– por Luciana Romagnolli –
Crítica a partir da peça “Stabat Mater”, de Janaina Leite (SP)*.
Na primeira vez que vi Janaina Leite em cena, em um casarão do centro histórico de Curitiba, o seu corpo se debatia entre o desejo e a repressão legada à mulher no contexto dos sanatórios onde eram tratadas as “histéricas” dois séculos atrás. A peça era “Hysteria”, do grupo XIX, e eu, como as demais mulheres espectadoras, assistia a tudo de dentro, com o corpo implicado na cena.
Foi justamente a elaboração sobre si pela fala, realizada por aquelas mulheres quando encontraram em Freud uma abertura à escuta (ainda que limitada pelo pensamento patriarcal então vigente), que fundou a psicanálise. Mais de um século de história psicanalítica se passou até a Janaina que encontramos agora em companhia das palavras iconoclastas da psicanalista Julia Kristeva em “Stabat Mater”. Seu corpo já não performa os espasmos de outrora, mas uma dança desejante, disposta aos enfrentamentos dos tabus que enquadram corpos lidos socialmente como mulher.
Digo enfrentamento, e não libertação, porque os tabus insistem, os traumas operam na repetição. Eles ainda retornam, mesmo quando a atriz julgava haver encontrado encerramento ao admitir, em seu solo anterior, “Conversas com meu pai”, que nunca chegaria à forma ideal para o trabalho de reelaboração cênica da memória de incesto paterno. Não há satisfação total; é essa falta que a mantém criando.
Se há libertação, qual seja, é a das idealizações, rumo às satisfações incompletas e moventes. Ela nos permite vislumbrar os arranjos singulares que aa artista elabora de ser mulher, ser mãe, ser filha, ser atriz e do seu fazer teatral. Como busca insaciável de dar forma à vida.
“Stabat Mater” sustenta a instabilidade. A estranheza familiar de deparar-se com as próprias sombras, enfrentar o estranho de si e deixar-se desconhecer. Movimento análogo é realizado pela artista em cena em relação ao teatro, às noções de ficção e real. Já não cabe essa dicotomia quando a apreensão do mundo se faz com as ficções e fixações subjetivas com as quais damos sentido ao que nos passa.
Assim, é possível estranhar o teatro e escapar de enquadramentos habituais: documental, real, ficção etc. Toda composição com a materialidade dos corpos, dos tempos e espaços é teatralidade. Toda ação, sob o risco do corpo em presença, é performática. Toda elaboração de si é fabulação. Todos os corpos estão implicados.
A coordenada geográfica habitada nesse solo é a aresta. Ponto de fuga de qualquer enquadramento.
Se Janaina faz, do teatro, clínica, de modo algum ela é a “terapêutica” (à qual o senso comum e parte da crítica de arte reduz as escrituras de si), mas, antes, ato analítico. Análise como procedimento formal e ético. Um teatro crítico que se expõe e se decompõe, se indaga, duvida, se esquadrinha e se toma como objeto de elaboração sobre si mesmo. Com um olhar cru sobre as coisas, como quem disseca um corpo estranho: o próprio.
Nesses movimentos analíticos, “Stabat Mater” comporta as incertezas sem acovardar-se. Eis a coragem da verdade que a atriz assume, emprestando de Foucault o conceito de “parresia”. Se no solo anterior a verdade era uma impossibilidade, aqui, ela é um ato ético incorporado. Sua medida é a do corpo, com suas desmedidas.
O enfrentamento do real, então, se opera no sentido lacaniano daquilo que resta não simbolizável. O real é a presença ausente da mãe dela, ali, após ter sido esquecida no solo anterior. O real é o sexo feminino atravessado pelo corpo do filho parido. É o que não cessa de nascer e morrer.
A coragem de revisar os tabus sobre a sexualidade feminina e a queda das idealizações sobre a maternidade remonta à narrativa bíblica do nascimento de Cristo. Pela racionalidade discursiva de uma palestra-performance, descobre-se o véu sagrado que oculta um não dito sentido abusivo de não consentimento na concepção considerada a mais divina pelo cristianismo. A cultura do estupro encontra sua excusa santificada.
Contra ela, Janaina desacoberta o feminino abjeto. Desencaixado dos ideais de maternidade e feminilidade que embotam o desejo e mutilam corpos e subjetividades. O campo de batalha é o corpo da mulher por seu quinhão de mistério sobre o nascer e o morrer. O corpo que gesta e pare é o mesmo profanado no sexo e submetido à violência da pornografia tradicional ou dos slash movies obcecados por “virgens”.
Qual imagem mais violenta do que um parto em rewind?
Qual ato mais pornográfico do que o realizado à vista da mãe?
E, no entanto, é este que se contrapõe ao olhar masculino típico dos slash movies e da indústria pornô. A sexualidade se despe das fantasias: carne contra carne. Não há relação, não há razão entre os sexos. O que resta é a mecanização do ato sexual que o desmitifica, marcando uma diferença que é a encontrada entre os efeitos de luxúria produzidos pelas imagens de um filme pornô e a crueza banal das filmagens. Dissecar essas imagens é uma forma de livrar-se dos efeitos delas. Desfixar-se das ficções sobre a sexualidade feminina.
O mistério, sim, mas o mistério cru, oco, sem mistificação.
Escapatórias
A mãe de Janaina (Amália Fontes Leite) tampouco atende à idealização da Mulher. Ainda que ecoe a representação da santa, no recato de sua presença, algo escapa. A estátua da mãe-protetora está rachada. Algo alheio permanece, algo inalcançável, a nos indagar quem é a mulher sob aquela máscara de mãe.
A vemos encurralada entre o papel de esposa, que ela cumpre ao retornar à casa para passar as calças do marido, deixando a filha desacompanhada, e o papel materno, que se poderia supor negligenciado quando a filha sozinha sofre um estupro. Dois papéis sob os quais ela se enterra enquanto ser desejante. A mãe está lá e não está lá. É a ausência presentificada (vertiginosamente distinta da ausência excludente de “Branco”), pulsando como a ferida ainda aberta.
O que me parece mais precioso neste trabalho é a travessia que se permite manter os sentidos abertos à complexidade das experiências. Confrontar as violências sem supor a si mesmo como inofensiva – o abandono do moralismo cristão há de nos livrar também da fantasia de salvação, com seu repertório de mártires, santos e sacrificados. Atravessar o lugar da vítima e continuar em movimento. Não operar reduções; sustentar os impasses.
É o rigor da radicalidade que se instala na trajetória da artista, desde a mulher submetida à violência cientificista dos eletrochoques, dirigida por homens na clínica e no teatro; àquela que palestra suas razões, dança sua sexualidade e roteiriza a reelaboração da cena do trauma, tomando para si a responsabilidade sobre suas escolhas e o mistério do seu desejo, e nos implicando com ela.
*Espetáculo visto em dezembro/2019, no Teatro de Contêiner, em São Paulo.
Ficha técnica:
Concepção, direção, dramaturgia: Janaina Leite
Performance: Janaina Leite, Amália Fontes Leite, ator pornô
Dramaturgismo e assistência de direção: Lara Duarte e Ramilla Souza
Concepção audiovisual e roteiro: Janaina Leite e Lillah Hallah
Provocação cênica: Kênia Dias
Direção de arte, cenário e figurino: Melina Schleder
Iluminação: Paula Hemsi
Direção de fotografia/filmagens: Wilssa Esser
Edição e vídeo-projeções: Laíza Dantas
Sonoplastia e técnica de som: Lana Scott
Preparação vocal: Flávia Maria Campos
Assistência geral: Luiza Moreira Salles
Direção de produção: Carla Estefan
Distribuição internacional: Metropolitana Gestão Cultural
Performance: Janaina Leite, Amália Fontes Leite, ator pornô
Dramaturgismo e assistência de direção: Lara Duarte e Ramilla Souza
Concepção audiovisual e roteiro: Janaina Leite e Lillah Hallah
Provocação cênica: Kênia Dias
Direção de arte, cenário e figurino: Melina Schleder
Iluminação: Paula Hemsi
Direção de fotografia/filmagens: Wilssa Esser
Edição e vídeo-projeções: Laíza Dantas
Sonoplastia e técnica de som: Lana Scott
Preparação vocal: Flávia Maria Campos
Assistência geral: Luiza Moreira Salles
Direção de produção: Carla Estefan
Distribuição internacional: Metropolitana Gestão Cultural
Fotos: Andre Cherri