O cinema e a literatura formatam o roteiro de “Cômodos”, escrito por João Filho como um curta-metragem a ser filmado, mas lido na Janela de Dramaturgia com elementos de encenação teatral. O teatro se infiltra por vias indiretas, como profissão do protagonista dentro da ficção criada e, portanto, constitutivo de sua identidade. É também o evento ao redor do qual se movem as ações. E um elemento extrafilme que sobrecarrega os significados do que se vê em cena: Elvécio Guimarães, um dos pioneiros da atuação em Minas no início da década de 1950, assume o papel de um igualmente veterano ator, que sofre com a ausência da esposa e as dificuldades que a memória falha traz ao ensaio de um novo espetáculo.
A natureza cinematográfica da obra se impõe sobretudo nos cortes, enquadramentos e movimentos de câmera previstos. São usados para ocultar do espectador partes da situação e para, em seguida, revelar-lhe o que se faz presente ou ausente. A solidão do personagem é apresentada ao espectador por essa estratégia e continua a ser sugerida por uma câmera que escapa pela janela, foca os objetos da casa e tenta redimensionar os seus tamanhos. Dessa forma, a construção do olhar adota procedimentos essencialmente cinematográficos, ao mesmo tempo em que se abre a monólogos interiores e à recitação de poemas, que expressam ou ilustram os sentimentos do protagonista não por imagens, tempos ou movimentos, mas pelo discurso, pelas palavras. Aí se estabelece um diálogo mais próximo com a linguagem teatral e a literária.
João Filho sustenta o roteiro em ações cotidianas e relances da relação do protagonista com o diretor do espetáculo que está a ensaiar. Contudo, produz fissuras na lógica predominante e na aparente lineariedade das ações, com uma cena que se repete remodelada, retirando a impressão de realismo inicialmente estabelecida para expandir a possibilidade de compreensão da história filmada. De forma sintética, mas ainda reiterativa, o roteiro expõe com clareza e tom melancólico as emoções associadas às limitações da velhice.
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Em mais um passo de sua pesquisa sobre o teatro do absurdo, Byron O’Neill sobrepõe uma lente distorcida para evidenciar características emocionais e dinâmicas relacionais humanas na peça curta “Isso É para a Dor”, lida pelo trio de atrizes Marina Viana, Marina Arthuzzi e Mariana Blanco. O tempo é o alvo principal da distorção, dentro de uma narrativa que mantém uma coerência interna e uma linearidade, mas se permite ser regida por outra relação com o relógio. É assim que uma personagem (fisicamente ausente) supostamente dorme há semanas, sem causar maiores alarmes. Ou que uma pausa entre as três em cena pode durar, por sugestão da rubrica, mais horas do que tem um dia, abrindo uma contradição com o tempo “aceitável” de inação e silêncio num espetáculo teatral – para não falar do tempo possível do espetáculo como um todo. Com rasteira pontuais como essa na ordem do esperado, a comicidade se instaura em coexistência com o trágico da situação de desolação apresentada.
O texto fornece, na verdade, poucas informações factuais sobre personagens, espaços e situações. O espectador permanece na suspensão de quem são, o que as une naquele lugar, que lugar é esse afinal, quais as relações entre elas e o que acontece lá fora. Para além disso, são postas em evidencia outros tipos de relações: as resposta emocionais, a estagnação da vida, o pessimismo e o jogo de forças e de influências entre si.
Considerando que o teatro do absurdo não é uma escola teatral ou um modelo fechado, mas um conjunto de tendências estilísticas que emergiu no pós-Segunda Guerra Mundial, como precipitação na forma de um conteúdo de incomunicabilidade e de constatação da solidão e do insólito do mundo, e levando em conta que na cena teatral contemporânea esses traços de absurdo se espalharam e se diluíram por uma diversidade de outras linguagens e experiências formais, o que Byron faz é um raro (embora não único, como se vê em “Lesados”, do grupo cearense Bagaceira) exemplar de peça atual completamente centrada no teatro do absurdo. Sem a novidade formal que isso representou em meados do século passado nem a radicalidade da desconstrução dos paradigmas do drama, do ser e do tempo inventados por Beckett – que dizia buscar perfurar buracos na linguagem para ouvir o que se escondia atrás -, Byron cria diretrizes inesperadas no jogo de ações e percepções humanas e nos liberta de um automatismo em relação as coisas do mundo, ao inserir estranhamentos ao banal.
O autor se permite ainda formular um desfecho que se apresentará como um problema – no melhor sentido, o de desafio – ao encenador de seu texto. O sugerido soterramento da plateia é uma imagem instigante e que envolve o espectador na condição absurda a que estão submetidos os personagens, evidenciando a relação convival do teatro e ampliando a zona de experiência, de modo a ultrapassar a expectação distanciada e abrir impossibilidades no tecido espetacular, não só no discursivo.
*Texto originalmente publicado no blog Janela de Dramaturgia, em dezembro/2012.