Texto escrito a partir dos espetáculos “Love, love, love”, “A cor púrpura – O musical” e “A última sessão de Freud”.
– por Diogo Horta –
Espetáculo “A cor púrpura- O musical”. Crédito: Rafael Nogueira.
Estamos vivos!
Essa foi uma das constatações que cheguei (embora seja óbvio) após os últimos finais de semana de programação cultural em BH, em que pude acompanhar presencialmente alguns trabalhos: “Love, love, love”; “Aquarela”; “Orquestra Ouro Preto e Antônio Nóbrega”; “A cor púrpura – O musical”; “A última sessão de Freud” e “4 amigos”.
Percorri teatros e tive experiências bastante distintas chegando a uma segunda constatação: o teatro ainda faz sentido. Ele faz! E digo isso de peito cheio, com sorriso no rosto e olhos brilhando: faz sentido e mais… continua vivo, emocionando, arrebatando, movimentando corpos, palavras, desejos e lutas. Como eu queria poder dizer isso depois de dois anos desde o início da pandemia.
Teatro lotado? Tivemos. Várias sessões extras abertas em um teatro para mais de mil pessoas? Tivemos. Teatro meia casa? Tivemos. Drama? Tivemos. Comédia? Tivemos. Musical? Tivemos. Para crianças? Tivemos. Teatro? Tivemos. Público? Tivemos. Tivemos a impressão de que é possível, que é seguro novamente, que as pessoas estão vivas, que elas ainda aplaudem, choram e partilham de momentos únicos em um mesmo espaço. Ainda somos coletivo, comunidade e sociedade.
Ao longo de todo esse tempo de experiências teatrais virtuais (a definição não é a melhor, mas não tenho outra no momento), o que mais me incomodou foi a ausência de uma experiência coletiva de convívio. É claro que a distância física e a mediação pela tela não me agradavam, mas para mim fazia mais falta a sala de teatro com os espectadores ao meu lado do que qualquer outra coisa. Descobri que na experiência teatral para mim é tão importante o que acontece em cena quanto o que acontece na plateia. O que importa no final talvez seja compartilhar a presença, o sensível e alguns instantes de vida humana.
O teatro me parece agora como um exercício social dos mais importantes. Observando e lidando diariamente com as pessoas nesses espetáculos percebi também alguma coisa estranha. Uma certa inaptidão social para as pessoas lidarem umas com as outras. Uma agressividade latente e prestes a explodir. Foram dois anos sem convívio direto com pessoas desconhecidas praticamente. E aí quando se reúnem 10, 100 ou 1000 pessoas no teatro, o que acontece? Há uma tensão no ar. E é aí que os códigos pré-pandemia vão sendo elaborados, lembrados, respeitados. Sentar-se ao lado de um completo desconhecido agora não é tão simples quanto era há dois anos. Entretanto, esse é um aprendizado que vamos retomando aos poucos e, pelo visto, não vai demorar.
Embora eu nunca tenha conseguido me deter em uma pesquisa aprofundada sobre as relações e tensões inerentes ao público de teatro, levantei ao longo de textos escritos antes da pandemia algumas perguntas que voltam a fazer sentido agora para mim: Qual espaço se abre no teatro para o sujeito? O que o teatro gera no espectador? Por que o público deseja e sente necessidade em ser público? Como se articulam realidade e ficção no teatro? Como se dá a relação do indivíduo com o coletivo-plateia?
Já faz alguns anos que fui tentar encontrar algumas respostas em O espectador emancipado de Jacques Rancière (2012) no qual o autor investiga algumas dessas questões e percebe o ser do espectador justamente na sua singularidade.
“É o poder que cada um tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de relacionar isso com a aventura intelectual singular que o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha a nenhuma outra. Esse poder comum da igualdade das inteligências liga indivíduos, faz que eles intercambiem suas aventuras intelectuais, à medida que os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de todos para traçar seu caminho próprio” (RANCIÈRE, 2012, p. 20 e 21).
A sensação de estar vivo me vem novamente à tona depois desse trecho. E o sentido do teatro hoje me parece ganhar contornos ainda mais claros a partir dessa interlocução entre singularidade, igualdade de inteligências e conexão com outros indivíduos. E nesse complexo de aventuras intelectuais, os espetáculos promovem intercâmbios muito distintos e singulares fazendo com que cada proposta cênica também seja uma aventura muito particular. Vejamos alguns exemplos de espetáculos recentemente apresentados em Belo Horizonte.
O espetáculo “Love, love, love” do Grupo dos 3 teve sua temporada no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas como parte da programação do Teatro em Movimento com casa lotada nas suas 3 sessões. Além da qualidade de atuação do elenco (com destaque para Yara de Novaes), o mal-estar dos personagens me parece reverberar e trazer outros sentidos após o período de pandemia por apresentar questões familiares cruciais. Minha percepção é que a proximidade e tensão dos núcleos familiares durante a pandemia gerou uma intensificação desse tipo de questão. Além disso, o espetáculo aponta as consequências entre passado, presente e futuro das personagens, o que também me parece ser pauta desse momento diante de tantas desconstruções e mudanças obrigatórias que tiveram que ser feitas por todos nós ao longo desses dois anos.
O grito de uma das personagens ao final do espetáculo é um grito de uma geração muito bem delineada (os nascidos entre os anos 70 e 80, filhos da geração Woodstock), mas também é o grito de várias outras gerações mais recentes marcadas pelas redes sociais, pela aula virtual e pela falta de habilidade para o diálogo. O que esperar mais para frente dessas gerações marcadas em tempos diferentes pela pandemia de COVID-19? Quantos gritos estão abafados por aí? Quantos permanecerão inauditos?
Os gritos e canções de resistência contra o racismo e o patriarcado também reverberaram no público fortemente a partir de outro espetáculo: “A cor púrpura – O musical”. Com 3 horas de duração, o espetáculo acompanha a trajetória de empoderamento e emancipação de uma mulher negra. O mais interessante para mim nessa experiência foi ver como havia uma inquietação, afetação e manifestação da plateia ao longo do espetáculo mesmo com uma proposta cênica que não abria muita brecha para esse diálogo direto com os espectadores. Em 3 apresentações no Grande Teatro do Sesc Palladium, o público pôde percorrer caminhos e fazer conexões entre épocas distintas, mas que, pelas reações recebidas, nos indicam como as questões ecoam e ainda fazem sentido para o público de hoje.
Por fim, para concluir alguns breves comentários sobre os espetáculos que assisti no último mês, trago “A última sessão de Freud”, escrita por Mark St. Germain, do Palco Instituto Unimed-BH realizado pela PóloBH. Chama minha atenção em como um espetáculo que promete um diálogo reflexivo entre Freud e C. S. Lewis tenha conseguido esgotar duas sessões no Grande Teatro do Sesc Palladium. Claro que o carisma de dois atores globais como Odilon Wagner e Claudio Fontana podem ter contribuído para o feito, mas não acredito que seja só isso. O que mais poderia ter sido? Essa retomada cultural favoreceria um espetáculo com uma proposta de reflexão mais existencial?
Espetáculo “A última sessão de Freud”. Imagem: João Caldas
Observando a experiência teatral nesse espetáculo, um clássico teatro de texto e gabinete, a plateia parecia entrar num exercício intelectual coletivo. Me peguei analisando as personagens em cena e fazendo um esforço de compreensão para a nuances e perspectivas ali discutidas. A sensação era de me aproximar do espetáculo e ao mesmo tempo me distanciar para tentar ouvir e/ou entender a minha própria opinião sobre os assuntos abordados, quase como se eu quisesse entrar na conversa e colocar meu ponto de vista.
Saí do espetáculo com a sensação de que a obra havia pouco me impactado ou provocado, no entanto, observando com um pouco de distanciamento agora, esse exercício intelectual exigido ao longo do espetáculo parece ser extamente o ponto que fica dessa experiência. Curiosamente, muito distante do impacto mais emocional de “A cor púrpura – O musical” e do mal-estar de uma realidade cruel como a de “Love, love, love”. Seja como for, com qual aventura possamos nos deparar, os sentidos se fazem numa teia de significados coletivos e singulares sem a qual, podemos perceber, muitos de nós não saberíamos viver.
Diante disso, ouso dizer, depois de dois anos de pandemia: O teatro está vivo, faz sentido e estamos vivos para essa partilha! Que se alarguem os horizontes e que nos encontremos no teatro em breve!
Referências:
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo, Editora WMF, 2012.