Reflexões e expansões a partir do FIAC 2018
– por Soraya Martins –
I
Nos dias que antecederam minha ida a Salvador, participei do Festival Estudantil de Teatro- FETO em Belo Horizonte, que completou 18 anos, maior de idade, com obrigação de votar. Foram dias que antecederam as eleições do segundo turno, dias de tensão à flor da pele, misto de desespero e esperança revolucionária. No FETO, nesses dias, vi uma galera jovem fazendo teatro político com inteligência e estética apurada, vi jovens, ainda futuros eleitores, tomando posição crítica frente aos sombreamentos cinzas que insistem em pairar sobre as nossas cabeças. E foi empapada de esperança, levinha e fértil, que cheguei a Salvador para o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia.
O túnel de bambuzal, ponte do aeroporto para a cidade, se abre para a energia da renovação, quintal sem tranca nos caminhos. Possibilidades. Cruzar caminhos. Cruzar vidas. Chegar, ficar, girar, trocar, partir, para depois chegar de novo, e novo, reconfigurando símbolos e territórios.
II
A 11º edição do FIAC se propôs ser um lugar de abertura de novos caminhos e possibilidades, demostrando a necessidade de se reinventar no cruzamento entre o público e os artistas. Se propôs a dialogar com conceito encruzilhada – que fala do “lugar de contato e contaminação, de encontros e desencontros, de concepções e saberes diferentes, de práticas performáticas que nem sempre se cruzam de maneira harmônica”[1]-orquestrado e praticado há muito tempo pela gente de mão preta. Se propôs a se pintar com cores novas dentro de uma sociedade desbotada, que se apodera do tempo e da palavra.
Fotos de Isabela Bugmann
Para e por isso, o FIAC também foi para rua ocupar novos espaços e geografias – 2 de julho, Terreiro de Jesus, Estrada da Liberdade, Praça Castro Alves, Praça da Piedade, Passeio Público- foi construir conhecimento e trocar experiências que apontam para modos outros de pensar teatro, a feitura de um festival, a formação de público e a análise cultural. O FIAC se abriu para atuar nos entre(s) e tentar fazer disso potência criadora: interiorizar os conflitos e impasses socioculturais e reelaborá-los como experiência estética.
III
Do que primeiro a minha íris preta viu e vivenciou foi a atividade chamada Diálogos/Terreiro, uma gramática poética com disponibilidade para novos rumos. O terreiro foi evocado como dispositivo, como meio de reconquistar espaços, armar territórios, sabendo da urgência de chamar para o contato, para o desafio e para a sedução. Terreiro de Muniz Sodré! Sete convidados, de áreas de atuação diferentes no campo artístico cultural, compuseram um jogo no qual se estabeleceram rodas de conversas com até seis pessoas. As rodas ocuparam o palco de um teatro em que o convívio, as presenças, o dito e não dito, a multiplicidade de vozes, interesses, quereres e desejos e angústias eram os protagonistas. Quinze minutos para compartilhar urgências. O tempo é do agora. A tecnologia é a do juntar para pensar junto, para na urgência da vida tecer diálogos, partilhar ideias e redescobrir modos novos de leitura e interpretação do mundo. A minha roda de conversa, espaço-terreiro, estava cercada pela a urgência que move meu corpo: como fabular esteticamente mundos outros a partir da (re)criação das nossas identidades fragmentadas, machucadas e traumatizadas que, apesar de tudo, em cada rosto, fio a fio, cose as linhas de um projeto de futuro.
Chegar.
Ficar.
Girar.
Trocar.
Partir.
E depois chegar de novo, e novo, reconfigurando símbolos e territórios, esperanças e saberes.
Diálogos/Terreiro foi, na prática, a prática de invenção e negação da monologização do mundo; cruzou temporalidades, gente de idades e geografias diferentes, e essa encruza me levou a pessoas que compartilham das mesmas urgências, a pessoas que têm fome e inventam sua comida, a pessoas que acham minha urgência pouco urgente, mas estavam ali para conversar e olhar no olho. Quinze minutos de conversa, de encanto e sedução, de possíveis verdades, passíveis de incompletude(s).
E gira a gira.
IV
Do terreiro para o quintal-teatro. Mão na massa para fazer acarajé, reinventar a existência com dignidade, seguir na possibilidade de fazer teatro e cuspir fogo como Xangô. O espetáculo Bola de Fogo performatiza a vida do ator Fábio Osório, que trabalha como baiana de acarajé, registrado e com carteirinha de baiana. Quarenta e cinco minutos é o tempo que o ator leva para preparar, em cena, a massa do acarajé. Nos entres do preparo, Osório leva para o tabuleiro-palco a história de como decidiu começar a vender acarajé, história de necessidade, ganhar dinheiro, pagar as contas; história que se parece com a de outras baianas, mas é do contar a partir da simplicidade que emerge a potência do texto dramático, que mescla o cotidiano a uma sofisticação de pensamento que diz dos modos outros de inscrição dos saberes ancestrais, saberes que ligam antes-agora-depois-e depois-ainda; e se ligam às lutas das mulheres negras pela alforria e à luta de Osório, enquanto cidadão e personagem-protagonista do seu próprio teatro, na reinvenção do tempo para continuar (re)existindo. O texto tem epistemologia preta, axé lunar, é palavra ancestral que fica no ar e vai constantemente ao passado, extrai dele a emergência do novo e se recria no atravessamento do tempo. Palavra que sai da boca e do corpo, portal e índice de conhecimento, e que se performantiza também na comida, forma de afeto emancipatório, alimento da fome, das subjetividades, das memórias, das existências e da (re)criação.
V
Em tempos sombrios, precisamos ser camaleônicos, atuar nas brechas, nos resíduos, nos hiatos de tempo-existência e tempo-espaço. A performance Camaleões, da Anti Status Quo Companhia de Dança, foi para a rua e levou para 2 de julho a urgência de repensar certezas a partir da construção de dramaturgias críticas e reflexivas. Corpos cobertos por imagens, frases e palavras retiradas de jornais e revistas invadiram e se perderam em meio ao centro de Salvador, em meio a poluição visual, sonora e do ar de uma grande cidade brasileira. No hiato de um açougue e a promoção de um quilo de alcatra, quem é a carne mais barata do mercado? Quantas notícias consigo pregar na minha bunda? No turbilhão de palavras, revistas e jornais de uma banca de esquina, qual palavra vale mais? Esse corpo coberto de notícias também é fake? É teatro? É de esquerda ou de direita? Quem quer roubar a cena? Esses corpos entre caixas de papelão, talvez lixos, têm dignidade humana? Posso chutar? É resto? Estamos anestesiados e sem capacidade de sentir? Vestimos Sacolas na cabeça (outra performance da Anti Status Quo Companhia de Dança) e fomos sufocados pelas coisas que desesperadamente queremos consumir? A sacola, símbolo do consumismo, virou máscara e também mote de interação e reflexão para pensarmos o mundo em que vivemos e repensarmos o mundo em que vamos querer viver. E vendo essa performance, a minha urgência, lá do Diálogo/Terreiro, se faz mais uma vez pulsante: fabular outros mundos a partir da partilha do sensível que a arte nos oferece. A performance da Cia de dança de Brasília fissura esse lugar da partilha, da arte como experiência e do espectador como partícipe de um jogo que ficcionaliza a realidade, por isso tão potente e desestabilizador, tão necessário de estar nas ruas e encruzilhadas.
VI
Da rua para as encruzas do Passeio Público, do lado do Teatro Vila Velha, símbolo da resistência cultural negra, a atriz Fernanda Silva levou o espetáculo Involuntários da Pátria porque outra é a nossa vontade, que diz dos involuntários – os indígenas e os negros – de uma pátria que não os aceita, não os querem, não os representa. Com texto do antropólogo Eduardo Viveiro de Castro e o corpo de Fernanda também elaborando narrativas contra hegemônicas (ela reúne toda a “involutariedade” de tudo que a sociedade brasileira quer no avant-garde de uma guerra para morrer primeiro, e depois cinicamente eleger como símbolo de uma pátria democrática), vi um discurso sendo tecido por uma coreopolítica que nos obriga a refletir e estar disponível para outras possibilidades subjetivas, estéticas e éticas em arte. Quem inventou tanto os índios quanto os negros como categoria genérica, cortou a relação deles com a terra para transformá-los em “cidadãos” foram os brancos. Logo, o que o significante corpo-Fernanda vivo e não genérico evoca como significado? Adentrar na zona da arte que trata das questões raciais, de gênero e de classe é submergir numa performance que, em exposição da sua autoconsciência, busca mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo. O corpo-Fernanda é saber-vaga-lume. Saber hieroglífico das realidades/identidade(s) constantemente submetidas à censura, a ser o outro demonizado … Involuntários da Pátria porque outra é a nossa vontade confere aos involuntários uma autoridade no conhecimento que diz respeito a uma história política em devir. Sobrevivência de vaga-lumes, seres luminescentes, erráticos, dançantes e resilientes que, apesar de tudo – e esse tudo é gigantesco, é doloroso, é traumático, é da ordem das nossas fúrias e melancolias e ressentimentos- desenham constelações.
VII
Constelações. Estrelas para ver e imaginar… Bonito foi o espetáculo de Lucas Valetim e Edu O. que levou para as crianças a potência dos monstros da infância que são, ao mesmo tempo, assustadores e força de imaginação e criação para cada um. É bonito ver como a inventividade e ludicidade têm um papel fundamental na transformação dos nossos medos e angústias em explosão criativa. Bonito ver também os corpos diferentes dos atores em cena sem que a diferença gere exclusão. Todo corpo pode brincar, pode se relacionar, pode querer. Mais bonito é ver as crianças entendendo e respeitando com muita facilidade essas diferenças. Mais bonito ainda é ver os pais dessas crianças rindo com elas e vibrando quando um dos atores grita “é golpe!”(ai! Na minha inventividade de adulta, sonhei com uma noite de domingo mais democrática). E segue a dramaturgia de Bonito com as crianças tecendo o texto com seus corpos de esperança, chupando bala, colorindo o palco com risos e cambalhotas. Segue o baile das religiões com Deus, Shiva e Oxalá. Todos dançando com seus monstros e respeitando o lugar de cada um. Bonito é a fabulação da infância para um devir-mundo mais sensível.
VIII
“Preenchida da poesia e da beleza das coisas que parecem não ter sentido, fazendo aquilo que o corpo precisa, de um jeito que a gente ainda nem sabe. Exatamente como brincar – quando se é criança”, assim o espetáculo Menu de Heróis se anuncia na sinopse. No palco, bocas disseram poucas palavras, por isso o corpo para discursar o que a linguagem ainda não dá conta de abarcar. Corpo-papelão, corpo-garrafa pet, corpo-capacete, corpo-corpo, corpo-anunciação. Cinco performers-heróis dançam uma música ruído-eletrônico de banalidades e se relacionam com os outros corpos, os objetos cênicos e o espaço. Para onde vamos com tudo isso? Vamos conquistar o mundo como nos filmes e desenhos animados? Para que servem os heróis? Servem para morrerem de overdose diante de um mundo que sempre exige explicações cartesianas e “cientificistas”, que precisa de começo, meio e fim, assim nessa ordem, senão entra em colapso? Servem para concentrar os poderes da justiça e da segurança pública e montar uma super agenda de combate à corrupção nunca antes vista em terras tupiniquins? Menu de Heróis quer oferecer ao público a possibilidade de dizer trivialidades, de não carregar nenhuma mensagem, nenhuma moral da história. Quer destruir uma caixa de isopor, falar, quando fala, uma língua ininteligível (a exceção foi “domingo” e “democracia” que precisavam ser ecoadas), dançar sem ritmo, fazer pirraça, performar anti-heroísmos, surfar numa cadeira de rodinhas, inventar a partir da simplicidade e da ressignificação de fragilidades, que aqui entra na disputa por outras narrativas. Menu se apresenta como uma poética da relação em que está em jogo a capacidade de lidar com as imagens-sentido e incorporar essas imagens ao próprio sentido, de acordo com cada paladar.
IX
Do último espetáculo vi e vivi, ficou o riso, não um riso melancólico da exposição de uma ferida aberta, como às vezes é de um espetáculo que fala da nervura do real – dos racismos, traumas, ressentimentos e preconceitos – e usa o riso frio e cortante para refletir o cotidiano das coisas e das pessoas. Aqui, foi um riso que ultrapassa a fronteiras linguísticas e une culturas e pessoas, mesmo que só por setenta e cinco minutos (um espetáculo não pode aguentar o peso do mundo), numa espécie de “afeto emancipatório” e libertador que reconfigura simbolicamente o território-teatro. Rir de chorar coletivamente. Gargalhar com o riso do outro a partir da “simplicidade” e, por isso mesmo, sofisticação do teatro mudo. Rir de um palhaço desastroso, reflexo da nossa própria imagem no palco, é rir de nós mesmos, é, de alguma forma, mesmo que pouquinho, uma reelaboração das nossas vaidades. Exceções à gravidade, do palhaço Avner Eisenberg, não trata de perder ou ganhar, típico do jogo da palhaçaria, trata de redistribuição de afetos, que nesses tempos sombrios se fará ainda mais necessário.
X
Cheguei empapada de esperança, levinha e fértil. Parti. Passei pela a estrada de bambuzais renovada de axé, o tempo ali é espiralar, se recria a cada ida e vinda. O Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia foi a possibilidade de reinventar em cada peça vista, fio a fio, as linhas inacabadas de um projeto de teatro plural que mais do que resistir, germina outros modos de estar em cena. Voltei para votar, empapada de esperança, fértil. Daqui para frente é tudo do jeito que a gente sempre vez. Reconfigurando…
[1] Conceito criado pela professora e pesquisadora Leda Maria Martins