Crítica a partir do espetáculo Outros do Grupo Galpão (BH/MG).
– por Felipe Cordeiro-
“Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém, pode-se confundir e romper”.
“Sentimos num mundo, pensamos e nomeamos num outro mundo, podemos estabelecer uma concordância entre ambos, mas não preencher o intervalo”.
Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”.
Outros, espetáculo mais recente do Grupo Galpão, reitera a parceria de direção com Márcio Abreu (iniciada em Nós) e, dessa vez, segue em busca de outras abordagens da linguagem dramatúrgica em diálogo com os afetos de um Brasil contemporâneo à beira do abismo – como já indica uma das canções leitmotiv da peça. Tal percurso resvala no dilaceramento de fundamentos convencionais do texto teatral (tais como a ação e a epicidade) e traz à tona um texto performático, realizado a partir de fragmentos de imagens produzidas pelos corpos dos atores, pelas dinâmicas de cenografia e iluminação, bem como chamamentos diretos à plateia.
Foto: Guto Muniz
Antônio Edson, em um dos primeiros monólogos do espetáculo, evoca o escritor francês Marcel Proust e sua coletânea de romances que compõem a obra Em busca do tempo perdido. O ator justifica-se, diretamente ao público, sobre suas malogradas tentativas de ativar qualquer pensamento diante dos totais vazios da linguagem e de seus resíduos de imagens. Se a manchete escabrosa de ontem é uma maravilha se comparada a de hoje, como levantar o edifício enorme da recordação?
Foto: Divulgação do grupo
Edson e Teuda Bara parecem formar um contraponto interessante com a peça que, durante todo o tempo da encenação, flerta com imagens nonsense de vanguarda, bebendo em fontes surrealistas e dadaístas. A grande pergunta que Proust tenta responder em seu clássico é justamente essa: “como se tornar escritor?” E as presenças de Edson e Bara em Outros pulsam incessantemente nesse sentido: como se tornar atriz/ator? Como responder às constantes mudanças da cena em direção ao ato performático? Como cindir o drama e deixar vazar a poesia que se quer silêncio? Se as perguntas seguem se repetindo, apesar de tanta estrada percorrida, como forjar as verdades do hoje? O que é a arte do hoje?
Os dois, que estão no mundo há mais tempo do que o restante da equipe (Teuda nasceu em 1941 e Antônio em 1946), deixam evidente que, mais modernos do que todos os modernos, são eles duas forças do passado. Teuda canta que está “na beira do abismo”, e que “a idade é uma piada/ a dor é um martírio/ tô cansada/ tô cansada”. No entanto, ela segue cantando e, assim como em Nós, torna-se uma das figuras decisivas para a construção do espetáculo e potencialização real de seus discursos. Em cena, ela reforça que não tem pais, mas tem uma neta; esteve afastada durante os ensaios da peça devido à cirurgia para colocar uma prótese no joelho, mas ressalta na canção de sua autoria: tenho coragem. E assim ela segue enfrentando o tempo, suas novidades e seus lutos momentâneos.
Foto: Léo Martins
Se Proust queria observar o tempo para ser capaz de alijar-se de sua lei, assim também Edson tenta sistematizar, diante dos olhos do público, uma palavra falada, sonora e performática que recrie os romances de nosso inconsciente, os atos imediatos do pensamento. Proust descobriu que há uma memória involuntária que surge quando você tem sensações. Isso fica evidente quando, em determinadas ações do presente, a memória se volta imediatamente a um passado remoto. O ponto de encontro entre Proust e o Galpão, nesse caso, se efetiva quando ambos tentam trabalhar essas memórias involuntárias em temas literários, formalizando artisticamente essas sensações.
Outros ecoa diversas imagens do passado (principalmente do próprio grupo) para tentar colá-las ao presente, num jogo que convida o espectador a ir junto na busca por tais memórias. E, se Proust escreveu que “para o ciúme não há passado nem futuro, o que ele imagina é sempre o presente”, o Galpão também defende a mesma hipótese, porém afirmando que o teatro também é jogo que se joga no presente. Talvez por isso o grupo assuma tantos riscos nas escolhas das imagens da encenação que, mais que uma fórmula capitalista de sucesso, evocam a fragilidade da artesania do teatro, dos textos e dos corpos. Fragilidade no sentido de se mostrarem humanos, diversos, irregulares e não corpos-máquinas voltados ao materialismo e ao consumo neoliberal que impera em nosso estado policial pós-democrático.
Márcio Abreu, nesta direção, desenvolve uma espécie de psicologia no espaço. Isto é, ele faz com que o público gire tanto em torno de cada uma dessas personas em cena, que temos a sensação de que ele cria um outro espaço em torno delas, no qual o espectador pode se inserir. Aqui talvez o leitor pense que o crítico quer tirar água de pedra, mas, não obstante, é exatamente esse o movimento que o espetáculo exige de quem se propõe a entrar em contato com ele: uma atividade constante de pensamento, livres associações e composições de seus próprios poemas – visto que a obra não oferece nenhuma narrativa linear que não seja a da construção de linguagens efêmeras e seu imediato esgarçamento.
Foto: Guto Muniz
Se Antônio Edson é o responsável por jogar algumas pistas que indiquem possíveis chaves de leitura da peça, Lydia Del Picchia é quem coloca o corpo (seu e de seus colegas) a serviço dessa linguagem. A partir de ritmos frenéticos, nos quais alguns instantes beiram o paroxismo, a atriz e bailarina é quem exemplifica no ato o caráter robótico e fragmentado de nosso tempo – segundo o que o grupo põe em cena. Muitas vezes provocados por Del Picchia, os atores encarnam personas que se repetem, que falham, travam, se dublam, numa tentativa quase babélica de, polifonicamente, colocar a tecnologia em xeque.
Em outro momento, esses corpos já se apresentam como mais domesticados, seguem compassos ternários e ensaiam uma coreografia até que, movidos pelos instintos, transformam a dança ora em assédio, ora em desejo consentido. A partir de uma estética da gambiarra,[1] esses corpos correm de um lado para o outro tentando se situar entre uma barricada contra o nada das informações cotidianas ou a morte de Aretha Franklin. Todas essas construções cênicas são amplamente potencializadas pela trilha e efeitos sonoros de Felipe Storino, bem como pela arquitetura de Marcelo Alvarenga e pelo desenho de luz de Nadja Naira.
Foto: Clarissa Lambert
Por outro lado, um ponto que me parece frágil no espetáculo é a tentativa de contato com grupos minorizados pela sociedade, como é o caso da comunidade LGBTQI+. Apesar de serem evocadas algumas menções a uma possível “paisagem bicha” em uma das canções ou mesmo uma discussão sobre os corpos trans, tais temáticas se encerram em alusões que atingem apenas a epiderme dessas questões. É louvável que um grupo de artistas tão expressivo some suas forças a esses temas tão relevantes; porém, por serem lampejos tão breves dentro de um tempo tão dilatado de encenação, tal recursividade pode soar mais como fetichização e exotificação desses sujeitos do que realmente uma abordagem pungente dentro das formalizações estéticas que a obra ou mesmo a trajetória do grupo propõem. Aqui nos lembramos de Jacques Rancière quando nos atenta para o paradoxo da relação existente entre arte e política. Para o filósofo:
Arte e política têm a ver uma com a outra como formas de dissenso, operações de reconfiguração da experiência comum do sensível. Há uma estética da política no sentido de que os atos de subjetivação política redefinem o que é visível, o que se pode dizer dele e que sujeitos são capazes de fazê-lo. Há uma política da estética no sentido de que as novas formas de circulação da palavra, de exposição do visível e de produção dos afetos determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração do possível. Há, assim, uma política da arte que precede as políticas dos artistas, uma política da arte como recorte singular dos objetos da experiência comum, que funciona por si mesma, independente dos desejos que os artistas possam ter de servir esta ou aquela causa. O efeito do museu, do livro ou do teatro tem a ver com as divisões de espaço e tempo e com os modos de apresentação sensível que instituem, antes de dizer respeito ao conteúdo desta ou daquela obra. Mas esse efeito não define nem uma estratégia política da arte como tal nem uma contribuição calculável da arte para a ação política.
O que quero dizer aqui é que a arte nunca atua em território neutro. Ou seja, ela está sempre inserida num tempo e espaço específicos, ambos repletos de disputas por imaginários que compõem nossa inteligibilidade de mundo. Dito isso, me parece que esses pontos do espetáculo não necessariamente contribuem com a questão política da comunidade LGBTQI+. Mesmo que haja um afã de contemplar distintas vertentes das políticas do contemporâneo, há também o risco de apenas dar nome a elas e não acrescentar pontos mais contundentes que coloquem em tensão tanto o espectador quanto o estado atual da arte.
Foto: Clarissa Lambert
De toda forma, conforme escreveu Alain Badiou em seu Elogio ao teatro, sabemos que esta é mais uma arte das possibilidades do que das realizações. Assim sendo, o Grupo Galpão e Márcio Abreu colocam seus corpos predispostos a se inclinarem de forma ética em direção “às inquietações, possibilidades e impossibilidades do hoje” – nas palavras do próprio grupo. Como podemos pensar a arte a partir dessa proposta estética? O que o teatro pode fazer num contexto de pós-verdade? O que acontece quando essas imagens produzidas pelo grupo tocam o real? Ainda segundo Badiou:
No fundo, o teatro e a filosofia visam criar nas pessoas uma nova convicção. E existe uma espécie de querela inevitável no que diz respeito aos meios mais apropriados para obter esse efeito. […] O teatro é a maior máquina que já foi inventada para absorver as contradições: nenhuma contradição levada ao teatro o amedronta. Todas, pelo contrário, constituem para ele um novo alimento, como mostra o fato de se interpretar Platão no palco. Eu dou aos filósofos o seguinte conselho: nunca ataquem o teatro. Façam como Sartre, como eu e também como Rousseau e Platão, apesar das aparências: é melhor escrever seu próprio teatro do que denunciar o dos outros.
Assim sendo, Outros opera a partir de contradições do tempo presente, que estão postas tanto nas temáticas da peça quanto nas linguagens teatrais efetivadas cenicamente. O espetáculo constrói e destrói a palavra, a imagem, a informação; ressalta a debilidade dos outros, mas também as suas próprias. Sobre essa “máquina de absorver contradições”, não há nenhum ponto de vista fixo e definitivo, eles são construídos a cada sessão, diante de olhos que podem se sentir atraídos ou repelidos por todos aqueles humores, hipnotizados ou apáticos. E assim seguimos, nós e os outros, artistas e espectadores, criadores e teóricos, construindo os teatros nos quais acreditamos.
Foto: Clarissa Lambert
REFERÊNCIAS
BADIOU, Alain; TRUONG, Nicolas. Elogio ao teatro. Trad. Marcelo Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Em busca do tempo perdido (vol 1). Trad. Mário Quintana. São Paulo: Globo, 1990.
PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Em busca do tempo perdido (vol 3). Trad. Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
FICHA TÉCNICA:
Elenco: Antonio Edson, Beto Franco, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Eduardo Moreira, Marcio Abreu e Paulo André
Produção: Grupo Galpão
[1] A estética da gambiarra, segundo Sabrina Sedlmayer, diz respeito a escassez que impulsiona a sobrevivência artística, a uma busca por rearranjos que supram a falta de recursos de seu tempo.