— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “Máquina de Dar Certo”, da Cia. Bruta.
A certa altura de “Máquina de Dar Certo”, da Cia. Bruta, a vontade é de fazer parte do experimento. A trilha sonora com versões dançantes de músicas como “I Put a Spell on You”, “I Feel Good” e “Daddy Cool” contagia: os corpos na plateia sentem o estímulo sonoro e cinético dos movimentos dos atores em coreografias coletivas no melhor estilo Michael Jackson em “Beat It”. Entre o musical e a balada, sob luzes coloridas cambiantes, o palco é lugar de diversão.
Mas quem são aqueles homens e mulheres numerados e a agir em grupo como ovelhas num rebanho? A voz feminina em off refere-se a um experimento, outros indícios da encenação sugerem o confinamento e a performance para uma plateia fora, mas é do campo extracênico da sinopse que vem a informação de que a dramaturgia inspira-se nas pesquisas comportamentais de Frederic Skinner sobre o condicionamento humano a partir de estímulos e recompensas. Em tempos de reality show, o experimento com humanos aponta para a espetacularização da vida e a busca pelo reconhecimento atribuído pelo olhar do outro. Um mecanismo fechado destinado a provar uma tese – uma caixa de Skinner.
Sem essa contextualização extracênica, contudo, o olhar do espectador tenta atribuir sentido à aglomeração de desconhecidos que cumprem ações segundo uma dinâmica própria direcionada para a padronização homogênea das condutas ditada por fatores externos indecodificáveis. A tensão estabelecida dá-se entre fazer parte do todo sem nele desaparecer e destacar-se pelo desempenho (ou pela vaidade) sem escapar do padrão, isto é, sem tornar-se a ovelha desgarrada a ser punida pela voz superior.
Algo se passa no nível do subconsciente sem vir à tona em cena. Aponta para um conflito entre a pré-programação e as manifestações do desejo, estas mesmas que devem ser controladas pela lógica do experimento e que suscitam alarmes sonoros quando se libertam. A música entra como disparadora dos condicionamentos, embora mobilize sempre algo a mais por sua força de afetação dos corpos. Ou seria justamente por essa capacidade de afetação – de ditar ritmos e estados emocionais – que a música os condiciona? O cantar de “Je Ne Regrette a Rien” evidencia essa contradição como uma canção que entra fora de hora para a expressão subjetiva de uma das participantes, rompendo com a norma.
É cabível dizer que, na rotina do experimento, esses homens e mulheres não vivem, performam. O olhar de fora está presumido em cada ação – seja o do condutor do experimento ou o da plateia ficcional análoga à real, embora nenhum desses como uma alteridade efetiva. As relações extracênicas são dessaturadas tanto quanto as intracênicas: a regra na contracena das figuras é a impessoalidade, aquela tensão já referida do ser grupo em competição individualista, contrária à verdadeira troca intersubjetiva.
Em outras palavras, emana da cena um tom blasé: a sensibilidade embotada pelo excesso de estímulos, a apatia por ter esgotado todas as possibilidades, o tédio sincero ou afetado. A relação dessas figuras com os espectadores é distanciada, resultado da fria impessoalidade que não favorece conexões emotivas e dá acesso nunca ao ser daquelas pessoas, somente às aparências. A exceção é a personagem da atriz peruana Marba Goicochea, cuja sensibilidade se excede.
Esse indecifrável jogo com o espectador nem o coloca em questão a ponto de expor a crueldade do lugar do observador nem permite uma identificação maior com os condicionamentos perpetrados em cena. Faz-se confronto mudo. É daí que surge aquele desejo expresso inicialmente de tomar parte do experimento, de sentir no corpo as pressões dos estímulos – o que não implicaria necessariamente uma participação direta.
Distinto da clareza explicativa de “Em Respeito a Dor” tanto quanto da contundência do discurso performativo de “Esse Corpo Meu” – espetáculos também apresentados no IV Festival Nacional de Teatro Toni Cunha e com os quais partilha o afastamento do modelo dramático em direção a formas livres de predefinições –, “Máquina de Dar Certo” é um experimento cênico rarefeito que deixa entrever a estranheza da coletividade humana.
*Espetáculo visto em 15 de agosto de 2015, em Itajaí/SC.