— por Clóvis Domingos —
Crítica a partir do espetáculo Fauna, do grupo Quatroloscinco Teatro do Comum.
“Uma carta é como um vaso de cristal que enviamos em uma embalagem frágil a um país distante. Não sabemos exatamente como vai chegar, e, na maior parte das vezes, o vaso chega quebrado, restando ao destinatário o trabalho de colar os pedaços da forma que puder. A pontuação, a respiração, o ritmo, os vazios que preenchemos com imagens, os intervalos nos quais deduzimos intenções, os espaçamentos que preenchemos com pensamentos são uma espécie de cola. Essa colagem e recolagem constante vai nos informando sobre os inúmeros sentidos contidos por trás das rasuras/cicatrizes de nossos textos”.
“Anjo Caído”, de Edson Sousa e Paulo Endo
Este texto sobre Fauna, do Quatroloscinco Teatro do Comum, foi escrito como carta, numa produção subjetiva de uma resposta ao espetáculo assistido. Espetáculo que, próximo a uma missiva destinada aos espectadores, chegou até a mim com seus ritmos, pausas, precipitações, fragilidades e indagações. Como na citação acima, este texto é uma tentativa de colar os cacos desse vitral cênico e partilhar com os artistas envolvidos, tal como com os leitores interessados, as possíveis colagens e pequenas arquiteturas da letra escrita no encontro com as sensações vividas.
Fotos: Guto Muniz
Belo Horizonte, outubro de 2016.
Aos artistas integrantes do Quatroloscinco,
Escrevo essa carta para continuarmos a “peça-conversa” Fauna, que pude acompanhar em alguns encontros abertos e, mais recentemente, em temporada no Teatro Espanca!. Ontem, na apresentação, ao me encontrar com vocês e com o público presente, fui tomado por uma série de sensações ambíguas. Senti uma delicadeza enorme no trabalho, ainda que ele pareça tratar do difícil tema da extinção – o que sempre provoca uma ponta de mal-estar. Extinção, talvez, não da espécie animal, mas de um mundo cansado, de uma forma de vida fracassada, de um projeto esgotado de humanidade. Extinção de uma perspectiva ilusória de centralidade da vida humana numa natureza tão mais ampla.
Como um peixe vivo nesse açude-mundo, deixei o espetáculo-acontecimento-conversa me sentindo parte dessa fauna que resiste ao desencanto do mundo e ainda emite pequenas luzes, feito vagalumes na noite. A gente se considera tão contemporâneo, mas ainda é tão ancestral. Como se fôssemos esse animal perdido e violento à procura de abrigo.
Prezados, para mim, Fauna cria deslocamentos perceptivos instigantes e potentes, dentro do teatro e fora da representação. Uma transitividade entre cena e acontecimento, atuação e performação, claro-escuro, indivíduo e sociedade, fim e início, morte e vida. Instabilidade entre emissor e receptor, espectador e participante, palavra e silêncio. Vulnerabilidade e força. Modos de convidar o outro à construção de uma peça-conversa. Afetar e ser afetado. Possibilidade de diálogo. “Isso é um milagre”, afirma um dos atores em determinado momento. Isso é um milagre? Encontrar o outro é um milagre.
Falando de convívio. Fauna cria planos para a composição do comum. Tão íntimo e tão êxtimo. Tão eu e você. Tão nós. Ou, nas palavras do pesquisador José da Costa (2014), “os procedimentos criativos parecem motivados pelo desejo de que se constitua o tipo de pele ou de superfície que viabilize a passagem e o fluxo entre o dentro e o fora”. Abertura de espaços. Porosidades. Uma construção que vai nos retirando camadas, “proteções”, sapatos, conceitos e gerando uma “conversa-teia” cuja aranha quer apenas nos entrelaçar. Somos interdependentes.
O trabalho conversa através de símbolos, apela para nossos sensíveis e nos coloca num plano de imanência absoluta. Nos convoca a respirar uma atmosfera coletiva. O mundo pede cuidado! Encontrar o outro é um milagre em meio a tanto caos, velocidade, medo e acasos. Aqui trago novamente os apontamentos de Costa (2014): “A dinâmica do dentro e do fora em relação aos limites do campo do teatro, da representação, da personagem, do drama, da ficção é também a do dentro e do fora da vida supostamente real, do cotidiano, do ordinário, do comum”. Na montagem, as dramaturgias do depoimento se misturam. Há uma estrutura dramatúrgica desenhada, mas existem campos abertos para o imprevisível: seriam poéticas da participação do público. A abordagem com as pessoas da plateia pareceu-me respeitosa, longe de forçar qualquer tipo de interação ou exposição constrangedoras, mas atenta às possíveis reações de cada um, entendendo que interpelar o outro é sempre um ato ético.
A montagem nos deixa à vontade: nos permite falar, beber, se mexer, mas cria tensionamentos estratégicos que nos desestabilizam. Nos interpela no mais inaudito, nos limites, nos mapeia ao se mapear, cartografa nossas marcas. Nos embaralha e, no final, permite nos encontrarmos no mais singular. Cria um céu possível, emite uma luz que não salva, mas clareia essa vida animal que também se quer outra. Interessante também o fato de se buscar como referência para a construção do trabalho a noção de desamparo em Freud (já que vocês estudaram a obra do Vladimir Safatle). Mas na materialidade, a meu ver, o trabalho se apresenta mais winnicottiano (referência a Donald Winnicott, psicanalista inglês) por se abrir à subjetividade dos encontros e criar ambientes acolhedores. Pois, se “alguma coisa está se rompendo” (texto do programa), também podemos pensar que “alguma coisa está se criando”. A agressividade também pode ser lida como anseio de criação. Do desamparo ao acolhimento, da solidão ao encontro. Penso que o trabalho resulta num bom equilíbrio entre o extremo pessimismo que nos ronda e uma dose otimista alucinada que não ajuda na necessária reflexão dos tempos atuais. Um teatro dos afetos. Até porque, se a arte não puder minimamente acreditar num mundo possível, para que continuar (re)existindo, não é mesmo?
Fauna é coletividade. Fala de extinção, mas também de invenção. Recriação. Me atualiza uma expressão cunhada pela psicanalista Radmila Zygouris (2006): “eu-espécie”. Um eu não só intra, mas extra psíquico. Um eu com os outros. Um eu vincular e vinculado ao mundo. Uma ética do cuidado. Um laço não só social, mas humano. Um eu-primitivo. Um eu-intervalo. Que pode praticar perversidades, mas também construir alianças. O que pode o teatro? Talvez nos relembrar sobre a nossa responsabilidade humana. E, pela partilha do campo sensível, nos indagar que mundo queremos viver.
Freud falou em “pulsão de morte” frente à pulsão de vida. Zygouris aposta no que chama de “pulsão de generosidade”. Um exercício possível da espécie humana, que muito tem a aprender com as aranhas e os peixes, e igualmente com a sabedoria milenar dos povos indígenas e suas cosmogonias outras. No espetáculo, a gente retira os sapatos como numa suspensão temporária da cultura. Lá no alto, eles criam um varal de estrelas e, assim, descalços temos um céu comum sobre nossas histórias individuais. O que é para os pés se transforma para os olhos, do chão para o alto. O que periga ser passo firme, agora balança e venta. Suspensão…. Suspender certezas e identidades. Algo precisa estar suspenso para de fato encontrar. No livro Tirando os sapatos, o rabino Nilton Bonder (2008) nos alerta de que os sapatos, embora úteis, são uma superfície artificial que nos afasta do solo vivo e se constituem como identidades que aprisionam.
Mas, na montagem de vocês, arrisco a afirmar que a mistura de nossos sapatos acaba por evocar não só a memória do genocídio dos judeus mortos em campos de concentração nazista, mas também nos indagar no que tal horror nos irmana. E mais: o que somos capazes de fazer contra a dignidade humana em tempos presentes. Que futuro nos aguarda?
O político na dimensão do comum. Se, no espetáculo anterior de vocês, Ignorância, o discurso e o posicionamento políticos eram mais claros e diretos aos espectadores, no atual trabalho vocês me “co-movem” pela sutileza, instaurando espaços lacunares a serem preenchidos por cada espectador com suas questões, sensações e histórias. Penso que essa estratégia dramatúrgica coloca vocês como “compartilha-dores”, o que os possibilita habitar o mesmo lugar comum dos espectadores-participantes. Vocês se mostram também perdidos e atônitos como nós, mostrando que a potência do artista não é ser um “dono de verdades”, mas apenas um ser que também sofre dos caminhos e descaminhos da humanidade, optando, mais adiante, por criar e partilhar questionamentos. O artista como o homem comum não está acima do mundo, mas no mundo mesmo. E, na montagem, estamos corporalmente e espacialmente juntos a vocês, tão próximos e tão necessários. Isso é fazer política.
Então Fauna toca nas micropolíticas. Ou “corpolíticas”. Uma montagem repleta de “espécies cênico-poéticas”, que não extingue o ato de se sentir vivo e criador. Alteridade pura. O Quatroloscinco navega nessas águas aventureiras porque há anos arrisca na linguagem cênica e nos procedimentos colaborativos, já que “as certezas deserotizam a psique e alianças aleatórias introduzem o novo e o desconhecido. A depressão poderia ser menos pesada se nos autorizássemos a ter mais incertezas e mais curiosidade” (Zygouris, 2006).
Marcos Coletta e Assis Benevenuto sustentam bem o jogo criado não só entre eles, mas com o público, transitando entre precisão e espontaneidade. O risco é grande para os atuantes, que parecem habitar um território híbrido, um entre-lugar que ora privilegia a intimidade e, em outros momentos, quer instaurar estranhamentos. Daí uma instabilidade cênica sempre a revigorar cada apresentação, a singularizando. A direção de Italo Laureano e Rejane Faria assume a perigosa proposta de uma peça-conversa. Perigosa, porque sempre dependente da qualidade do encontro que se estabelecerá com o público. Não se conta uma história ou fábula, tenta se criar e se vivenciar uma experiência real. Uma conversa pode acontecer ou não.
Vale destacar também a parceria com o dramaturgo Alexandre Dal Farra, a orientação vocal de Ana Hadad, a orientação corporal de Rosa Antuña, a cenografia de Eduardo Andrade, a iluminação de Rodrigo Marçal e a trilha sonora de Barulhista. Esse grupo de artistas soma muito aos desejos desse trabalho. Há uma comunhão cênico-dramatúrgica que, acredito, deve ter sido gestada ao longo das inúmeras rasuras, angústias, anseios, cortes, escolhas e pistas presentes num processo colaborativo e polifônico de criação. Trabalho não somente de grupo, mas em grupo.
Enfim: considero essa montagem um ato corajoso de vocês! Ela cria desafios, produz diferentes afetos e talvez até desconfortos para o público, quebra protocolos espetaculares, e isso não É só uma formalidade (nome do primeiro espetáculo do grupo), mas uma necessidade, um risco, um salto no trampolim.
Bom, por hora era isso que eu desejava lhes falar/escrever nessa carta.
Essa conversa continua?
Um abraço,
Clóvis Domingos.
Referências
BONDER, Nilton. Tirando os Sapatos. O caminho de Abraão, um caminho para o Outro. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
COSTA, José da. Dentro e fora do teatro e da representação: modos de lidar com o comum e com o outro. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/84740. Acessado em 25/10/2016.
ZYGOURIS, Radmila. Nem todos os caminhos levam à Roma. Tradução de Caterina Koltai. São Paulo: Escuta, 2006.