Fotos Carolina Calcavecchia |
(*) Texto originalmente publicado no site do Feto 2013
Fotos Carolina Calcavecchia |
Por Soraya Belusi
Exatamente como as coisas deveriam ser: um cenário enigmático, uma bela composição pelo espaço, figurinos bem harmonizados cromaticamente, uma dramaturgia fragmentada entrecortada por situações de humor e elementos fantásticos, como a presença ausente de um camelo sem corcunda. Todos os elementos aparentemente “corretos” confluem para um grande resultado? Assim seria se as coisas fossem como deveriam ser, mas, não, como elas realmente são. É a partir do próprio argumento do espetáculo “Pessoas ou Coisas Podem Mudar o Mundo, mas Hoje Nada Aconteceu”, da Cia. dos Aflitos, que busquei dialogar com as escolhas realizadas pelos criadores envolvidos nas questões que me parecem mais problematizadas pela montagem, como a relação com o espectador, a quebra da ilusão teatral, a construção de uma dramaturgia própria, organizada de maneira fragmentada, utilizando-se como matéria-prima os relatos pessoais dos atores.
Ao longo dos 60 minutos cronometrados para os alarmes soarem, o espetáculo parece carecer de uma seqüência de bons achados (como a imagem das quedas, a linguagem metafórica e circular, entre outros pontos) que, ao não serem explorados de maneira a ganharem força no decorrer da cena, tornam-se perdidos no tempo e no espaço. Um desses elementos pode ser notado logo na primeira cena. Ainda do lado de fora do teatro, o público é surpreendido por um ator/personagem que pede que escrevam cartas (a serem usadas posteriormente na encenação) com respostas para a seguinte pergunta: ‘como as coisas deveriam ser?’. Em seguida, surge um outro ator/personagem sugerindo que igualemos os horários dos nossos relógios e, metaforicamente, ‘sintonizemos nossos tempos’.
A questão é que, embora sejam muito fortes poeticamente, nenhum desses dois elementos (apenas título de exemplo) é reapropriado pela montagem de forma a justificar a relevância que lhe és dada anteriormente. As cartas viram frases soltas e quase inaudíveis ao fim da peça, apenas um ‘achado’ para encerrar o trabalho. O efeito de realidade com o pedido de a plateia manter ligados seus dispositivos eletrônicos e programar o despertador também não agrega camadas simbólicas ao espetáculo da maneira como foi utilizado (sem contar que não funcionou, já que os despertadores parecem não terem tocado sincronizadamente).
Embora o elemento tempo esteja presente o tempo inteiro (seja nos relógios do cenário, no relógio de bolso do ser imaginário, no relógio que marca o tempo na sonoplastia), esse peso não se faz sentir na cena e na plateia. A proposta cíclica da dramaturgia enfatiza essa questão temporal, mas não dá conta de torna-la presente na cena e não apenas ilustrada.
Este trabalho da Cia. dos Aflitos parece ser descendente direto de uma renovação no fazer dos grupos de teatro, influenciados pelo processo colaborativo e pela atuação de um ator-criador, trazendo consigo as potências e as limitações impregnadas a esse ‘modus operandi’ (como bem lembrado pelo professor Fernando Mencarelli em sua fala analítica). Os depoimentos pessoais dos atores não parecem dar conta da dimensão poética e complexa que a dramaturgia pretende alcançar. O invólucro parece dizer muito e, as entrelinhas parecem esconder mistérios, as arestas poderiam ser possibilidades de diálogo e interpretação do próprio espectador. Mas, no fim, os elementos parecem ter sido escolhidos para que o espetáculo fosse como deveria ser (em sua forma estética), e, não, pela real simbologia que carregam ao serem articulados lado a lado. A dramaturgia parece querer trabalhar em distintas camadas de diálogo com a plateia e com a história, no plano do imaginário (com a presença de uma espécie de ‘guardião do tempo’, da memória (com as imagens e indagações do que se passou), do presente teatral (na quebra com a ilusão e no contato direto com o espectador). Mas não alcança o objetivo de articula-los de forma a potencializar cada uma dessas possibilidades em cena.
A situação resumida na sinopse do espetáculo (a relação entre o casal e uma filha e a dificuldade de lidar com o tempo no que tange à necessidade da mudança) não se torna problematizada, tornando o espetáculo um exercício estético potente, mas ainda carente de uma maior elaboração dramatúrgica.
Por Soraya Belusi
“Até que o Teto Desabe” apresenta dois personagens em uma situação-limite, que se vêem trancados dentro de um cofre de banco, encruzilhados pela chegada da polícia ou uma eminente desabamento. Este encontro de dois seres em total momento de desapego de suas máscaras (sociais e psicológicas) serve de pretexto para que o texto de Carlos Renatto aponte por diversos temas como o fracasso das relações humanas, medo, morte, violência. O argumento do espetáculo é muito forte e bem delineado, mas sua execução comete deslizes no percurso.
Embora a dramaturgia apresente uma série de potencialidades, estas parecem se dissolver ao longo da encenação. O humor, por exemplo, arma que pode ser usada de maneira cortante para que o indivíduo reflita sobre si mesmo e suas limitações, torna-se banalizado justamente por sua hipervalorização. Imagens potentes (como um mundo prestes a desabar sobre nossas cabeças ou o fato de os personagens morrerem ‘esmagados pelo capitalismo’) diluem-se em meio a outras tiradas que apenas contribuem para o riso fácil do público, diminuindo assim o seu efeito de reflexão. Que o diga o texto do mineiro José Vicente, montado pela primeira vez em 1969, por uma trinca de grandes atores (Rubens Corrêa, Ivan de Albuquerque e Fauzi Arap), e, mais recentemente, revisto em projeto paralelo dos atores do Oficina de Zé Celso Martinez.
Cito a obra de Zé Vicente por uma série de razões: pela proximidade temática e da situação cênica e para servir de referência futura para os criadores envolvidos, artistas ainda (e constante e eternamente) em formação. Em “O Assalto”, escrito no auge da ditadura, Zé Vicente faz uma espécie de “acerto de contas” com sua própria visão de Deus, e “escancarava as conseqüências da devoção cega a um deus-mercado que a tudo rege nos dias que correm”, como afirma o crítico Valmir Santos quando da remontagem da peça em 2004. O texto tem como um de seus elementos sublimes a potência poética daquilo que não podia ser dito, mas que estava o tempo inteiro presente no subtexto, no que se vê sem se mostrar. “Revisitada após uma série de montagens, no segundo semestre de 1969, que obrigaram a crítica a rever seus critérios, a peça não perdeu nada da beleza e do impacto primitivos. Ela continua de pé com a sua intratabilidade, a aspereza de um estilo literário que se compraz nos desvãos e nas sondagens incômodas – essa violência, tão típica de hoje, que explode em rebeldia existencial, não afeiçoada a nenhuma disciplina, após a compressão de todos os condicionamentos sociais”, descreveu o crítico Sábato Magaldi sobre “O Assalto”, em 1970, no “Jornal da Tarde”.
Na montagem dos alunos TU, Os atores se relacionam com os personagens de forma a executa-los muito próximos de suas próprias características cotidianas, configurando um pseudonaturalismo que não contribui para a potencialidade da cena. Uma situação-limite (a aproximação da morte ou da cadeia) gera a presença de uma tensão que precisa reverberar no espaço, na luz, na paisagem sonora, no corpo dos atores/personagens; falta o tônus necessário, carece de um estado, de uma presença cênica para que esta ficção se concretize no espaço entre o palco e a plateia. Na condução da montagem, esses elementos tendem a aparecer muito mais na descrição que na ação. O público tem esses elementos dados pelas palavras, pelo que os personagens dizem, e não pelo que fazem (mostram, apresentam).
Esse jogo de entra-e-sai (da ação dentro do cofre para os comentários diretos com a plateia), como que um recurso para romper a ilusão teatral, desfavorece a ação cênica, dificultando ainda mais a construção da situação que se pretende estabelecer cenicamente. Além disso, os momentos de aparte parecem apenas sublinhar questões que já estavam mais que explicadas na cena, tornando-se, assim, tanto quanto ilustrativas apenas.
Os personagens e seus contrastes aparecem sem desenhos concretos (dramatúrgico, físico e cênico), minimizando o impacto deste encontro improvável entre dois universos díspares: o do homem que nada tem a perder e o do menino filho de banqueiro que sempre teve tudo e pôs tudo a perder.
Por Soraya Belusi
“A dança-teatro tem-se valido de todos os ingredientes de uma encenação teatral (…) na esmerada coordenação de todos os materiais cênicos. Disso resulta a criação de uma fábula e de uma dramaturgia que contam uma história – a partir das ações simbólicas das personagens, que permanecem em seu papel e são condutoras da dramaturgia. O gestus social, mais que os gestos individuais ou psicológicos, é o que conta: o movimento jamais é puro e isolado”.
A definição de Patrice Pavis, em seu “Dicionário de Teatro”, para a corrente da criação cênica contemporânea que definiu-se conceituar como dança-teatro – fruto de um processo iniciado ainda por Laban e seu discípulo, Kurt Jooss, no início do século XX, e sintetizada na obra de Pina Bausch e seu no Tanztheater Wuppertal – pode servir como ponto de partida para estabelecer pontos de problematização sobre a maneira de apreensão do conceito que parece tão presente na construção do espetáculo “Chá de Casa Nova”, da Cia. Cacos de Luz, de São João del Rei.
Uma leitura menos atenta da definição de Pavis poderia levar a uma identificação imediata entre as proposições do espetáculo e a conexão com os elementos que estabeleceram a base da linguagem experimentada pela coreógrafa alemã (embora Pina não gostasse que limitassem sua criação definindo-a como coreografia). Mas, numa proposta de tentar dialogar com os signos propostos pela encenação percebe-se uma concepção que, embora tenha os ingredientes necessários, não consegue reuni-los de maneira simbólica e dramatúrgica, para alcançar o que Jooss definiu como dança drama, duas linguagens que vão ao encontro uma da outra, gerando um terceiro fruto artístico. “Na dança dramática, as ideias de movimento estão fundidas com a ideia dramática, e a fusão desses dois elementos cria uma nova entidade, a dança-drama, cujo assunto é o pensamento do criador cristalizado em ação e em personagens humanos que agem e sofrem” (JOOSS apud SCHILICHER, 1993, p. 32, tradução da autora).
A dramaturgia, aparentemente aberta, parece não se definir por quais códigos de encenação operar. Como em um jogo de “liga e desliga”, o espetáculo tende a caminhar numa divisão entre “momentos de dança” e “momentos de teatro”. Ao contrário do que pregava Jooss (citado acima), o trabalho parece optar por relances em que a partitura corporal/coreográfica eleva-se como fio condutor, mas sem atingir o plano do simbólico, do representativo, do movimento com significado. Neste sentido, o trabalho do ator e do bailarino não funcionaria em momentos distintos da cena, como se dá na montagem, mas, sim, coexistiriam em cena. “Ela confronta a ficção de uma personagem construída, encarnada e imitada pelo ator, com a fricção de um dançarino, que vale por sua faculdade de inflamar a si próprio e aos outros através de (…) seu desempenho cinestésico”.
No objetivo de levar à cena (apresentar, representar) a história de uma família em que os indivíduos deixam revelar suas fraquezas, traições, medos e desejos, “Chá de Casa Nova” recorre aos “fundamentos” da dança-teatro sem que, com isso, consiga potencializar o trabalho em questões dramatúrgicas, de atuação e ou/estéticas. Em vez de esses elementos atuarem de modo a potencializar um ao outro, parecem justamente se anularem, impedindo que o espectador decifre em que código se dará a representação (tendo, como exemplo, essa constante estrutura estabelecida no espetáculo de uma cena realista seguida por uma de dança).
Em vez de nos revelar uma família com todas as suas idiossincrasias e complexidades, e indivíduos problematizados pela dor – como parece propor a sinopse -, a condução da montagem não consegue nos apresentar solidamente quem são os personagens da história? (Claro, identificamos pai, mãe, filho. Mas não é oferecido ao espectador quadros mais completos: quem de fato são? O que cada um representa nesse coletivo? Qual o conflito entre eles? Estabelecem algum tipo de relação?). Com isso, os atores (em seus momentos realistas!) não conseguem compor um painel que vá além da ideia do clichê (tanto física quanto dramaturgicamente), dos personagens conhecidos nos dramalhões – da mulher que trai, o traído que mata, os filhos que sofrem, a cunhada que tinha um desejo reprimido pelo cunhado, e assim por diante).
O tango, escolhido como base para a trilha sonora, despotencializa ainda mais a construção de uma atmosfera de tensão e sexualidade, o que parece ser a ideia inicial do espetáculo. O tango-contemporâneo acaba levando a montagem o tempo inteiro para a ideia do melodrama. O espetáculo confunde o espectador utilizando referências do melodrama (personagens-tipo, histórias trágicas e apaixonadas, interpretações exageradas), mas sem assumi-lo como linguagem de fato, o que leva, em alguns momentos, o espectador ao riso da forma que ele não é bem-vindo, digamos assim.
Assim como nos trabalhos de Bausch, elementos de real e de teatralidade existem em cena no espetáculo, mas parecem ser significantes sem significados. Por exemplo, a escolha de deixar todos os personagens de tênis poderia ser lida tanto como um elemento de teatralidade (à medida que poderia ser um símbolo da ideia de se assumir um figurino para causar certo distanciamento no espectador) quanto de real (como elemento que pertence à vida cotidiana dos atores). Mas esse e outros signos (isso se repete em outras escolhas formais do trabalho) não ganham nenhum contorno na montagem; parecem estar em cena sem muita razão de ser. Embora tenha se aprofundado na pesquisa e na re-elaboração de fundamentos e conceitos tão caros às artes cênicas contemporâneas, “Chá de Casa Nova” esbarra na crise de identidade justamente ao tentar buscar sua própria linguagem.
Por Soraya Belusi
Ter um texto de Newton Moreno como base para a encenação é ao mesmo tempo um desafio e um presente. Nas rubricas que antecedem o texto, o escritor e diretor pernambucano, um dos nomes mais inventivos e produtivos da atual cena da dramaturgia brasileira, propõe a peça como um exercício para um ator-contador. “Daqueles que reúnem um grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento”.
Obra premiada com os prêmios Shell e APCA, “Agreste (Malva-Rosa)” já foi levada aos palcos sob a visão de Marcio Aurélio, tendo sua qualidade dramatúrgica enfatizada e ressaltada pela montagem. Recentemente, voltou à cena sob a direção de Stephane Brodt e Ana Teixeira. Em ambos, a linguagem não faz concessão ao regionalismo que a fonte nordestina da história poderia impregnar, mas faz dela, assim como a fábula de Newton, trampolim para tocar em questões arcaicas e universais, de extremos, gêneros, do amor e da sexualidade.
A encenação de Alice Stefânia multiplica essa referência de um único condutor da fábula para oito narradores-personagens distribuídos no elenco que forma o elenco da Casulo Dramaturgia de Atores. No palco, quatro músicos recebem o público ao som típico da rabeca do sertão do país. Os tons crus da cenografia e da iluminação revelam ao fundo redes que formam uma espécie de emaranhados de casulos, de onde nascem (surgem) uma série de bichos-homens do agreste que dá título ao texto.
Newton fala de uma história de amor cujo perigo parecia pairar antes mesmo de acontecer. Inspirado nas histórias que ouvia de mulheres-lavradoras do interior de seu Estado, cujo desconhecimento acerca de seus próprios corpos e sexualidade era imenso, Newton apropriou-se da figura da mulher que se finge/(tra)veste de homem (recurso tão conhecido na obra de Guimarães Rosa) para falar de um amor incondicional, que se basta, de um casal praticamente apartado do convívio social. Cujo único abalo é a ignorância alheia, coletiva, a descoberta da sexualidade do outro.
Um dos artifícios da montagem de Alice Stefânia é justamente tornar palatável essa narrativa a um público infantojuvenil, de certa maneira adocicá-la, mas sem retirar-lhe a contundência, a poesia e o humor corrosivo. Se os códigos são acessíveis ao público, não são, por isso, menos sofisticados, como as imagens arcaicas a que parecem se remeter as partituras criadas no fundo das cenas, a utilização das partituras de ação física e vocal (como na cena da ladainha coreografada, por exemplo).
A música é aliada constante da encenação. É ela que pontua cada momento da narrativa, suas transições e retomadas, cria o ambiente sertanejo da contação de histórias, dialoga diretamente com os atores na composição da cena. A ideia de personagem não existe, fazendo com que o elenco se reveze entre os diversos elementos da história e potencializando a força do conjunto do grupo.
Os elementos da cultura popular nordestina são muito presentes na encenação, o que pode, em alguns momentos, dar uma leitura dramatúrgica presa a uma visão regionalista. Mas esse risco acaba sendo equilibrado pelas poucas mas relevantes imagens arquetípicas, até chegar ao fim redentor dessa tragédia, em que a cena final remete à sacralidade de uma “Vênus Dormindo”.
Por Soraya Belusi
“Na verdade, não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.”
(Jorge Luis Borges)
A marca que algumas obras de arte perpetuam em seus contextos é inegável. Recortando este universo e limitando-o à mais recente história do teatro brasileiro, é obrigatório passar, nos últimos 20 anos, pela contribuição estética, teórica e processual que coletivos como o Teatro da Vertigem, o Grupo Lume e a Cia. dos Atores, só para citar três dos mais relevantes, deram ao pensamento teatral contemporâneo brasileiro. Este último, sintetizado criativamente pelo diretor Enrique Diaz, somou à sua lista de grandes espetáculos, em 2004, a criação de “Ensaio.Hamlet”, montagem ovacionada pela classe e pela crítica, que instaurou, condensou, toda uma ‘forma de fazer’ da trupe carioca – sistema criativo que voltaria a inspirar o grupo, em “A Gaivota”.
“Na verdade, não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.”
(Jorge Luis Borges)
A marca que algumas obras de arte perpetuam em seus contextos é inegável. Recortando este universo e limitando-o à mais recente história do teatro brasileiro, é obrigatório passar, nos últimos 20 anos, pela contribuição estética, teórica e processual que coletivos como o Teatro da Vertigem, o Grupo Lume e a Cia. dos Atores, só para citar três dos mais relevantes, deram ao pensamento teatral contemporâneo brasileiro. Este último, sintetizado criativamente pelo diretor Enrique Diaz, somou à sua lista de grandes espetáculos, em 2004, a criação de “Ensaio.Hamlet”, montagem ovacionada pela classe e pela crítica, que instaurou, condensou, toda uma ‘forma de fazer’ da trupe carioca – sistema criativo que voltaria a inspirar o grupo, em “A Gaivota”.
Natural, por isso, que uma geração inteira de jovens artistas tenha assistido e apreendido o trabalho monumental de releitura e apropriação empreendido por Diaz e seus companheiros de grupo. E, se não viram, muito provavelmente ouviram os relatos da habilidade da encenação de Diaz em levar para a cena, de maneira metalinguística, a configuração de um ensaio para a montagem de “Hamlet”, de William Shakespeare. Código este que abre espaço para que formas narrativas contemporâneas trabalhem a serviço dos atores para que contem a história do Príncipe da Dinamarca.
Mas por que falar tanto de “Ensaio.Hamlet” se este texto pretende dialogar com outro espetáculo, no caso, “Horácio”, do Grupo Tarja? Porque, para mim, foi indissociável a fruição de um com a imediata comparação com o outro. Até que ponto nos impregnamos daquilo que vemos? Qual a ideia de originalidade que se faz na arte contemporânea? Qual o limite entre plágio e homenagem? Se o resultado artístico deste ‘contágio’ é relevante, importa ‘seu grau de parentesco’? O próprio Shakespeare não teria sido “acusado” de plagiar autores menos conhecidos de sua época? Como interpretar o que disse Jorge Luis Borges (citado acima) neste caso?
Tomemos como provocação a obra de Walter Benjamim e sua reflexão acerca do conceito de aura na obra de arte. Em seu texto “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, de 1935, Walter Benjamin define aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1994, p. 170). Seus principais elementos são a autenticidade e a unicidade. A autenticidade da obra de arte dependeria, então, da materialidade da obra, do substrato físico que a envolve, a partir do qual se desenrola sua história, e no qual ficam registradas as transformações físicas e as relações de propriedade pelas quais ela passa. A reprodução não consegue levar consigo o testemunho da história gravado no substrato original, autêntico, o que provoca, segundo Benjamin, a perda da autoridade e do peso tradicional da obra de arte. Para ele, a autenticidade da obra de arte aurática é única e não pode ser reproduzida.
“Horácio” é um espetáculo criado em 2011, dos cariocas do Grupo Tarja, formado por Marcio Vito e Larissa Rodrigues (que dirigem esta montagem), além dos atores Felipe Sut, Ian Capillé, Lorrana Mousinho, Luisa Reis, Luiz Phillipe Tavares, Rach Araújo, Raisa Mousinho, Rodrigo Reinoso, Tainá Louven, Thiago Monte, que se conheceram no curso de artes cênicas da Unirio. A dramaturgia do espetáculo se sustenta na ideia de que Horácio, o amigo de Hamlet, escuta seu pedido ao fim da peça de que sobreviva para contar sua história. É ele quem conduzirá o público pela vingança trágica do príncipe da Dinamarca. Esta é a deixa para que a encenação seja conduzida de maneira a romper com o formato tradicional, aceitar a fragmentação, o comentário com a plateia, a atualização, a crítica pelo humor. Elementos que o trabalho, até certo ponto, manipula com maestria.
“Horácio”, muito provavelmente, não existiria não fosse “Ensaio.Hamlet”. O primeiro parece ser substrato do segundo. Uma “reprodução”, salvo todas as devidas proporções, que, embora muito bem realizada tecnicamente, não carrega a “aura” que tem o original. “A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica”, dizia Benjamim. O espetáculo do Grupo Tarja tem muitas qualidades como experiência teatral se o analisarmos isolado do contexto cultural que o gerou, mas as semelhanças com o trabalho da Cia. dos Atores são tantas que tendem a soar como contaminação excessiva.
Não se trata de questionar as referências e as possíveis citações que o espetáculo tenha. Algumas delas muito sutis e bem-empreendidas, como a escolha de uma atriz para viver o protagonista, remetendo à montagem protagonizada por Claudia Abreu ou a carnavalização de outro momento, remetendo ao “Ham-let” de Zé Celso.
Os pontos de intersecção entre a obra da Cia. dos Atores e do Tarja já começam pelo espaço cênico. Os atores estão em cena, numa espécie de arena, quando o público entra. Cadeiras e outros elementos contemporâneos (óculos escuros, guitarra, capacete) e referências pop (como a maquiagem escorrendo pelos olhos) preenchem o espaço. A relação que estabelecem com o texto também é muito similar, atualizando-o, comentando-o, ironizando-o. “Você acredita em Hamlet de cavalo branco?”. As semelhanças continuam ao longo da encenação (a forma como a música e a água são utilizadas no afogamento de Ofélia, os atores lendo trechos da peça, espada de desenho animado, lembrando o Power Rangers…), mas citá-las todas aqui seria um exercício exaustivo e desnecessário – até porque esses pontos de contato estão nos olhos de quem vê, no caso, os meus.
Independentemente das conclusões quanto à proximidade ou não dos espetáculos (se essas semelhanças entre as duas montagens forem propositais e se tratarem de uma contaminação-homenagem, foram até muito bem feitas), “Horácio” atinge relevante resultado em suas propostas cênicas. A imagem clássica de Hamlet carregando a face da caveira dá início à apresentação. Mas essa construção é logo interrompida pela apresentação de que aquele é Horácio e que ele será o narrador da história. Esse pequeno deslocamento dramatúrgico proporciona uma série de recursos à dramaturgia e à encenação, como os comentários que este personagem faz ao longo da trama, numa função próxima ao do coro da tragédia, os apartes com a plateia, a síntese de trechos que não serão ‘encenados’, o jogo ator/personagem que estabelece com os outros integrantes do elenco. Em alguns momentos, esse recurso é utilizado excessivamente, cabendo ao personagem funcionar quase que apenas como um “ponto” que sopra o texto ou faz pequenas piadinhas. Nesses momentos, se enfraquece. Gera empatia com o público, mas nem sempre acrescenta camadas à dramaturgia.
As composições de alguns atores se destacam no equilibrado elenco. Polônio aparece com sua bestialidade e infantilidade ressaltada pela interpretação do ator que lhe dá vida. Na pele do protagonista, a atriz mantém o vigor e a perturbação física que o personagem demanda, cabendo a ela os momentos mais “emocionais” da montagem. Em contrapartida, falta à caracterização da rainha o entorpecimento diante da realidade, tão bem ilustrado no breve momento da cena dos óculos escuros, os quais ela insiste em usar para não enxergar um palmo à sua frente. Cláudio também requer de algo mais para se mostrar tão sanguinário.
O humor é um dos pontos mais fortes da abordagem dada pelo espetáculo, como no momento em que morre Polônio, em que se estabelece uma convenção com o público. O único senão é que este elemento é repetido à exaustão em outras cenas (“morri!”), como se o grupo tivesse se empolgado com o resultado (riso) conquistado junto ao público.
Os símbolos também são utilizados de maneira inteligente e divertida. Os olhos são marcados pelo luto, simbolizado pela maquiagem preta, numa possível alusão de que aqueles personagens derramaram muitas lágrimas, ou ainda quando Hamlet se mostra tão ensimesmado em sua vingança que usa um capacete. A marchinha de Carnaval na cena do banquete de Cláudio, enquanto Hamlet diz que o hábito de beber e dançar já deixou o país famoso em terras estrangeiras, nos remete diretamente ao próprio Brasil. O grupo de atores formando o espectro do pai do Hamlet, além de uma bela imagem, remete aos coros gregos, espécie de “consciência” que insiste em assombrar Hamlet.
“Horácio” materializa em cena algumas questões caras ao teatro contemporâneo no Brasil: o processo colaborativo dos grupos, a relação com os clássicos e a construção de dramaturgia própria, as múltiplas técnicas a serviço do trabalho do ator, a relação com o espaço e com o espectador, resolvendo, em sua maioria, de maneira inventiva as propostas que levanta. Mas, cada espectador traz consigo, para o encontro teatral, seu próprio repertório. Minha relação com o espetáculo foi, em vários momentos, interrompida por uma sensação de “acho que já vi isso antes… e mais bem feito”. Até que ponto eu é que não estava excessivamente assombrada por “Ensaio.Hamlet”?. É inegável a marca que alguns espetáculos deixam.
Por Soraya Belusi
Por Soraya Belusi
Por Soraya Belusi
Os desafios em um projeto como este não são poucos, incluindo a direção de um elenco irregular (por sua própria natureza formativa), selecionar trechos representativos e relevantes das obras nesse trabalho de recorte, compreender e reinterpretar o discurso (dramatúrgico e cênico) do irlandês para construir, na junção das partes, uma nova configuração através da proposição da colagem – entendida aqui como a define Patrice Pavis em seu “Dicionário de Teatro”: “uma reação contra a estética da obra plástica feita com um único material, contendo elementos fundidos harmoniosamente dentro de uma forma ou de um âmbito preciso. Ela trabalha os materiais, tematiza o ato poético de sua fabricação, diverte-se com a aproximação casual e provocativa de seus constituintes”.
Ao longo de 1 hora e 30 minutos, “Um Lugar para Ficar em Pé” se aproxima e se afasta da compreensão desses desafios de maneira diversa, compondo um painel irregular da apropriação do que poderíamos entender como uma “linguagem beckettiana”, “teatro do absurdo” ou “teatro de derrisão”, todos conceitos gerados pelo impacto da obra de Beckett e seus contemporâneos (Ionesco, Adamov, Sartre, Caus, Genet, entre outros).
Exatamente por ter a linguagem como fator constitutivo – “o absurdo como princípio estrutural para refletir o caos universal, a desintegração da linguagem e a ausência da imagem harmoniosa da humanidade”(PAVIS) – , a dramaturgia de Beckett requer, muitas vezes, de ser apresentada em sua completude, correndo-se o risco de, no recorte, perder-se no vazio do desentendimento, levando à errônea visão do absurdo como despropositado, sem lógica ou sentidos internos. Em maior ou menor medida, isso acaba ocorrendo nos mais de 12 quadros apresentados em “Um Lugar para Ficar de Pé”. Não só não se atinge o propósito de “alinhavar” os quadros de maneira orgânica e simbólica como, se vistos independentemente, algumas vezes não se sustentam despregados do todo. Um dos exemplos pode ser o quadro de “Catastrophe”. Enquanto a leitura e a fruição de todo o texto da peça-curta nos leva à síntese imagética de Beckett da alegoria do poder do totalitarismo, tendo o Protagonista como símbolo do povo comandado por ditadores, no recorte apresentado na montagem, o quadro se reduz à interpretação cômica de um diretor vaidoso, meio maluco e patético, um retrato muito mais jocoso do que crítico e dilacerador.
Não pretende-se, aqui, criar ou seguir cartilhas de como se montar Beckett, mas, sim, tentar compreender algumas das premissas que compõem sua obra e como estas foram ressignificadas e/ou utilizadas na montagem. Partindo da própria ideia de colagem, não há nada questionável de, a priori, utilizar-se de múltiplas referências e de materiais de diferentes tessituras. Mas, ao longo do espetáculo, essas escolhas, com algumas exceções, parecem não se justificar quando olhadas no todo. As partes parecem não se somar e nem se contradizer, o que poderia se tornar, por si só, um outro exercício de linguagem. O trabalho consegue se aproximar desse propósito em momentos como “O que, Onde”, quando, na seleção do fragmento e da forma de apresenta-lo cenicamente, o coletivo conseguiu trazer à cena a proposta central da peça, da opressão pela linguagem, pela repetição, pela encruzilhada da palavra, refletida nas ações robotizadas e seqüenciais dos atores.
O trabalho tenta dar conta deste inominável na existência humana, como na imagem em que Winnie aparece enterrada até o pescoço de corpos mortos. Mas isso não se propaga para todo o trabalho. A encenação de Héctor Briones aposta como seus pontos fortes na construção de belos momentos imagéticos, em que predominam os focos pontuais de luz, uma permanente quase escuridão, e ganha novos contornos quando integra elementos da dança ao trabalho dos atores. Consegue dar uma unidade ao elenco pela própria natureza do trabalho, fazendo com que todos tenham relevância no desenvolvimento do espetáculo, sempre um grande desafio em um exercício de formação. Porém, algumas vezes, a ideia mal-interpretada de absurdo como “algo tão vago que já nada significa (Ionesco)” é o que permanece ao fim de cada quadro. Ao contrário, cita Marvin Calson em seu “Teorias do Teatro” as palavras de Ionesco, o propósito dessa dramaturgia só se realiza “quando se busca a fonte da existência ou se pretende entendê-la como um todo razoável é que o incompreensível aparece”.
(*) O espetáculo “Um Lugar para Ficar em Pé” foi apresentado dentro da programação do Feto 2012 – Festival Estudantil de Teatro
Por Soraya Belusi
Mas, no meio do caminho, o coletivo (formado pelo diretor e dramaturgo Diogo Liberano e pelos atores Adassa Martins, Andrêas Gatto, Dan Marins, Virginia Maria, Márcio Machado, Laura Nielsen e Gunnar Borges, além dos professores/supervisores) viu-se atravessado pela tragédia ocorrida em uma escola municipal do Rio de janeiro, no bairro de Realengo, tendo que modificar, assim, seu percurso dramatúrgico inicial. Esse entrecruzamento de camadas entre real e ficcional, de narrativas próximas e distantes, do individual e do coletivo, do comportamento adulto e do infantil, do absurdo e do cotidiano, impregnou toda a linguagem que alicerça o espetáculo – entre o que está longe e perto, entre o quase naturalismo e o total estranhamento, entre a crueza o objetiva das palavras e a existência da poesia.
O retrato antigo de uma família arquetípica é o ponto de partida de “Sinfonia Sonho”, cujo centro do quadro apresenta ao público quatro personagens vendados. Essa composição cênica harmoniosa é invadida e revelada pela entrada de um narrador, que irá nos apresentar, de maneira distanciada e objetiva, quem são aqueles personagens e o que os une ali. É justamente essa presença afastada, de fora de ação, que reforça a ideia tão presente na dramaturgia de quão complexa e impalpável é a tentativa de se explicar a violência e a dor, causa e consequência diretas do impacto de um tragédia coletiva. O que o grupo propõe é “uma possibilidade de expressar o impossível”, diz Diogo Liberano no programa da montagem.
A montagem não busca explicar a tragédia, apenas a apresenta, problematiza-a, numa espécie de composição quadro a quadro, em que cada personagem delineia sua melodia no espaço vazio delineado no chão. A economia nos recursos de cenário e figurino permitem uma neutralidade em que se ressalta o desenho corporal e rítmico do jogo dos atores e dos personagens – como na cena de ‘apresentação dos personagens’ em que, numa espécie de dança de mãos, eles se contém uns aos outros para que não possam sair de seus lugares ou realmente se revelarem. A sinfonia do título se reproduz na partitura corporal que cada personagem apresenta, aliado ao sonho marcado não só pelos momentos em que Kevin tenta se tornar música quanto pela permanente presença dos atores à margem da ação central.
A crueldade expressa no jogo infantil – referência que me lembrou muitas vezes recursos utilizados na dramaturgia do absurdo por mestres como Arrabal e Beckett – serve de base à relação entre os irmãos Célia e Kevin, numa alternância quase cúmplice, concedida, de proteção e submissão. Mesmo cega de um olho, Célia enxerga o delírio que seus vizinhos estão submetidos e é capaz de compreender o irmão ao vê-lo indignado quando sua mãe diz que o fato de ele querer se tornar música é metáfora. Os adultos é que se encontram em mundos imaginários, que insistem em não querer aceitar a realidade enquanto seus mundos interiores parecem desabar (Eva que insiste em fingir que está tudo bem enquanto corre cegamente em busca do seu sucesso profissional, e Moira, incapaz de aceitar a morte de seu filho Tomas, vivendo uma gravidez delirante).
As banais discussões de Célia e Kevin escondem reflexões sobre temas como a incapacidade de nos enxergamos mesmo que debaixo de um mesmo teto, o fracasso das relações inter e extra-familiares, a necessidade revolucionária de libertar o desejo, ou, para Kevin, o direito de sonhar só com o que se quer e de virar música.
Tomas também cumpre essa função de representar a incapacidade de seus pais de lidar com o horror da vida real, optando pelo delírio. O personagem vaga pela cena durante todo o espetáculo, sempre presente na moldura, mas ausente na ação. Relação que rompe, num choque entre o onírico e o real, ao se dirigir ao público e narrar o dia em que resolveu tentar voar com balões cheios de ar amarrados aos pulsos e acabou virando comida de urubu.
Neste quadro, as crianças já perderam a inocência, a possibilidade de “não sonhar apenas dormindo”, foram atravessadas pela realidade da pior maneira. São elas que pontuam o quão absurdo pode ser o cotidiano.
(*) “Sinfonia Sonho” foi apresentado dentro da programação do Festival Estudantil de Teatro, no Galpão Cine Horto.