“Liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões”.
(Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas).
Crítica a partir das peças “Preto”, “Grande Sertão: Veredas”, “Tom na Fazenda” e outras apresentadas no Festival de Curitiba 2018.
– por Clóvis Domingos –
Foto: Lina Sumizono/Festival de Curitiba
Ainda sobre espetáculos de teatro-conferência
Nessa terceira parte sobre os espetáculos apresentados na programação oficial do Festival de Curitiba retomo a investigação de trabalhos que apresentam características de peças-conferências. No geral, parecem se tratar de performances que buscam produzir uma experiência de diálogo que coloca em perspectiva os modos de aprendizagem, sensibilização e entendimento de discursos e narrativas consolidadas, costurando características presentes no teatro e na sala de aula. Nessa dupla vocação, o poético é linha que atravessa questões subjetivas e “verdades universais”. Apelos dirigidos ao público para se construir espaços radicais de alteridade, diálogo e exercício de escuta. Os atuantes, como personas performáticas, não representam personagens ficcionais, mas compartilham pensamentos, indagações, memórias e questões de ordem pessoal e social.
Uma peça-conferência também é a proposta do espetáculo “Preto” da Companhia Brasileira de Teatro. A fala de uma mulher negra (Grace Passô) age como elemento disparador de questões como diferença, racismo, convívio e sexualidade. Como linguagem performativa e fragmentada, o formato “conferência” se implode para dar vazão a diferentes variações e formas através da produção de quadros cênicos muito distintos entre si, além de imagens, textos, referências etc. A meu ver, “Preto” trata do difícil e tão necessário jogo entre o falar e o escutar. A utilização de microfones e de projeção com imagens dos rostos dos atores, em vários momentos da encenação, sugere pensar o momento atual em que vivemos, no qual o lugar de fala ainda tenta cavar a criação de um lugar de escuta, assim como questões de visibilidade e reparação. Vozes e rostos amplificados colocam em tensão e diálogo as funções escópica e auditiva, principalmente quando se pensa na formação identitária e social dos sujeitos. Quais os privilégios de quem é branco? Conseguimos de fato enfrentar o problema do racismo no Brasil? O cidadão negro é visto e escutado? Até onde a dimensão racial determina a história de vida de uma pessoa? Qual é a carne mais barata do mercado? “O que fazer para que o enegrecimento seja maior?
O título é “Preto”, mas o espetáculo propõe discussões para além dessa temática, e ao reunir em cena atores negros e brancos, parece mais falar de modos possíveis de coexistência na diferença, além de que a problemática do racismo (assim como da homofobia, entre outros temas) é de todos nós, numa implicação coletiva. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e o genocídio da população negra e pobre é cotidiano.
Se a conferencista que abre o espetáculo afirma: “eu poderia falar sobre diversos assuntos, mas sempre me chamam para falar sobre esse”, tal afirmação sugeriria que o tema da negritude está sempre veiculado à cor da pele e à natureza do discurso da pessoa negra, a delimitando numa identidade fixa e imagem única? Quando Renata Sorrah retoma uma cena de teatro alemão, a personagem principal (Petra) é representada por uma atriz negra. Nesse ponto, o espetáculo busca provocar questionamentos no campo das políticas identitárias, que inclusive, no momento atual fortalecem as produções de teatro negro. Mas historicamente o palco sempre teve como protagonistas o discurso, a história e os corpos brancos. No momento atual, com o importante e necessário fortalecimento das lutas do movimento negro em busca de reparação social e também simbólica, não atacar de frente os preconceitos e injustiças existentes contra os negros pode ser interpretado como ainda manter determinados lugares de privilégio e não expor a chaga que continua aberta.
Mas a imagem final com todos os microfones posicionados diante de uma mulher negra (Cássia Damasceno), de alguma forma reconhece que a fala agora tem prioridade e cor e mais, que é preciso abrir os olhos e ouvidos para se ver e escutar quem de fato sempre esteve alijado das narrativas oficiais consolidadas. Mas é fato que em “Preto” um teatro-conferência das indagações substitui as poéticas e políticas das afirmações. Muitas questões me atravessam nesse sentido: a gente é capaz de sentir a dor do outro? Onde se encontram os nossos comuns? O que nos junta e o que nos separa? Para que perguntar o que já está de alguma forma óbvio? Mas perguntar também não é de alguma forma desestabilizar? A pergunta pode ser de todos e para todos? Quem matou Marielle? Essas palavras fazem agir? A quem de fato o racismo abala? A bala vem de que lado? Até quando? Até quando? ATÉ QUANDO? O teatro não tem vocação apaziguadora.
Na terceira margem de mim há tanto rio
Foto: Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba
A montagem de “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa por Bia Lessa, também foi um dos grandes momentos do Festival de Curitiba. Nessa peça-instalação, mais uma vez a encenadora promove o encontro entre literatura, teatro e artes plásticas e a cena acontece no espaço vazio (um corredor) entre duas arquibancadas que alojam o público. O espaço dividido feito um rio a correr e no qual ocorrem a atuação performativa dos atores e a construção de paisagens sonoras oferecidas, já revela a dualidade como elemento mais forte da literatura rosiana e acerto significativo na transposição cênica da obra. O conflito marca a história de amor de Riobaldo e Diadorim. No espetáculo, pelo trabalho dos atores, também percebemos que tudo está em constante formação e transformação: somos humanos, bichos, plantas, formas, linhas, medos e desejos.
Os figurinos pretos, a meu ver, reforçam a ideia de massa humana, de coletividade, de vidas anônimas como as da grande maioria do povo brasileiro. Ainda que alguns personagens ganhem destaque na montagem, o palco está sempre preenchido por um “corpo coro” e um conjunto expressivo, o que de alguma forma sugere que não é possível haver existências independentes. O ser humano como um sertão em suas travessias interiores e sempre atravessado por questões religiosas, morais, amorosas e existenciais. Isso dialoga muito com nosso Brasil e com o mundo atual e a perda de valores éticos e laços comunitários. O sertão está em todo lugar e ao mesmo tempo dentro da gente. Tão subjetivo e tão universal.
A encenação oferece diversos estímulos aos espectadores, e por mais que grande parte da escrita poética de Rosa esteja presente, nos perdemos do texto devido à entrega vigorosa dos intérpretes, que através de registros de interpretação muito diferentes, se lançam nesse rio caudaloso que Bia Lessa nos convida a navegar. A vida no campo de lutas, batalhas e pequena “espécie de saúde como um descanso na loucura”.
Na companhia de um “rio baldo” e uma “Dor que há dias há em mim” o espetáculo fala de duplicidade ou díade: homem e mulher, dia e noite, deus e diabo, medo e coragem, claro e escuro, silêncio e palavra. A dor de uma vida dividida e pela metade como também está presente nos espetáculos “Tom na Fazenda” e “O Jornal- The Rolling Stone”. Isso me lembra Riobaldo: “a vida nem é da gente”…
Foto de Lina Sumizono/ Festival de Curitiba
Interessante destacar que os personagens só podem viver seu desejo quando apartados da vida social e se encontram/refugiam em espaços da natureza: Diadorim e Riobaldo no sertão árido; os dois rapazes homossexuais de “O Jornal” vivem seu romance amoroso quando num barco e finalmente Tom descobre muito de sua humanidade e desejo quando vai à fazenda-casa de seu falecido companheiro.
Foto de Humberto Araújo/ Festival de Curitiba
Nesses três trabalhos a água como elemento curador das cicatrizes e marcas da exclusão e preconceito e a amolecer a terra e o chão seco das relações tão colonizadas e sedimentadas pelas normas. Ser (tão). Ser (não). Ser (chão). Ser vereda. Ser visto. Ser amado. Ser amor. A natureza como testemunha daquilo que não tem nome e não tem juízo. Nos três espetáculos o confronto entre distintos modos de existir, amar e Ser (tão) humano.
Afirmar os corpos na cidade
Foto de Humberto Araújo/Festival de Curitiba
“Cabaret Macchina” da Casa Selvática trouxe para as ruas de Curitiba a força da insurgência e o humor corrosivo para afirmar que a cidade é para todos os corpos. Como máquina-desejante, o trabalho denuncia as feridas de uma cidade que exclui, fere e mata. Numa poética da desconstrução, o público busca uma anarco- encenação festiva que mais se aproxima de um “corpo sem órgãos”. Se tudo é escombro e destruição é também possível a invenção de um novo mundo. Da cidade do consumo partimos para a cidade dos encontros e das diferenças, daí a necessidade de um espírito de rebelião.
A longa duração dessa experiência com forte impacto sensorial chega a produzir um certo excesso, que durante a criação de um cabaré nômade e insubmisso opta por dramaturgias espaciais e sonoras nas quais a dispersão acontece e o que permanece são corpos políticos em sua visibilidade e discursividade. Algumas referências utilizadas na dramaturgia do espetáculo podem em alguns momentos soar um pouco difíceis e não dialogar com os espectadores mais comuns, principalmente os que habitam as ruas e praças da cidade. Mas certamente não se sai ileso do contato com figuras tão apocalípticas e provocadoras com suas presenças-máquinas selvagens e seus manifestos políticos.
Nessa terceira e última parte sobre a programação oficial do Festival de Curitiba, percebo nos espetáculos analisados nesse texto, possíveis veredas como caminhos alternativos para se pensar nosso contexto atual. Os espetáculos apontam travessias, travessuras e transgressões poéticas para uma sensibilização contra o preconceito e a intolerância ainda vigentes. Outras possibilidades tecidas pelo fazer teatral que apostam em outros rumos para um sertão com tantas grades de ferro e polícias do desejo. Todos temos nosso sertão e “necessitamos encontrar nossas Veredas!” (Rosa, Guimarães).