Crítica a partir da performance Strikethrough da artista Va-Bene Elikem Fiatsi (crazinisT artisT).
– por Clóvis Domingos-
Fotos: Paulo Oliveira/FAN
Na performance Strikethrough (Tachado), realizada na programação do FAN (Festival de Arte Negra de Belo Horizonte) no ano passado, a artista ganesa Va-Bene Elikem Fiatsi (crazinisT artisT) faz uma crítica sobre a imposição e expectativa de gênero impostas aos corpos não-binários, isto é, aqueles que ultrapassam os limites entre os polos masculino e feminino (construídos a partir da matriz heterossexual) e fluem por diversos pontos da linha que os compõem. São existências que caminham e navegam por inusitadas e diferenciadas formas de ambiguidade, multiplicidade, ageneridade e expressividade, gerando dessa forma reações muitas vezes marcadas pela intolerância, marginalização e morte.
Forçar os espaços binários até seus limites, os esgarçando – parece ser uma das propostas da artista nesta performance. Va-Bene Fiatsi instaura um “ritual de identidade” que fracassa mediante a não possibilidade de classificação de seu corpo e sua sexualidade, uma vez que a fluidez é material que impede qualquer forma arbitrária de identificação.
Ao adentrarmos um dos galpões da Funarte nos deparamos com a projeção de um vídeo com imagens simultâneas e ininterruptas que mostram as expressões faciais constrangidas e confusas de agentes brancos europeus em seus postos de trabalho nos aeroportos, e que ao verificarem o passaporte da artista, são confrontados entre aquilo que se encontra registrado (ou carimbado) como identidade, em contraposição ao corpo real que se apresenta. A sonoridade é densa e a mim soou como um ruído incessante a preencher todo o espaço e em total consonância com o estranhamento do qual a performance parece querer abordar: o alarido e barulho nas políticas da linguagem.
Cruzando arte e vida, em Strikethrough, a artista denuncia a vulnerabilidade e violência presentes nas vidas de pessoas transgêneras e negras que encontram dificuldades e obstáculos para se deslocarem por espaços cisheteronormativos brancos. Uma luta para se transitar pelas fronteiras geográficas, sexuais e culturais. Não podemos também esquecer das marcas impostas pela escravidão que secularmente obrigaram as populações africanas a um eterno êxodo e constante deslocamento, uma vez que as migrações forçadas e a condição diaspórica se tornaram legados da ferida escravocrata-colonial. A performance se localiza no aeroporto, lugar de transição, onde a transfobia e o racismo se atualizam cotidianamente e o livre direito de circulação é posto em xeque. Quem pode entrar ou sair? Quem tem passabilidade por esses ambientes? Quais corpos e povos são considerados vidas cidadãs? O que um passaporte define?
Foto: Paulo Oliveira/FAN
Não será o gênero uma caixa ou mala de viagem que ao ser portada permite acessos ou proibições? Como também na alfândega, onde o corpo se torna mercadoria e alvo de controle e fiscalização? Na alfândega das identidades são cobrados altos tributos e taxas para aqueles que importam (aqui num sentido econômico) suas existências através de um corpo diferenciado e tachado como produto e sem declaração comprovada.
Va-Bene Fiatsi estabelece uma área de atuação pela qual lentamente circula (em minha leitura numa alusão ao espaço do aeroporto), ora olhando as imagens do telão e ora olhando os espectadores-testemunhas do seu rito estético-político. Um corpo feminino num caminhar extremamente delicado é o que marca o início de sua entrada. Com a passagem do tempo, tal registro vai aos poucos se modificando, e com a ajuda do público participante, essa primeira imagem ou construção vai sendo desmontada para dar lugar a uma outra corporeidade, agora mais próxima do universo masculino. São dois passaportes que ela carrega e que nos revela, nos colocando também nesse lugar de controladores e “juízes do gênero”. Algo se desmonta, remonta, transita. Ela nos encara, nos convoca, às vezes nos intimida. Parece oscilar entre busca de cumplicidade e produção de conflitos. Lidamos com um corpo fronteiriço: a imagem anterior de uma mulher e o corpo atual como um homem. No limiar entre passado e presente, como habitar um corpo sem título, vazio de nomeações apaziguadoras a desafiar o que Judith Butler denomina de “polícia de gênero”?
Corpo e rasura
Foto: Paulo Oliveira/FAN
Ao longo do trabalho sua corporeidade performa por diversas camadas de ser-existir: uma mulher, um guerreiro viril com sua faca e martelo, um animal selvagem, ou apenas uma matéria-volume que dança e se molda a muitas possibilidades expressivas. Ao caminhar sobre o espelho, retorna mais uma vez a metáfora do trajeto no aeroporto e em todos os espaços marcadamente colonizados pela linguagem e marcação de gênero. Já descalça e praticamente nua, chega o momento de um novo gesto: quebrar com o martelo a superfície lisa e luminosa do espelho, numa tentativa de fragmentar e destruir essa nossa obsessão pela totalidade e, mais, complexificar assim a política das imagens.
Seria um desejo de destruição da identidade visando uma reconstrução e invenção de outras possibilidades? Mas será possível nos livrarmos inteiramente dos espelhos e dos documentos de identificação? Como permanecer num corpo movente que se nega às classificações? O que é ser um não-homem mesmo num corpo biologicamente masculino? Bastaria extirpar o órgão sexual para que essa equação se resolvesse? Inclusive há um momento na performance em que a artista alisa a faca sobre seu corpo nu chegando a deslizá-la sobre seu pênis. Um misto de delicadeza e uma certa tensão se gera pela ameaça de um corte. Como habitar um corpo misto? Quais distâncias e acordos se estabelecem entre o físico, o psíquico e o simbólico?
O golpe final na performance de Va-Bene Fiatsi é quando mesmo com os cacos de vidro já espalhados sobre a plataforma cênica pela qual ela pisa, podendo aí conosco compartilhar um percurso-vida de alguém sempre em condição precária e permanentemente exposta a ser ferida, se revela então a dualidade e delimitação ainda que anguladas: homem e mulher permanecem. Não bastou exterminar a materialidade do vidro, a imagem e seus reflexos (as similaridades), persistem como um fantasma a nos assombrar e enclausurar. Há uma réstia de memória e identidade ainda que estilhaçadas. “Em que espelho ficou perdida a minha face?” se transformaria “em quantos espelhos ainda continuam retidas as minhas muitas faces?”
Foto: Paulo Oliveira/FAN
À artista resta somente seguir trafegando com seus dois passaportes (como num contrabando de idiossincrasias) pela burocrática averiguação sempre recorrente de quem seria ela. Através de sua existência dual e sua arte combativa, se renovam as forças de sua provocação ao complicar os códigos culturais estabelecidos, na tentativa de furar as barreiras ainda vigentes e excludentes que habitam a alfândega das identidades.
Trabalho visto em 19 de novembro de 2019 na Funarte MG.