientada a força de uma juventude que, para alguns, tem renovado e oxigenado espaços, conceitos e relações, a partir de sua vivacidade alegria e ousadia. Sim, eu também concordo com tal observação. Mas prefiro não romantizar a vida dos adolescentes, pois hoje é preocupante como eles são o alvo predileto dos imperativos da cultura, do consumo, vítimas do mercado do gozo e da depressão. “Que adolescente consegue passar por essa vida sem antidepressivo?”, pergunta um jovem ao amigo numa cena do texto de Byron. Daí a importância dessas dramaturgias que nos ajudam a escutar esses possíveis navios, frágeis embarcações, ainda em busca de um porto para minimamente se ancorar.
Leituras realizadas no dia 21 de outubro de 2017 no Sesc Palladium (Belo Horizonte/MG).